terça-feira, 3 de novembro de 2009

Micheletti e um tal Bartleby [Honduras IV]



Para compreender a violência revolucionária, certamente Slavoj Zizek chega a analisar as relações de poder, mas não para encontrar o seu ponto de aplicação em focos de resistências, num viés foucaultiano; em sua hermenêutica, o que ele se ocupa, frequentemente, é com o 'excesso de poder' e com o seu 'avesso obsceno', enfim com a Lei e sua transgressão. Utilizam-se como referência, neste sentido e para os textos que se seguem, dois de seus livros: “A Visão em Paralaxe” e “A Marioneta e o Anão”, para nos ajudar a entender a lógica jurídica que formou uma espécie de Theatrum Politico em Honduras, desde a instituição do ‘Estado de Exceção’ por Roberto Micheletti em meado de 2009. Ao passo que Giorgio Agamben, em suas análises jurídicas, filosóficas, políticas e também, por assim dizer, filológicas, contribui com sua compreensão do poder através não da resistência nem do seu excesso, mas da 'suspensão do direito', através das perspectivas delineadas em seus livros “Estado de Exceção” e “Homo Sacer”. Objetiva-se, então, redimensionar o ‘Evento hondurenho’ em seu ‘espectro democrático’ estruturado, em termos gerais, a partir do excesso de poder, da transgressão da Lei e da suspensão dos direitos.

Não resta dúvida de que vivemos um processo sem precedentes onde as grandes ‘questões públicas’ são retraduzidas em questões sobre a regulamentação das idiossincrasias mais íntimas (naturais, pessoais) e a postura diante delas. Na falta de um ‘erro’ ou de um ‘crime’ suficiente para punir um indivíduo, vasculham-se suas características próprias, individuais,  singulares e, em muitas vezes, recorre-se a seu passado, a sua classe, etc. Diz-se isto para rememorar que, como ter um bigode, usar um chapéu ou ser fazendeiro no âmbito da política hondurenha, nos últimos tempos tornou-se um conjunto de hábitos, um estereótipo que causou repúdio e estranhamento na oposição (liberal, democrática, direitista) e em seu porta-voz talvez mais querido, os mass media. Refere-se em Honduras ao próprio espetáculo do paradoxo democrático em rede planetária: quanto mais se reivindicam liberdades individuais, mais o privado se torna público: como essas espécies de programas de tevê que discutem os problemas familiares e pessoais, tornando a esfera privada cada vez mais pública; como na videopolítica de Nestor García Canclini em seu livro “Consumidores e Cidadãos”, onde o espaço público torna-se cada vez mais midiatiziado, neste caso, a ‘Crise em Honduras’ democratizava-se ao mesmo tempo em que o golpe se tornava um artefato midiático.

Distingue-se, pois, a democracia, que pressupõe, pelo menos, um mínimo de alienação (os que exercem o poder só podem ser responsáveis pelo povo se houver uma distância mínima de representação entre eles e o povo) do totalitarismo, que elimina essa distância (supõe-se que o Líder represente diretamente a vontade do povo, mas o povo é também alienado, mas em seu Líder, assim como o Líder é o que o povo ‘realmente é’, sua identidade, seus desejos e interesses). O que incomoda no totalitarismo é que há um ‘momento de verdade’: o ‘vínculo social perverso’ no qual o pervertido sabe o que o outro realmente quer. Mas a democracia é ‘encenada ou simulada’ à distância do Estado. Se ela questiona o Estado e convoca a ordem estabelecida a prestar contas, isso não ocorre para se livrar do Estado, mas para ‘melhorá-lo’ ou atenuar seus efeitos malévolos. Nesta arena ou campo de forças entre essas duas concepções, vê-se digladiar, respectivamente, Manuel Zelaya (o Líder) e Roberto Micheletti (em sua distância mínima).

A democracia torna o destino de um país dependente dos caprichos de uma minoria que pode influenciar a votação e a convicção correspondente de um agente político de que a sua missão se fundamenta na visão de um verdadeiro estado de coisas qualquer: o resultado e os ingredientes necessários da ‘lógica democrática’ descreve-se em sua pretensão a uma posição privilegiada, que rejeita as próprias regras democráticas, o que só é possível dentro do espaço democrático. No nível da identidade simbólica, todos os sujeitos são iguais, logo, eles podem ser substituídos um pelo outro. Esse igualitarismo democrático se apresenta com uma espécie de ‘justiça igualitária’, na medida em que é sustentada pela inveja, baseia-se na inversão da renúncia-padrão (feita para beneficiar os outros): “estou disposto a renunciar para que os outros também não tenham ou não possam ter!” Essa lógica igualitária baseada na renúncia e na inveja foi propalada por Micheletti ao longo desse ‘estado de exceção’ hondurenho. Afinal, quem não se lembra de sua postura “renuncio se Zelaya não assumir o poder”? Em linhas gerais, essa ‘idiossincrasia michelettiana’ não deixa de ser uma ‘atitude termidoriana’, traduzida pela lei dialética hegeliana, que diz: a tarefa histórica fundamental que exprime naturalmente a orientação de um bloco político só pode ser cumprida pelo bloco oposto. Em todo caso, o pedido de “renúncia de Zelaya com a suposta automática renúncia de Micheletti” não se traduz melhor do que como o ‘bluff do outro’? Ou seja, como no mote de Maio de 1968: “Sejamos realistas, peçamos o impossível!” Com um pedido impossível de se satisfazer, sabe-se perfeitamente que a reivindicação não será satisfeita, assim tem-se a certeza de que nada mudará, mantendo-se o atual estatuto privilegiado.

Enquanto Manuel Zelaya e seus seguidores optaram pela renúncia à violência ou por uma ‘agressão passiva’, numa recusa a participar do golpe, como no famigerado gesto de Bartleby (‘preferiria não’), no entanto Roberto Micheletti seguiu na sua ‘passividade agressiva’, em que ficou o tempo todo ativo para garantir que nada acontecesse e que nada mudasse de verdade. ‘Política de Bartleby’, portanto, que se exerceu uma mudança em algo, mas para nada, ou melhor, deslocou-se de uma lacuna entre dois ‘algos’ (entre Zelaya e Micheletti) para uma lacuna que separa algo (Zelaya) de nada, do vazio de seu próprio lugar (presidência de Honduras). Trata-se da fonte e o pano de fundo de uma nova ordem, ou de seu fundamento permanente; desde que Zelaya retornou a Honduras (‘abandonado’ na Embaixada Brasileira), a ‘sua’ estratégia não cessou de minar as resistências, de dizer não às resistências a seus correligionários, porque elas só ajudariam o sistema de governo michelettiano a se reproduzir; essa é apenas uma alusão ao “Bartleby” de Melville, ou seja, Zelaya esteve mais para o Bartleby, em sua ‘agressão passiva’, podendo dizer seu ‘não’ em Honduras, na imagem que tanto incomodou a mídia: deitado num sofá, com seu chapelão sobre o rosto, na Embaixada Brasileira, sem poder fazer nada... é porque Bartleby não mataria mesmo nem uma mosca. Parece-nos que a estratégia de Zelaya tendeu, em todas as etapas do golpe (desde a sua mobilidade em busca de apoio aos países até a sua ‘quase-inércia’ na Embaixada do Brasil em Honduras), a uma ‘agressão passiva’ que mais se aproximou, mesmo em seu limite, a uma idealizada ‘política de Bartleby’, ao negar o estado de coisas instaurado em Honduras, por seu turno, Micheletti agiu e não queria mudar nada, em sua política da ‘agressividade passiva’.

