quarta-feira, 1 de julho de 2009

Patologia Moral no Reino das Inquirições


Perguntas exigem respostas, aquelas que não se fazem seguir de respostas são como flechas atiradas ao vento, conforme enfatizou Elias Canetti em seu livro “Massa e Poder”. No livro “Mil Platôs”, Gilles Deleuze e Félix Guattari destacaram o enunciado em um filme de Herzog: quem dará uma resposta a essa resposta? De fato, não existem perguntas, para eles, respondemos sempre a respostas. A resposta está contida na pergunta de um interrogatório, de um plebiscito, de um concurso, etc. Não resta dúvida que toda pergunta é uma intromissão. Nos diálogos platônicos, Sócrates foi coroado o ‘rei das inquirições’. O interrogatório restabelece o passado e, em geral, dirige-se ao mais fraco – no registro policial desenvolve-se um grupo de perguntas sobre os caminhos que uma pessoa percorreu e os lugares onde esteve; as horas livres. Em um interrogatório objetivo constrói-se um sistema de perguntas que se presta ao controle sobre as respostas, em si, todas podem ser até falsas. A resposta sempre aprisiona quem a deu, afinal o inquirido não possui ou pode desfrutar da liberdade de mudança de opinião, esse processo prolongado pode ser designado ‘acorrentamento’. Há algo na pergunta que busca cindir, com verdadeiro poder de corte, as duas respostas mais simples: sim ou não. Por serem opostos e excluindo tudo o que há entre elas, a decisão entre elas implica comprometimentos particulares.

Antes que a pergunta seja feita, não se sabe o que se pensa, todavia ela obriga a separação entre prós e contras. Decerto, uma resposta inteligente é a aquela que põe fim às perguntas, mas entre iguais, quem pode reponde com outra resposta. O efeito das perguntas sobre o inquiridor amplia a sua sensação de poder [elas lhe dão vontade de se fazer mais e mais perguntas], entretanto o inquirido se sujeita tanto mais quanto mais consentir em respondê-las. Há quem saiba dissimular tão bem que chega até apagar sua identidade, assim a pergunta parece ter sido dirigida a outro, o que torna a pessoa menos competente para responder a ela. Quem é exteriormente indefeso pode criar a proteção de uma pergunta, o segredo: subsumido no interior de um corpo. Quem se aproximar demais de um segredo tem que estar preparado para surpresas desagradáveis. Sabe-se que o Inconsciente foi incumbido de ser a forma infinita do segredo – psicanálise interminável. Você dirá tudo, mas, ao dizê-lo, você não terá dito nada. Em geral, as mulheres tratam, por exemplo, o segredo de forma singular. Inocentes a priori, elas reivindicam e julgam os homens como culpados a posteriori. Enquanto os homens as acusam por sua indiscrição, seu falatório, sua falta de solidariedade e por sua traição. Como a mulher pode ser secreta por não esconder nada? Há mulheres que dizem tudo, com incrível técnica que, no fim, não se saberá nada mais do que no começo. O mais importante no segredo é, então, a defesa eficaz contra toda e qualquer pergunta. O ‘calar’ é uma forma extrema de defesa em que as vantagens e as desvantagens se equilibram, afinal, aquele que se cala pode não se entregar nunca, mas vai dar sempre a impressão de ser mais perigoso do que parece ser. Supõe-se haver nele mais do que aquilo que ele cala, se ele se silencia é apenas porque tem muito a se calar – por isso, faz-se de tudo para não libertá-lo. O silêncio conduz, com efeito, à inquirição penosa, à tortura. O que se cala é o que melhor se conhece.

A desconfiança que se tem em relação a todas as formas mais livres de governo vincula-se à ausência de segredo, porque só aos reis eram preservados seus segredos e entre eles o poder do silêncio foi sempre muito estimado. Nossos modernos segredos tecnológicos são perigosos e afetam a todos no que se refere, principalmente, ao prazer de condenar. Essa ‘enfermidade do julgamento’ acomete e se dissemina entre os homens. Patologia moral inerente ao ser humano, que tem uma necessidade inconsciente de agrupar e reagrupar constantemente todas as pessoas, ao dividir seu número desarticulado e amorfo que tende a alcançar, mais cedo ou mais tarde, dois grupos. Contrapor um ao outro até que uma luta se irrompa entre eles. O que importa é a tensão existente entre os dois grupos, tensão criada e renovada por aquele que julga. Na base desse processo encontra-se a formação de maltas inimigas que se conduzem como se fossem, simplesmente, maltas de guerra.

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