sábado, 18 de julho de 2009

Quashee, Zumbi, Chatsworth: África do Sul


‘África’ é, em todo caso, uma construção moderna, que se refere a uma variedade de povos, tribos, culturas e línguas cujo principal ponto de origem comum situa-se no extinto tráfico de escravos, de acordo com Stuart Hall em seu livro "Diáspora". A ‘África’ expressa uma dimensão de nossa sociedade e história que foi maciçamente suprimida, desonrada, negada e, apesar de tudo o que ocorreu, permanece assim.

A supressão da ‘África’ deu-se de todos os modos possíveis pelos impérios europeus, sobretudo entre os britânicos, o estereótipo foi uma arma simbólica dirigida contra os escravos africanos em suas colônias. Thomas Carlyle destacava, por exemplo, a revitalização da Inglaterra e o seu desenvolvimento, em seu livro “The Nigger Question”, mas que em nada podem contribuir para animar Quashee, um dos estereótipos mais ultrajantes dos negros, cuja feiúra, preguiça e rebeldia os condenam para sempre a um estatuto subumano. O Quashee destinava a produzir riquezas para o uso inglês, assim o ensejo para ele estar ali, silencioso, consiste em trabalhar com obediência e discrição, a fim de manter em funcionamento a economia e o comércio da Inglaterra. Os colonizados africanos foram excluídos dos espaços ingleses em termos, de direitos e privilégios, de pensamentos e valores, sobretudo físicos e territoriais. O sujeito colonizado foi construído no imaginário metropolitano como o outro, o Quashee, posto fora das bases de que definirão os valores civilizados europeus. Dessa maneira, o elemento colonizado negro apareceu obscuro, de início, em sua diversidade. Essa construção de identidades repousava na fixidez das fronteiras entre a metrópole britânica e a colônia sul-africana. Em 1914, o império britânico concedeu autonomia interna às colônias de assentamento branco massivo, conhecidas desde 1907 como ‘domínios’, entre eles a África do Sul. Antes de 1949, as elites tanto sul-africanas como as ocidentais viam a África do Sul como um Estado ocidental. Depois da implantação do regime de apartheid, as elites ocidentais deixaram, pouco a pouco, de enxergá-la como ocidental, enquanto os sul-africanos brancos continuaram a se considerar ocidentais. Para reassumirem seu lugar na ordem internacional ocidental tiveram, entretanto, que introduzir instituições mais democráticas que resultaram na chegada ao poder de uma elite negra fortemente ocidentalizada. Com efeito, se o fator da ‘indigenização’ da segunda geração se fizer funcionar, seus sucessores terão uma perspectiva mais xossa, zulu e africana, assim a África do Sul definir-se-á cada vez mais como um Estado africano.

Na África do Sul, colonizadores europeus criaram uma cultura multifragmentada e levaram o Cristianismo para a maior parte do continente subsaariano, mas as identidades tribais são profundas e intensas pela África, embora os africanos estejam desenvolvendo uma noção de ‘identidade africana’, distinguindo a África Subsaariana como uma única e mesma civilização, com a África do Sul sendo o seu Estado-núcleo, de acordo com Samuel Huntington em seu livro “O Choque de Civilizações”. Deste modo, com a transição da negociação não muito pacífica do apartheid na África do Sul, com seu vigor industrial, seu alto nível de desenvolvimento comparado aos outros países africanos, sua capacidade militar, seus recursos naturais e, sobretudo, sua sofisticada liderança política, assinala-se nitidamente como o país líder da África Meridional e Subsaariana.

Tendo experimentado o que há de melhor e pior do Ocidente, tanto o Cristianismo como o apartheid, a África do Sul tem sido qualificada de modo especial para liderar, de uma só vez, toda a África. Nas décadas de 1970 e 1980, a África do Sul conseguiu a capacidade de fazer armas nucleares, mas essa difusão só se tornou um problema sério após o fim da ordem bipolar, em 1989. A África do Sul não abandonou o programa de desenvolvimento de armas nucleares, apenas destruiu suas armas existentes até então. Essas armas foram fabricadas para impedir ataques vindos do exterior contra o apartheid por um governo branco, que não queria legá-las a um governo negro. Contudo, não se pode destruir a capacidade de fabricar armas nucleares, talvez um governo pós-apartheid possa produzir um novo arsenal nuclear para garantir o seu papel como Estado-núcleo da África e impedir o Ocidente de investir na África. Por enquanto, parece que o retorno às práticas mágicas ancestrais dos sul-africanos não deixa de ser tão bombástico quanto as armas nucleares. Na África do Sul pós-apartheid, alguns fenômenos e formas de rituais mágicos continuaram a ser elementos da vida contemporânea, desafiando a concepção moderna do padrão europeu e do próprio cosmopolitismo sul-africano.

Não se trata de um ressurgimento ‘pré-moderno primitivo’ nem de um fenômeno local, porque estes elementos se manifestam em contextos comparáveis em todo o mundo, sob diversas formas locais. Na África do Sul aumentaram os relatos de fenômenos de ocultismo como bruxaria, satanismo, monstros, zumbis, assassinatos ritualísticos e semelhantes, de acordo com Jean Comaroff em seu artigo “Occult Economies and the Violence of Abstraction: Notes from the South-African Postcolony”. Acompanha-se a essas práticas ocultas, a pobreza que assolou a África do Sul. Em seu artigo intitulado “We Are the Poors”, Ashwin Desai relatou o desenvolvimento de um movimento contemporâneo de protestos contra os despejos e os cortes de água e energia, ocorridos principalmente em Chatsworth, perto de Durban, na África do Sul. Esse movimento se organizou sob uma base comum, onde os negros sul-africanos e os sul-africanos de origem indiana marcharam juntos proclamando ‘Não somos indianos, somos pobres!’, ‘Não somos africanos, somos pobres!’.

Essas manifestações apresentaram suas reivindicações locais, mas nem por causa disto deixaram de alcançar o nível global dessas lutas. Certamente, eles se voltaram contra os funcionários locais e o governo sul-africano, questionando o agravamento da miséria da maioria dos pobres desde o fim do apartheid, mas alegaram também que a globalização neoliberal foi a fonte desta pobreza. Deste modo, durante a Conferência Mundial Contra o Racismo promovida em 2001 pela ONU, os manifestantes sul-africanos tiveram a oportunidade de se manifestar em Durban.

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