Destaca-se o paradoxo da Lei que se baseia no excesso constitutivo da representação para além do representado. No plano da Lei, o Poder estatal apenas representa os interesses de seus sujeitos (serve a eles, responde a eles e está sujeito ao seu controle), mas é complementada pela mensagem pública e obscena do exercício incondicional do Poder: ‘as leis na verdade não me restringem, posso fazer com vocês o que eu quiser, posso tratá-los como culpados se assim decidir, posso destruí-los se assim quiser... ’ Se esse excesso obsceno (‘espere só o que vai lhe acontecer! ’) é o constituinte necessário da noção de soberania. Mas acontece que a Lei só pode manter sua autoridade se os ‘súditos’ ouvirem nela o eco da auto-afirmação obscena incondicional. Decerto, Roberto Micheletti se esforçou para motivar ou convencer os cidadãos hondurenhos através dessa ‘ameaça soberana’, desse núcleo obscuro ou ‘excesso obsceno’ que complementa e dá significado às leis. Percebe-se que Micheletti fracassou nessa tentativa, porque a população (a maioria fadada ao governo de uma minoria, comum ao regime democrático) ao invés de dar o eco incondicional para a auto-afirmação do ‘golpe de Micheletti’, disse um ‘preferiria não’, mesmo translúcido, opaco e às vezes inaudível. Micheletti não conseguiu manter o seu afetuoso ‘estado de direito’, porque ele só pode ser mantido por um poder soberano que se reserva o direito de proclamar um ‘estado de exceção’, ou seja, de suspender o estado de direito em nome da própria lei, privando a Lei do excesso que a sustenta, o que não tardou perder/perverter a própria Lei (o próprio estado de direito).

Com efeito, o golpe em Honduras acabou destruindo o próprio ‘estado de direito’ que queria sustentar, manifestou-se, no em seu lugar, um poder que se apresenta como se estivesse o tempo todo sob ameaça, que vive sob um perigo mortal e apenas se defende – é o tipo de poder mais perigoso, ressentido e hipócrita. Com a finalidade de restituir o ‘estado de direito’ democrático, o que era para ser tornar um ‘estado de exceção’ pareceu mais um ‘estado de emergência’(sob a cristã tradição paulina): ‘como se’ fosse um estado de exceção; ‘como se’ fosse um ‘estado de sítio’ e, principalmente, em guerra contra seus cidadãos e numa posição que parecia obscena e ilegal. Essa sensação de ‘estado de emergência’ pode ter sido o elemento que confundiu tanto especialistas quanto jornalistas na hora de designar que tipo de estado realmente estava sendo implantado em Honduras ao mesmo tempo em que sua posição ‘obscena e ilegal’ tornou-se uma opinião hegemônica, na qual se tratava de um golpe antidemocrático, difundida entre organizações supranacionais (como a ONU), Estados-nacionais e instituições diversas em todo o mundo.

Julgamento-paulino [Honduras III]



A situação mais difícil em Honduras é como ignorar um ‘estado normal’ que Roberto Micheletti procura impor, sem deixar de perceber que ele coincide e se traveste de um típico ‘estado de emergência’. O presidente de fato ou interino não parou de declarar: ‘tudo está sob controle’, ‘sigam as instruções’ e ‘prossigam a vida normal’, entretanto o que se vivia era um ‘estado de exceção’. De um lado, o estado de exceção, que não é uma negação do reino da Lei nem a sua destruição, mas o próprio gesto que a funda. De outro lado, o ‘estado de emergência’ judaico-paulino, a suspensão da imersão ‘normal’ na vida cotidiana No funcionamento ‘normal’ da vida a imposição da Lei engendra um ‘dano colateral’: a sua própria transgressão, o seu próprio excesso.

Ninguém em Honduras deixou de perceber que era preciso se habituar diariamente com a ameaça de uma catástrofe pronta para explodir em suas cabeças, como se estivesse introduzindo um ‘estado de emergência permanente’. Aparentemente nota-se que um ‘estado de exceção’ se realizava, mas que a população hondurenha promovia uma violência contra um ‘estado de emergência’, o que de fato deu certo, ou seja, todos se sentiram convidados a ‘participar de prontidão’ de um ‘golpe de estado’ (de emergência) no qual precisamente o poder afirma o domínio que exerce sobre os cidadãos: os hondurenhos escaparam de tal poder que se aplicava sobre eles, afirmaram um ‘preferiria não’.

Que Lei ‘louca’ [incondicional kafkiana] que se sustenta ao antecipar que todos são culpados sem mesmo saber de quê? Esta Lei é a meta-Lei, a Lei do ‘estado de emergência’, em que a ordem do direito é suspensa – a Lei ‘pura’, a forma da ordem/interdição ‘como tal’, o enunciado de uma injunção privada de qualquer conteúdo, conforme Slavoj Zizek em seu livro ‘A Marioneta e o Anão’. Nesta esteira, os hondurenhos disseram este ‘preferiria não’ através do pressuposto implícito da Lei: a própria lei engendra o desejo de a violar; a lei proibitiva como elemento que engendra o desejo transgressivo; a instauração de interditos nos levam a gozar a sua violação, mesmo que isso nos leve a uma conclusão perversa desmoralizante, mas a transgressão não se elevou ao estatuto de norma, como o estado que a circundava, ela se manteve exceção.

Toda essa dialética da transgressão e da lei conduz a uma interpretação sobre a relação entre a morte de Cristo e o pecado. Se observarmos a morte de Cristo como um sacrifício, ela é uma consequência do fato de nós, humanos, sermos culpados devido aos nossos pecados. Mas Deus nos enviou Cristo, aquele que não pecou, para que morresse, em sacrifício, em nosso lugar. Através do sangue derramado por Cristo, Deus nos perdoa e nos liberta da danação. Interpretação legalista esta, afinal há um pecado que é preciso pagar e, ao pagar o nosso pecado no nosso lugar, Cristo redimiu-nos (fazendo de nós seus devedores para sempre). Essa leitura sacrificial apresenta o gesto de Cristo surgindo no interior do qual, não só Cristo, mas qualquer um gostaria de triunfar, no interior do horizonte em que morremos por ele, nos identificamos imediatamente com ele: no interior da Lei [a culpa, a expiação, o pecado e o preço a pagar por ele], a morte de Cristo só pode surgir como a afirmação absoluta da Lei – como a elevação da Lei ao estatuto de instância todo-poderosa que nos esmaga, a nós, seus sujeitos, com uma culpabilidade e uma dívida que nunca poderemos pagar. Apela-se para o ‘amor’ com sua máscara de ‘Lei infinita’, que se ultrapassa a si mesma. Uma Lei que já não impõe proibições ou injunções específicas e determinadas (faça isso ou faça aquilo), mas repete simplesmente uma interjeição ‘vazia’: ‘não...’ Uma Lei em que tudo é simultaneamente proibido e autorizado, embora seja obrigatório.

