terça-feira, 14 de julho de 2009

Euthanasie e Máquinas-micróbios [biotech II]


Depois de ter contribuído com o Império dos soberanos em sua colonização territorial-geológica de nosso planeta, o recente desenvolvimento tecnocientífico, biomédico, chega hoje à progressiva colonização dos órgãos e vísceras do ‘corpo animal’ do homem: a invasão da microfísica concluindo a da geofísica. Não se trata mais da invenção de sistemas hidráulicos, canais, pontes, aterros, megamáquinas que revolucionaram o deslocamento físico: ferroviárias, rodoviárias, linhas elétricas e cabeamentos. De um projeto exocolonizador a um processo endocolonizador. Nanotecnologia, micromáquinas, pois, que se preparam para equipar o que vive, desde a última revolução dos ‘transplantes’ que alimentam o corpo com técnicas estimulantes.

Hoje o lugar da high tech não está mais situado no ambiente planetário, mas no infinitamente pequeno locus das nossas vísceras e células, que compõem a matéria viva de nossos órgãos, portanto intrusão intra-orgânica nanotecnológica no seio do que vive e, assim, se segue a miniaturização dos motores, dos emissor-receptores e de outros microprocessadores, de acordo com Paul Virilio em seu livro “A Arte do Motor”. De uma só vez, trata-se de superexcitar o organismo do paciente, mas também de tranquilizá-lo, ou seja, ‘programar’ a intensidade de suas atividades nervosas e intelectuais como se programa o regime-motor de uma máquina qualquer. Não resta dúvida que a invenção do marca-passo cardíaco foi um dos pontos de partida desse tipo de inovações biotecnológicas, depois dos xenoimplantes de órgãos animais, além dos ‘tecnoimplantes’ que misturam o técnico e o vivente, onde não se acrescenta mais um corpo estrangeiro ao corpo do paciente, mas a heterogeneidade de um ritmo estrangeiro torna-se capaz de fazê-lo vibrar em uníssono com a máquina.

‘Máquinas-micróbios’ invisíveis que modificam os ritmos vitais e ocupam até mesmo os vazios do espaço intra-orgânico do indivíduo, acrescentando-lhe órgãos suplentes. Questiona-se como a troca standard de peças sobressalentes do domínio da mecânica pudesse se aplicar ao organismo: xenoimplantes e tecnoimplantes que reparam os estragos causados pela doença de tal ou tal órgão e aperfeiçoam as suas performances vitais. Sabe-se que o estado do além-comatoso é a condição ideal para a coleta de órgãos, o que implica a definição do momento exato da morte, para que o cirurgião que efetuar o transplante não seja acusado de homicídio. Em 1958, dois neurofisiólogos franceses, P. Mollaret e M. Goulon fizeram um breve estudo sobre o coma dépassé [além-coma], no qual a abolição total das funções de vida de relação corresponde uma abolição também total das funções da vida vegetativa. Em seu livro “Homo-Sacer”, Giorgio Agamben citou o caso do médico Norman Shumway, quando afirmou que um homem, cujo cérebro está morto, também está morto, porque este é o critério universalmente aplicável, afinal o cérebro é o único órgão que não pode ser transplantado, a despeito de ter sido processado em 1974, diante do tribunal californiano, por ter matado um homem. A morte torna-se, a partir de então, um epifenômeno da tecnologia do transplante.

Trata de uma morte, mas de uma ‘morte sem valor’, ‘indigna de ser vivida’, como se toda a valorização da vida implicasse uma nova decisão sobre o limiar além do qual a vida cessa de ser relevante politicamente e, como tal, pode ser impunemente eliminada. O governo do Reich emitiu uma medida que autorizava a eliminação dessa vida indigna, com especial referência aos doentes mentais incuráveis. Trata-se do Euthanasie-Programm für Unheilbaren Kranken que ocorreu em condições que podiam favorecer erros e abusos, por extrapolar-se em uma operação de extermínio em massa. Institutos existiam em Hadamer [Hesse], Hartheim [próximo a Linz] e em outros locais do Reich, como o Programa em Grafeneck, cujo instituto recebia a cada dia cerca de setenta pessoas escolhidas pelos vários manicômios alemães, entre os doentes mentais incuráveis, em idade variável de 6 a 93 anos. Os doentes eram mortos nas 24 horas seguintes à chegada a Grafenek, na maioria dos casos: [1] ministrava-se uma dose de 2cm de Morphium-Escopolamina; [2] introduz-se o indivíduo na câmara de gás. Em Hadamer, por exemplo, os doentes eram mortos com altas doses de Luminal, Veronal e Morphium, calcula-se que deste modo sessenta mil pessoas foram exterminadas. Hitler executou seu Euthanasie-Programm com valor estritamente eugenético, cujas leis de prevenção das doenças hereditárias e sobre a proteção da saúde hereditária do povo alemão representavam, para ele, tutela suficiente, mas a eutanásia não era particularmente necessária. Este programa representou um encargo organizacional significativo para uma máquina pública que estava totalmente empenhada no esforço bélico.

Se o soberano, o líder, o Führer é aquele que decide sobre o valor e a desvalorização da vida enquanto tal ou se compete a ele decidir qual a vida possa ser morta sem que se cometa homicídio, assinalasse, então, a integração entre a medicina e a política que começou a assumir a sua forma consumada no Reich nacional-socialista, enfim, isto implicou que a decisão sobre a vida se deslocasse das motivações políticas para um terreno ambíguo, onde o médico e o soberano parecem trocar seus papéis.

Nenhum comentário:

Postar um comentário