Não resta dúvida que essa interpretação não cabe em nada a Manuel Zelaya, afinal ele não só não está morto como ele é o único que não poderia morrer. Essa interpretação legalista da morte de Cristo é inteiramente pertinente ao ‘povo hondurenho’ que morreu, sob o qual Zelaya, paradoxalmente, em seu íntimo, passa a manter seu débito, a sua dívida infinita, enquanto os mortos, torturados e vítimas, em geral, desse ‘golpe medonho’ triunfam, sempre, como aqueles que morreram, inocentes, por seu Líder ou, por assim dizer, pelo seu ‘ídolo’, em sua ‘idolatria’. Trata-se de três regimes legalistas: [1] Roberto Micheletti: a ‘lei incondicional kafkiana’ que se revela como uma injunção abstrata que fez de ‘todos’ (hondurenhos, principalmente os ‘zelaystas’) culpados precisamente por não saberem do que eram culpados, em geral, visível num epicentro da culpa: eram culpados por serem adeptos do governo zelaysta? Eram culpados por estarem se rebelando contra o governo de Micheletti? Eram culpados por que, de fato, cometeram crimes? Que crimes cometeram para ser culpados?; [2] o povo hondurenho: sob a interpretação legalista da morte de Cristo, o seja, quem triunfa morre, mas quem sobrevive é ‘acochado’ por uma ‘dívida infinita’, neste caso invertem-se os papéis, quem sobrevive é o Líder e quem morre (paga a pena, sofre o martírio, o ‘bode expiatório’) é o povo; [3] Manuel Zelaya: trata-se, em princípio, do ‘Julgamento Negativo de São Paulo’, mas, com efeito, de uma ‘Lei Judia’.

O Retorno do Wargus [Honduras II]



O Julgamento Negativo de São Paulo sobre a Lei pode ser descrito da seguinte forma: nenhuma carne será justificada diante de Paulo pelas obras da lei, porque pela lei vem o conhecimento do pecado (a punição). Ora, o aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei. Por isso Cristo nos resgatou da maldição da lei. Portanto, quando diz Paulo que ‘a letra mata’ e o espírito vivifica, esta letra é precisamente a Lei. Entre os luteranos, Rudolf Bultman ressaltou que o esforço do homem para obter a sua salvação obedecendo à Lei só pode conduzi-lo ao pecado; na realidade, esse próprio esforço já é, no fundo, um pecado. A Lei traz à luz o fato de o homem ser um pecador, ou porque o seu desejo culpado o leva a transgredir a Lei, ou porque esse desejo se disfarça em zelo para manter a Lei, conforme Slavoj Zizek em "A Marioneta e o Anão". Considerar que Manuel Zelaya será ‘julgado’ ou ‘submetido’ pelo poder legislativo ou Congresso Hondurenho pressupõe que ele, lógico, duas uma, ou será condenado ou absolvido. Trata-se, nesta análise, apenas sobre a hipótese de ele ser absolvido ou de se estruturar uma defesa contra, talvez, ‘um crime que nem bem ele saiba se cometeu ou se ia cometer’ (às duras penas da Lei incondicional kafkiana de Micheletti). Neste caso, parte-se do princípio do ‘Julgamento Negativo de Paulo’, que destaca o ‘crime’ (o pecado) na própria Lei, imanente a ela, por isso a Lei mata ou pune.

Em seguidaí, com efeito, destaca-se alguns aspectos da ‘Lei Judia’: se, através da Lei, os judeus viveram na diáspora, logo mantiveram certa distância relativa à sociedade no seio da qual vivem, então a Lei Judia é fundada num gesto de ‘desprendimento’. A Lei Judia não é uma lei social altamente reguladora (das trocas sociais, dos fluxos comerciais, etc.), mas uma lei que introduz outra dimensão: a da ‘justiça divina’. A ‘justiça divina’ não é o restabelecimento de um equilíbrio, como processo inexorável do Destino, que restabelece o equilíbrio perturbado pela hubris humana. A ‘justiça judia’ é a visão do estágio final, em que serão anuladas todas as injustiças infligidas aos indivíduos. Quando os judeus ‘se desligam’ em diáspora e mantêm certa distância relativamente à sociedade em que vivem, não fazem isso em nome de uma identidade substancialmente diferente... os ‘judeus’ são, de fato, ‘desenraizados’, a sua Lei é abstrata, sem dúvida, é ela que os extrapola da substância social. Que atributos pertencem a Manuel Zelaya para ser julgado sob um paradigma legal judaico? Primeiramente, não resta dúvida, ele não é um judeu diasporizado distante da sua sociedade, mas também Zelaya não abandonou o poder e saiu rumo a Costa Rica e peregrinou entre palácios de governos na América Latina em busca de apoio, por livre e espontânea vontade. Manuel Zelaya não foi refugiado nem exilado, talvez, o termo correto seja ‘abandono’, na acepção de Giorgio Agamben em “Homo Sacer”, ‘abandono’ ou ‘bando soberano’. Entende-se que qualquer lei que se submeta à manifestação do ‘abandono’ deve se modelar através do ‘gesto de desprendimento’ da lei Judia.

O ‘desligar’ de Zelaya, como o dos judeus, não ocorreu por uma ‘identidade diferenciada’, mas por forças externas que provieram do ato histérico e precipitado da Corte Jurídica e/ou de Micheletti. Em seguida, não se trata do Congresso Hondurenho julgar mais uma vez Manuel Zelaya, até que realmente se prove alguma coisa contra ele [até porque qual o crime que se comete em Honduras que se justifica no abandono, sob a insígnia do wargus, do homem-lobo?]. O que o Congresso Hondurenho só pode fazer é estabelecer o que designa ‘estágio final’ na justiça judia ou na ‘justiça divina’, qual seja: a anulação da injustiça que se infligiu aos indivíduos, nesse caso, o ‘abandono’(ou a expulsão da comunidade, aberto a todos, livre, remetido à própria separação, entregue à mercê de quem o abandonou, dispensado e, ao mesmo tempo, capturado). A questão é a de não se admitir a hipótese de que a ‘cabeça’ de Zelaya esteja à disposição de um Congresso, muitas vezes articulado com o presidente interino Micheletti, principalmente nesses ‘estados de exceção’ mutiladores; afinal trata-se de conceder o writ Habeas Corpus, modelado, nessa interpretação, pela ‘justiça divina’ da Lei Judia: o Habeas Corpus tem a função de garantir a liberdade física do súdito, isto é, que nenhum homem livre seja detido, aprisionado, despojado de seus bens, nem, principalmente, 'posto fora da lei' ou molestado de modo algum: "nós não poremos nem faremos por as mãos nele, a não ser após um juízo legal de seus pares e segundo a lei do país". Em analogia, um antigo writ que precede o Habeas Corpus era destinado a assegurar a presença do imputado em um processo, o que leva a rubrica de homine replegiando (ou repligiando). O Habeas Corpus é um procedimento jurisdicional voltado à proteção da liberdade individual. O que nos assusta em Honduras é exatamente como se ignorou esse procedimento até agora [Zelaya somente voltou a Honduras com o apoio da e na Embaixada Brasileira], já que o Habeas Corpus recebeu forma de lei e se tornou inseparável da história da democracia ocidental? Trata-se, sobretudo, de muita acuidade em se tratando das relações obscuras entre o Congresso e o Executivo num ‘estado de exceção’. Essa é a maior preocupação nesta hora que, em 30 de outubro de 2009, estabeleceu-se o retorno ao poder do presidente deposto, Manuel Zelaya, mas a restituição ficou nas mãos do Congresso e da Suprema Corte da Justiça.

Acts e Plenos Poderes [Honduras I]



Reconhece-se, com frequência, nos ‘estados de exceção’, em particular, a progressiva erosão dos poderes legislativos de Parlamentos que se limitam a apenas a ratificar disposições promulgadas pelo executivo sob a forma de decretos com força de lei. Acontece que uma das características essenciais do estado de exceção é a abolição provisória da distinção entre poder legislativo, executivo e judiciário, o que demonstra a sua tendência em se transformar numa prática duradoura de governo. Problema técnico essencial, cuja extensão dos poderes executivo no âmbito do legislativo (por meio da promulgação de decretos e disposições) não deixa de ser uma consequência da delegação contida em leis ditas de ‘plenos poderes’.

O lugar, por exemplo, lógico e pragmático, de uma teoria do estado de exceção na constituição norte-americana está na dialética entre os poderes do presidente e os do Congresso, conforme ressaltou Giorgio Agamben em seu livro "Estado de Exceção". A base textual do conflito está, antes de tudo, no art. 1 da Constituição, o qual estabelece que o ‘privilégio do writ do Habeas Corpus não será suspenso, exceto se, em caso de rebelião ou de invasão, a segurança pública o exigir’; mas ele não define qual é a autoridade competente para decidir sua suspensão (embora a opinião dominante permita presumir que a cláusula seja dirigida ao Congresso e não ao presidente). Durante a guerra civil, entre 1861-1865, no dia 27 de abril de 1861, Abraham Lincoln autorizou o chefe de estado-maior do exército a suspender o writ de habeas corpus, sempre que considerasse necessário, ao longo da via de comunicação entre Washington e Filadélfia, onde haviam ocorrido desordens. Lincoln impôs uma censura sobre o correio e autorizou a prisão e detenção em cárceres militares das pessoas suspeitas de ‘disloyal and treasonable practices’, em 1862 estendeu o estado de exceção a todo o território dos Estados Unidos, enfim, a relação entre presidente e Congresso, de fato, foi apenas ratificar os atos de Lincoln. O presidente Woodrow Wilson concentrou em sua pessoa, durante a Primeira Guerra Mundial, mais poderes ainda mais amplos que aqueles que se arrogaram a Abraham Lincoln. Ao invés de ignorar o Congresso, como fez Lincoln, ele preferiu, a cada vez, fazer com que o Congresso lhe delegasse os poderes em questão. De 1917 a 1918, o Congresso aprovou uma série de Acts [do Espionage Act de junho de 1917 ao Overman Act de maio de 1918] que atribuíram a Wilson o controle total da administração do país. Outro exemplo, foi o de Franklin D. Roosevelt, desde quando no New Deal foi delegado ao presidente um poder ilimitado de regulamentação e de controle, sobre todos os aspectos da vida econômica do país. Neste sentido fica mais fácil compreender porque no ‘estado de exceção’ a suspensão do direito acaba por fundar novas leis.

Espera-se que no caso de Zelaya, o ‘estado de exceção’ não se defina nessa ‘assimetria de poder’ entre Congresso e Executivo, ou se não, então que se traduza na concepção ‘carnavalesca’ de Bakhtin ou nas ‘festas anômicas’ de Karl Meuil: uma zona em que a máxima submissão da vida ao direito se inverta em liberdade e licença; em que a anomia mais desenfreada se mostre em paródica conexão com o nomos. Que Manuel Zelaya seja recebido em Honduras sob uma dessas ‘festas anômicas’ que dramatizam uma irredutível ambiguidade com os ‘sistemas jurídicos’ e que ao mesmo tempo mostrem que o que está em jogo na dialética entre essas duas forças é a própria relação entre o direito e a vida. Que se celebrem e que se  reproduzam, como uma paródia, a anomia em que a lei se aplica ao caos e à vida, sob a única condição de tornar-se ela mesma, no estado de exceção, vida e caos vivo.

De todo modo, como evitar ser acusado por nossa fraqueza, mas, principalmente, como evitar também de correr o risco de se tornar um bode expiatório, designado responsável por todos os nossos excessos? Talvez seja esta a maior de todas as questões que pairam no pensamento de Manuel Zelaya nesses últimos dias. Não resta dúvida, talvez as únicas questões que nenhum de nós cansou de refletir foram: como uma pessoa boa se torna má? Como uma democracia se torna uma ditadura? Enfim, nesses casos, como um ato diplomático não pode se furtar do gesto clássico de Antígona? Em outros termos, a diplomacia necessita sair, em certos casos, da esfera do domus e atingir a esfera da polis? Por que a democracia liberal brasileira, paradoxalmente, não reconheceu um gesto deste como legítimo, circunscrevendo um ato diplomático ideal apenas na escala doméstica?

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Senatus Ultimum: Honduras a Zelaya? [5]


A essa pergunta que ainda incomoda Honduras: caso Zelaya retorne ao poder, quem o reempossaria? O judiciário ou o legislativo? Acontece que Roberto Micheletti, em seu afã de conquistar o poder através da suspensão do direito ou do estado de exceção, destronou dois poderes num só golpe: o executivo de Zelaya e o judiciário. Se Zelaya executa a lei, se o judiciário obedece a lei, em contrapartida Roberto Micheletti representa um vazio de direito no momento da suspensão das leis. E o legislativo, o senado?

Há um instituto do direito romano que pode ser considerado o arquétipo do moderno Ausnahmezustand e que talvez, justamente por isso, não tenha recebido atenção suficiente: o iustitium, segundo Giorgio Agamben em seu livro “Estado de Exceção”. Quando tinha notícia de uma situação que punha a República em perigo, o Senado emitia um senatus consultum ultimum por meio do qual pedia aos seus cônsules, pretores, tribunos da plebe e, no limite, a cada cidadão, que tomassem qualquer medida considerada necessária para a salvação do Estado. Esse senatus-consulto tinha por base um ‘decreto’ que declarava o tumultus: situação de emergência provocada por uma guerra externa, uma insurreição ou uma guerra civil, e dava lugar à proclamação de um iustitium edicere ou indicere. Destaca-se a guerra civil que proliferou a partir do estado de exceção (iustitium) imposto por Micheletti em Honduras, entretanto ressalta-se a confusão que houve entre seu estado e uma ditadura.

Theodor Mommsen, no último volume do Staatsrecht, definiu o senatus-consulto como uma ‘quase ditadura’, introduzida no sistema constitucional no tempo dos Gracos: no último século da República, a prerrogativa do Senado de exercer sobre os cidadãos um direito de guerra nunca foi seriamente contestado. Mas Adolphe Nissen interpretou, primeiramente, o senatus consultum ultimum, a declaração do tumultus e o iustitium sistematicamente ligados: o consultum pressupõe o tumultus, enquanto o tumultus é a causa do iustitium. No sintagma senatus consultum ultimum há um valor técnico repetido para definir a situação que justifica o consultum e a vox ultima; a convocação dirigida a todos os cidadãos para a salvação da república. Ultimus deriva de uls, que significa ‘além’, desse modo, o significado de ultimus é o que se encontra absolutamente além, o mais extremo. Em relação a que o senatus consultum ultimum se situa em tal dimensão de extremidade? Em relação à ordem jurídica que, no iustitium, é de fato suspensa. Senatus consultum ultimum e iustitium marcam o limite constitucional (desde a ordem constitucional romana). Antecipa-se, logo, ao assinalar a função última e além, que compete ao senado em uma República, através do senatus-consulto. Mas onde fica o jurídico? Esvaziado por um magistrado posto de lado por sua própria suspensão do direito. Logo o senatus seria o poder que daria de volta, caso isso ocorre, ao Manuel Zelaya, não o judiciário, por quê?

Trata-se do sentido paradoxal do instituto jurídico, que consiste na produção de um ‘vazio jurídico’.

A contraposição formal entre tumultus, que é decretado pelo Senado, e o iustitium, que deve ser declarado por um magistrado, supondo-se que o iustitium era tido como uma suspensão integral do direito, segundo Middel essa tese era excessiva, porque o magistrado não podia libertar-se sozinho da obrigação das leis, embora o magistrado agisse com base em um estado de perigo que autorizava a suspensão do direito. Aqui reside a 'penalização' do jurídico e não do senado hondurenho, portanto o estado de exceção em Honduras foi iustitium e não tumultus. Resulta daí, que o iustitium não pode ser interpretado pelo paradigma da ditadura. No iustitium, mesmo declarado por um ditador, não existe criação de nenhuma nova magistratura – o poder ilimitado, dos que gozam ‘de fato’ iusticio indicto (os magistrados existentes), resulta não da atribuição de um imperium ditatorial, mas da suspensão das leis que tolhiam sua ação. Nessa perspectiva, o estado de exceção não se define, segundo o modelo da ditadura, como uma plenitude de poderes, mas, sim, de um vazio e de uma interrupção do direito. Essa foi a sensação comum dos hondurenhos e de muitos de nós para definir a situação do golpe - entre ditatorial ou estado de exceção, às vezes, estado de sítio. Entende-se hoje que foi um golpe de estado, mas de exceção, de suspensão dos direitos e não de uma ditadura, embora as Forças Armadas hondurenhas tenha mantido um papel fundamental neste golpe. Ressalta-se que o estado de exceção (iustitium)está correlacionado com o senatus-consulto e com o tumultus. O que leva a crer, então, que o judiciário (iustitium) é predeterminado pelo tumultus (guerra civil), sob o qual reside a manifestação do senatus-consultum. Iustitium significa estado de exceção (suspensão do direito), uma vez 'desfeito', como parece no caso de Honduras, desfez-se a participação do judiciário. Resta ao legislativo... limite último?

Iustitium de Micheletti, Nomos de Zelaya


Através de uma pesquisa sobre o iustitium, baseada no trabalho de Giorgio Agamben em “Estado de Exceção”, enuncia-se, pois: [1] o estado de exceção não é uma ditadura, mas um espaço vazio de direito, uma zona de anomia em que todas as determinações jurídicas estão esvaziadas, desativadas, onde são falsas todas as doutrinas que tentavam vincular o estado de exceção ao direito, são falaciosas as doutrinas de Schmitt que tentam reinscrever o estado de exceção a um contexto jurídico; [2] acontece que esse vazio de direito é tão essencial à ordem jurídica que esta deve buscar assegurar, de todas as formas, uma relação com ele, como se, para se fundar, ela devesse manter uma relação com ele; [3] o problema crucial ligado à suspensão do direito é o dos atos cometidos durante o iustitium, à medida que não são transgressivos nem executivos tampouco legislativos, mas situam-se em um não-lugar absoluto ao que se refere ao direito.

Em 1877, Adolphe Nissen, professor na Universidade de Estrasburgo, publica a monografia Das Iustitium: Eine Studie aus der Römischen Rechtsgeschichte. Ao questionar como insuficiente a acepção usual do termo iustitium como ‘férias judiciárias’ (Gerichtsferien), para ele, tratava-se de uma situação de exceção – de por de lado as obrigações impostas pela lei à ação dos magistrados. Nissen definiu assim o iustitium como o que suspende o direito e põe de lado todas as prescrições jurídicas. Quando o direito não estava mais em condições de assumir sua tarefa suprema, a de garantir o bem comum, abandonava-se o direito por medidas adequadas à situação e em caso de necessidade, os magistrados eram liberados das obrigações da lei por meio de um senatus-consulto, em caso extremo o direito também era posto de lado. Quando se tornava incômodo, em vez de ser transgredido, era afastado, suspenso por meio de um iustitium. Já se viu na história das Repúblicas os magistrados, o jurídicos, abandonarem-se de sua obrigação legal, mas não se viu ainda o legislativo, que é o limite, o além do poder num estado de exceção. Não pensaria outra coisa senão no legislativo, entregar ao soberano o poder que lhe foi suspenso. O que significa então, em termos do poder executivo suspender a lei, o direito, num estado de exceção como em Honduras? O que significa suspender as leis para o jurídico senão colocá-lo de lado, talvez seja o infortúnio de Micheletti.

A identificação entre soberano e lei representa a primeira tentativa de afirmar a ‘anomia’ do soberano e, ao mesmo tempo, seu vínculo essencial com a ordem jurídica. O nomos empsychos é a forma originária do nexo entre que o estado de exceção estabelece entre um dentro e um fora da lei e, assim constitui o arquétipo da teoria moderna da soberania. Não foi assim que Manuel Zelaya foi identificado como anômico, irregular, culpado, excluído, em outras palavras, posto como fora da lei? O soberano como lei viva (nomos empsychos) que coincide com a anomia, então é intimamente anomos. Enunciada através da eleição democrática: [a] um presidente [rei, soberano] é o mais justo e o mais justo é o mais legal; [b] sem justiça ninguém pode ser presidente [rei, soberano], mas a justiça é sem lei; [c] o justo é legítimo e o soberano, que se tornou causa do justo, é uma lei. Parafraseado de Diotogenes, em seu tratado da soberania, parcialmente conservado por Stobeo.

Ainda cabe distinguir o soberano, que é a lei, e o magistrado, que se limita a respeitá-la; a identificação entre lei e soberano tem por consequência a cisão da lei em uma ‘lei viva’ (nomos empsychos), hierarquicamente superior, e uma lei escrita (gramma), a ele subordinada. Honduras é composta por seu magistrado (jurídico, archon), por um comandado e pelas leis. Destas leis, a viva é o soberano (por Zelaya, no limite do vazio de direito ou das suspensões das leis, Micheletti), a inanimada é a letra. Na imagem que fez A. Delatte em seu “Essai sur la politique pythagoricienne”, a lei sendo o elemento primeiro, o rei é legal, o magistrado é conforme (à lei), o comandado é livre e toda a cidade é feliz; mas quando ocorre um desvio, o soberano é um tirano, o magistrado não é conforme a lei e a comunidade é infeliz. Ocorre que elementos anômicos são, portanto, introduzidos na polis pela pessoa do soberano, sem, aparentemente, arranhar o primado do nomos (o soberano é, de fato, ‘lei viva’). Há ainda porque perguntar: por que o estado de exceção executa a suspensão da lei, característica de alguns institutos jurídicos arcaicos?

Soberano é verdadeiramente um nomos empsychos, uma lei vivente. Por isto, mesmo permanecendo formalmente em vigor, a distinção dos poderes que caracteriza o Estado democrático e liberal perde aqui o seu sentido. Daí a dificuldade de julgar, segundo os normais critérios jurídicos, aqueles que, como Roberto Micheletti, não haviam feito mais do que executar seus atos como lei, assim como Eichmann cometia suas atrocidades através da lei, mas em nome do Führer.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Desastre Ético na Honduras de Micheletti


Foi Lenin quem mostrou, de modo claro em “Estado e Revolução”, que a meta revolucionária não é a tomada do poder nem a substituição de um portador do poder (‘eles’) por outro (‘nós’), mas minar, desintegrar, os próprios aparelhos do poder estatal. De que forma então foi possível compreender a resistência ao poder como se preparasse um terreno para o salto a uma ‘democracia absoluta’, no qual a multidão se governa diretamente, as tensões se resolvem, a liberdade explode em autoproliferação eterna? Desvelam-se inconsistências estruturais do poder, por um lado, “o alvo é nada, o movimento é tudo”: o perigo real que se deve resistir é a própria noção de um corte por meio do qual o antagonismo social básico será dissolvido e a nova era de uma sociedade autotransparente e não alienada chegará, para Ernesto Laclau e Chantal Mouffe em seu livro “Hegemony and Socialist Strategy”, essa noção nega tanto o político (espaço de antagonismo e luta pela hegemonia) quanto a finitude ontológica da condição humana e, portanto, qualquer tentativa de realizar esse salta deve acabar em desastre totalitário. Por outro lado, Giorgio Agamben em seu livro “Estado de Exceção” demonstra que o círculo vicioso do vínculo entre poder legal (o Estado de Direito) e a violência é sustentado pela esperança messiânica utópica de que é possível romper esse círculo e sair dele num ato de ‘violência divina’, benjaminiana. A posição de Giorgio Agamben detecta que o espaço de luta política está fechado e nenhum movimento emancipatório democrático é desprovido de sentido, enfim, não podemos fazer nada além de esperar com complacência a explosão milagrosa da ‘violência divina’.

A libertação revolucionária autêntica é identificada muito mais diretamente com a violência; quando é a violência como tal –, o gesto violento de descartar, de estabelecer uma diferença, de traçar uma linha de separação – que liberta. Em sua perspectiva paraláctica dessa ‘violência divina’, no livro “A Visão em Paralaxe”, Slavoj Zizek distinguiu a legitimação da violência entre o ‘guerreiro zen’ e a antiga tradição ocidental, de Cristo a Che Guevara, que exaltam a violência como ‘trabalho de amor’. A ‘compaixão budista’ (aliás, hindu) deve perturbar e opor-se ao ‘Amor cristão, intolerante e violento’. A postura budista é de indiferença, de estancar todas as paixões que lutam para criar diferenças, ao passo que o ‘amor cristão’ é a paixão violenta de introduzir uma Diferença, uma lacuna na ordem do Ser, de privilegiar e elevar um objeto à custa dos outros. Sob a superfície hondurenha a imagem de Manuel Zelaya é desse guerreiro de tipo ‘cristão’ que se elevou em relação aos compatriotas democraticamente, mas ao mesmo tempo ocupa hoje a expiação, por ser deposto; enquanto a imagem de Roberto Micheletti é de indiferença, frieza em relação aos seus ‘inimigos zelaystas’ e se apresenta, mesmo provisoriamente, no mínimo, para estancar as paixões dos hondurenhos, tendo seu presidente cassado.

Destaca-se então, após a distinção entre os tipos de ‘guerreiros’ no campo de batalha hondurenho, as formas de expurgos ferozes acionados pelo ‘governo de facto’ [sic], ou melhor, estado de exceção ou regime autoritário instalado em Honduras, pela convicção de Roberto Micheletti, que é tanto désastre (Evento-verdade stalinista) quanto désêtre (Pseudo-evento fascista), conforme a diferenciação promovida por Alain Badiou em seu livro “Ética”. Trata-se sim de uma violência de tipo nazista: quem não se envolveu em nenhuma atividade política oposicionista (nem fosse de origem judaica) podia sobreviver e manter aparentemente uma vida cotidiana normal; mas também de uma violência estilo stalinista: ninguém estará em segurança – qualquer um pode ser inesperadamente denunciado, preso e fuzilado como traidor.

Não é a Roberto Micheletti que se refere o tom de um homem que se quer herói, como o mais estranho fazedor de força, em confronto violento? Não é este homem quem faz cumprir a ordem recorrendo a uma violência que impõe leis? Não é ele que só pode impor ou fundar uma nova lei excetuando-se do Estado de Direito? Senão ninguém seria martirizado por questionar a Constituição. Muitos de nós, no mundo todo, aguardamos que a ‘luta pseudo-heróica’ de Micheletti esteja fadada a fracassar, em Honduras hoje e sempre.

Martin Heidegger na “Introdução à Metafísica” definiu a essência do homem como quem trava uma batalha heroicamente perdida contra ‘o Todo esmagador do ser’ ao tentar impor-lhe violentamente uma ordem projetada, que essa essência penetre nos poros de Micheletti e o exploda de uma vez por todos, não podemos mais suportar pseudo-heróis totalitários, beligerantes. Desse modo, a tirania de Roberto Micheletti conseguiu promover a inversão de um agon (quando dois adversários competem de maneira amistosa) a um polemos (quando o adversário não é um parceiro, mas um inimigo). Martin Heidegger opôs a guerra propriamente dita (polemos) a agon (uma luta competitiva), a partir da sua leitura do 53 DK de Heráclito sobre ‘a guerra como pai e rei de tudo’: se não é Zelaya e os zelaystas os inimigos de quem emana uma ameaça essencial ao ser de um povo como o de Honduras, após o embuste do estado de exceção encenado por Micheletti. Se eles ainda não são os inimigos nem de longe os mais perigosos – o inimigo não tem de ser externo, como os brasileiros e sua embaixada, mesmo que não haja nenhum inimigo por aí: a necessidade fundamental é encontrar um inimigo, trazê-lo à luz, criá-lo, embora seja muito mais difícil rastrear o inimigo, manter-se pronto a atacá-lo, cultivar e aumentar a prontidão constante a propósito da sua aniquilação completa. Porque o ‘zelaysmo’, este sim, já foi criado, aparentemente atacado, entretanto a ‘monstruosidade política’ tem sido, para nós, um tal Micheletti, que tenta se instalar na raiz mais íntima de Honduras e parasitar o seu povo: uma vez quebrada a espada (Forças Armadas), ele estará desarmado; não se enganem com esse discurso com numerosas injunções militares acompanhado por declarações de paz. Povo hondurenho permaneça ativo e engajado no mundo, sem muito apego, mantendo-se intacto dentro dessa atitude, porque Roberto Micheletti não age mais como pessoa, fica completamente dessubjetivado, na verdade não é ele, mas a sua espada que mata.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

A Micheletti, o Déspota em sua Tirania


... mas ele não se vê canibal, pois não está correndo no sangue de Honduras, mas ele a canibalizou. Comeu-a como quem come da própria carne. Ele não vê o sangue que escorre pelos hondurenhos, até porque foi ele mesmo quem o fez escorrer: é por um estado de violência permanente que o déspota pode impor sua vontade ao corpo social inteiro. O déspota é aquele que exerce fora do estatuto e fora-da-lei, mas de uma maneira intrincada com a sua existência mesma. O déspota impõe de uma maneira criminosa seu interesse. Como fora-da-lei, o déspota é um indivíduo sem vínculo social. O déspota é o homem só.

Michel Foucault definiu, em seu curso "Os Anormais", o déspota como aquele que efetua o crime máximo: o crime da ruptura total do pacto social, pacto pelo qual o próprio corpo da sociedade deve existir e se manter. O déspota é aquele cuja existência coincide com o crime.

Há uma espécie de simetria ou de parentesco entre o criminoso e o déspota, pois são dois indivíduos que desprezaram ou romperam com o pacto fundamental, fazem de seu interesse a lei arbitrária que querem impor sobre os outros. Duport, em 1790 discutiu sobre o Código Penal: "O déspota e o malfeitor perturbam, um como o outro, a ordem pública. Uma ordem arbitrária e um assassinato são crimes iguais, a nosso ver". O velho tema do vínculo entre o soberano acima das leis e o criminoso abaixo das leis, desses dois fora-da-lei, encontrado bem antes da Revolução Francesa.

Tendo suportado por algum dia o peso do poder do déspota como indivíduo, e não como corpo social, a população terá de se livrar dele. A esse fora-da-lei: qualquer um pôde matar o rei!

Dizia Saint-Just: "O direito dos homens contra a tirania é um direito pessoal".

Qualquer coisa sobre a lei, o direito e Constituição em Honduras diz-se:

Não se é tiranizado senão pela lei, segundo Gilles Deleuze em seu livro “Sacher-Masoch”. As paixões de meu vizinho são infinitamente menos temíveis que a injustiça da lei, pois as paixões desse vizinho são contidas pelas minhas, enquanto nada impede, nada contraria as injustiças da lei.

Só se é tirano pela lei: a tirania só prospera pela lei. Nunca é na anarquia que nascem os tiranos, só os vemos nelas se autorizando. É o nosso ódio contra o tirano, por isso mostramos que a lei torna possível o tirano, que fala a linguagem da lei e não possui outra linguagem.

Estamos prontos para uma antitirania hondurenha e falamos a língua de Sade como nenhum tirano poderia falar.

domingo, 4 de outubro de 2009

Zelaya [4]: o Golpe (fictio) e a Embaixada


O que ocorreu com a diplomacia brasileira em Honduras? Esta não é uma questão muito simples, não por causa do bordão jornalístico de oposição sobre o qual reside a manifestação de que a diplomacia não deveria nunca imiscuir-se em assuntos internos de outro país. A natureza da diplomacia está, primeiramente, nas relações internacionais, não nacionais. O mecanismo diplomático moderno, no fim da Guerra de Trinta Anos, após as negociações do Acordo de Vestfália, era atribuído aos diplomatas, embaixadores, que negociassem explicitamente os novos traçados das fronteiras, as novas divisões dos Estados, as novas relações estabelecidas entre os Estados e os Impérios, as zonas de influência dos países mais forte: tudo isso sobre o princípio do equilíbrio entre diferentes Estados europeus. Como arquitetar esse equilíbrio de forças sem interferir internamente nos países? Entretanto é coerente essa argumentação liberal, opositora em todo caso em Honduras e no Brasil, pois trata-se de um ponto referencial da técnica diplomática, mas da Idade Média e não moderna.

Compreende-se a Guerra Medieval, como uma guerra com comportamento essencialmente jurídico ou judicial, de acordo com Michel Foucault em seu livro “Segurança, Território, População”. Fazia-se guerra quando havia uma injustiça, uma violação de direito ou quando alguém pretendia certo direito que era contestado por outro. Na guerra medieval privada, não havia nenhuma descontinuidade entre o universo do direito privado, no qual se tratava de liquidar litígios, e o mundo do direito, que ainda não podia se chamar de direito público ou internacional, mas era o mundo dos enfrentamentos dos príncipes. Estava-se sempre na liquidação do litígio, dessa forma os opositores-liberais não concebem o problema de Honduras como um caso de diplomacia, de direito público e internacional, mas um problema corriqueiro entre déspotas, príncipes, na esfera dos litígios de direito privado. Era a guerra privada que adquiria uma dimensão pública, ou uma guerra pública como uma guerra privada. O Golpe de Honduras não deixa de ser visto pela direita conservadora no Brasil, como uma espécie de ‘guerra de direito’: guerra liquidada com um procedimento jurídico, por meio de uma vitória que provenha de um julgamento de Deus, ou seja, Zelaya perdeu porque o direito não estava do seu lado. As novas técnicas diplomático-militares são investidas caso os Estados estejam, postos uns ao lado dos outros, numa relação de concorrência, assim encontra-se um sistema que permita limitar o máximo possível a mobilidade de todos os outros Estados; sua ambição, sua ampliação, seu fortalecimento, deixando aberturas sem provocar seus adversários e sem acarretar seu próprio desaparecimento ou enfraquecimento, o que ocorre em parte com Honduras e a causa, logicamente, da intervenção diplomática do Brasil no país. A questão-problema é que a diplomacia brasileira vem dialogando com o poder político-jurídico hondurenho e não com os militares que dão sustentação [auctoritas] a Micheletti, que tornam efetivamente o governo de Honduras autoritário.

Quando Zelaya deu a ordem aos generais para fazerem o plebiscito mesmo contra a decisão da Justiça, eles correram a consultar uma equipe de advogados. Foram informados de que ao obedecerem à ordem presidencial e desafiarem a Justiça, estariam violando a Constituição, segundo um artigo de Reinaldo Azevedo intitulado “Alternância de Poder e Constituição Neles!”, publicado na Veja de 07 de outubro de 2009. Tantas atitudes poderiam ser tomadas que não fosse simplesmente depor um presidente, uma vez a Justiça não permitindo o plebiscito, forças poderiam apenas ter impedido o ato, sem ‘cortar a cabeça’ do príncipe? Sem barbárie. O que ocorreu nestas interpretações, jurisprudências, hermenêuticas jurídicas que levou Zelaya a ser deposto? Sem recorrer ao fato de que as Forças Armadas preferiram, logo, outra inconstitucionalidade, a de abandonar Zelaya na Costa Rica, de pijamas. Trata-se de uma Guerra de Direitos à la Idade Média, do modo que se descreveu acima e não de um dispositivo diplomático-militar que se aproxime do moderno equilíbrio de Estados, conforme o direito internacional de Vestfália? Conflito entre príncipes ou soberanos baseado num direito privado que se torna público, mas que ninguém deveria se intrometer? Acontece que o significado do estado de exceção mostra sua estrutura original, em que o direito inclui em si o vivente por meio de sua própria suspensão, que aparece claramente no abandono de Manuel Zelaya, do mesmo modo que apareceu na ‘military order’, promulgada pelo presidente dos Estados Unidos no dia 13 de novembro de 2001, por exemplo, mas que autoriza a ‘indefinite detention’ e o processo perante as ‘military commissions’ dos não cidadãos de envolvimento em atividades terroristas, conforme Giorgio Agamben em seu livro “Estado de Exceção”. O USA Patriot Act, promulgado pelo Senado no dia 26 de outubro de 2001, permite manter preso o estrangeiro suspeito de atividades que ponham em risco a segurança nacional dos EUA. Aconteceu no Patriot Act, na Military Order, e também com Manuel Zelaya; crime é o que é punido pela lei, e ponto final? Pelo menos para os neoliberais, de acordo com Michel Foucault em seu livro “Nascimento da Biopolítica”, o crime é toda a ação que faz um indivíduo correr o risco de ser condenado a uma pena, eles se colocam do ponto de vista de quem comete ou vai cometer o crime. Mas para um sujeito de uma ação, para o sujeito de uma conduta, ou de um comportamento, o que é o crime? Crime é aquela coisa que faz com que ele corra o risco de ser punido pela lei.

Se os homens soubessem o que é o Bem ou se soubessem a ele se confrontar, não precisariam da lei. A lei é apenas o representante do Bem num mundo que ele de certa forma abandonou, afirmou Gilles Deleuze em seu livro “Sacher-Masoch”. Obedecer à lei é o melhor, sendo este 'melhor' a imagem do Bem. O justo se submete as leis no país que nasce e em que vive, ele age assim para o melhor, mesmo guardando sua liberdade de pensar o Bem. Na Crítica da Razão Prática de Kant, a novidade do seu método está em que a lei não depende mais do bem, ao contrário, o Bem é que depende da lei. Isso significa que a lei deve valer por si mesma e se fundar em si mesma, que ela não tem outra fonte a não ser a sua própria forma. A imagem clássica da lei não é a representação de uma pura forma independente de um conteúdo e de um objeto, de um domínio e de circunstâncias, afinal isto caracteriza A Lei (a forma da lei), que exclui qualquer princípio superior capaz de fundá-la. Kant cria uma imagem propriamente moderna da lei: consiste em fazer girar o Bem em volta da Lei. Trata-se, portanto, no caso de Honduras de dois fósseis discursivos no âmbito da manutenção do Estado de Exceção instaurado por Roberto Micheletti: 1] A ideia de ‘guerra de direitos’ medieval, através da qual questiona-se o ato diplomático da embaixada brasileira, dando ‘asilo’ a Zelaya; 2] A ideia moderna, não clássica, de Lei, agora sim, que pune Zelaya não porque fez o plebiscito, mas que, uma vez comunicado ao Exército, o faria, caso o fizesse, isto ainda não era uma reeleição, seria apenas uma consulta, ou seja, a lacuna que se distancia entre o plebiscito e a reeleição de Zelaya, ao torpor da hermenêutica jurídica hondurenha, configurou a possibilidade do crime, ou melhor, crime porque fazia com que Zelaya corresse o risco de ser punido pela lei. À suspensão, portanto, à exceção... entre o que Zelaya iria fazer e o que Micheletti fez: o desdobramento normativo do direito no estado de exceção, direito que pode ser impunimente eliminado e constestado por uma violência governamental que, ao ignorar no âmbito externo o direito internacional e produzir no âmbito interno um estado de exceção permanente, pretende, no entanto, ainda aplicar o direito. É isto, pois o que Roberto Micheletti afirma, quando diz que instaurou um estado de exceção em Honduras, é, pois o que ele faz não reconhecendo o direito internacional, diplomático, em especial, brasileiro. Exatamente isso, exceção..

A exceção medieval representa uma abertura do sistema jurídico a um fato externo, uma espécie de fictio legis pela qual, no caso, se age como se a escolha do bispo tivesse sido legítima, mas o estado de exceção moderno é, ao contrário, uma tentativa de incluir na ordem jurídica a própria exceção, criando uma zona de indiferenciação em que fato e direito coincidem. É o estado de exceção, essencialmente um espaço vazio, onde uma ação humana sem relação com o direito está diante de uma norma sem relação com a vida, de acordo com Giorgio Agamben, trata-se de uma máquina com seu centro vazio que continuou a funcionar quase sempre sem interrupção a partir da Segunda Guerra, por meio do fascismo e do nacional-socialismo até nossos dias revoltantes em Honduras. Se é possível deter a máquina, mostrar sua ficção central, é porque entre violência e direito, vida e norma, não existe articulação substancial.

A política sofreu um eclipse duradouro porque foi contaminada pelo direito, concebendo-se a si mesma, no melhor dos casos, como poder constituinte, quando não se reduz simplesmente a poder negociar com o direito. Ao contrário, verdadeiramente política é apenas aquela ação que corta o nexo entre violência e direito.

Artigo 239
Artigo 272
Artigo 373
Artigo 374
Artigo 102
... forma-lei em sua vigência sem significado da Constituição de Honduras, aprovada democraticamente em 1982, ampara legalmente [auctoritas] um Estado de Exceção? E a Guerra Civil? Manifesta e explosiva através da legitimação da potência do povo, da potestas, ao mesmo tempo, emanada pela maioria dos eleitores de Zelaya, sob seu carisma weberiano? Creio que não seja bem assim, isto é, distingue-se, pois, primeiro, o que é democracia, depois o que será esse autoritarismo michelettiano: fictio.

Zelaya [3]: Corpo Duplo, Auctoritas/Potestas


A potência é o modo através do qual o ser se funda soberanamente, ou seja, sem nada que o preceda e determine, senão o próprio poder não ser. Soberano é aquele ato que se realiza simplesmente retirando a própria potência de não ser, deixando-se ser, doando-se a si. Enfim, a soberania é sempre dúplice, porque o ser se auto-suspende mantendo-se, como potência, em relação de bando [ou abandono] consigo, para realizar-se então como ato absoluto, que não pressupõe, digamos, nada mais do que a própria potência. Potência pura e ato puro são indiscerníveis, e esta zona de indistinção é justamente o soberano. Abandonar é remeter, confiar ou entregar a um poder soberano, e remeter, confiar ou entregar ao seu bando, isto é, à sua proclamação, à sua convocação e à sua sentença: expelido do país, Zelaya retorna clandestinamente e bravamente para ser reconduzido ao poder nos braços do povo ou ele proclamou a insurreição desde o dia em que voltou para Honduras, numa operação patrocinada pelo presidente da Venezuela, nas palavras de Thaís Oyama, em Veja de 07 de outubro de 2009. Se Zelaya está certo ou se correta está a atitude de Micheletti, ou se o Brasil em sua diplomacia criou um palanque eleitoral? São questões menores para o meu objetivo que é definir os traços do Estado de Exceção em Honduras e chegar a ver se são pertinentes ou não. Deste modo, Zelaya é quem foi banido, não Micheletti, assim ser banido não significa estar submetido a certa disposição de lei, segundo Giorgio Agamben, mas estar submetido à lei como um todo: entregue ao absoluto da lei, o banido é também abandonado fora de qualquer jurisdição. O abandono respeita a lei, não pode fazer de outro modo.

A soberania é, de fato, precisamente esta ‘lei além da lei à qual somos abandonados’, ou seja, o poder autopressuponente da lei [nómos], e somente se conseguirmos pensar o ser do abandono além de toda ideia de lei, poder-se-á dizer que saímos do paradoxo da soberania em direção a uma política livre de todo bando. Além de toda ideia de lei: como pensaríamos, pois o abandono de Zelaya se a Constituição de Honduras, no artigo 102, tenha falhado nas mãos de Micheletti? Ou seja, o artigo que dispõe que nenhum hondurenho poderá ser expatriado, abandonado, nem entregue a autoridades estrangeiras?

No final dos anos de 1950, Ernst Kantorowicz, publicou nos Estados Unidos The king’s two bodies, a study in medioeval political theology: a obra era uma obra-prima e a concepção de um ‘corpo místico’ ou ‘político’ do soberano, que se reconduzia constituiu uma etapa importante da história do desenvolvimento do estado moderno – ‘a doutrina jurídica dos dois corpos do rei’. Trata-se, sobremaneira, da ‘teologia política cristã’ que se destinava, através da analogia com o corpo místico de Cristo, a assegurar a continuidade daquele corpus morale et politicum do estado, sem o qual nenhuma organização política estável poderia ser pensada; e é neste sentido que não obstante as analogias com certas concepções pagãs esparsas, a doutrina dos dois corpos do rei deve-se considerar germinada a partir do pensamento teológico cristão e coloca-se portanto como uma pedra miliar da teoria política cristã. Sem desconsiderar a 'macabra ironia' de Ricardo II chegar a reconstruir a formação, na jurisprudência e na teologia medieval, da doutrina dos dois corpos do rei, Kantorowicz descreveu as cerimônias fúnebres dos reis franceses nas quais a efígie de cera dos soberanos ocupara um posto importante, tratada como a pessoa viva do próprio rei. Ou quando o exército romano estava quase derrotado pelos adversários latinos, o cônsul Públio Décio Mure, que comandava as legiões junto ao colega Tito Mânio Torquato, pede ao pontífice que o assistia na realização do rito: o pontífice lhe ordena que vista a toga pretexta e estando o cônsul de pé sobre a lança, com a cabeça velada e a mão estendida sobre a toga de modo a tocar o queixo, faz com que ele pronuncie estas palavras: ‘Ó Juno, ó Júpiter, ó pai Marte, ó Deuses... então, cingindo a toga ao modo gabínio, monta a cavalo em armas e se lança em meio aos inimigos, e parece a ambas as fileiras bem mais venerável que um homem, semelhante a uma vítima expiatória. Duas uma: se o homem, que foi assim votado morre, isto está em conformidade com o devido; mas se ele não morre, é preciso então sepultar uma imagem [signum] com sete pés de altura e imolar em expiação uma vítima. O signum ocupa o posto de cadáver ausente, seu duplo em uma espécie de funeral per imaginem. Sobrevivência embaraçosa do devoto que constitui para a comunidade uma situação embaraçosa: Qual o estatuto deste corpo vivente que não parece mais pertencer ao mundo dos vivos? Se o devoto sobrevivente é excluído tanto do mundo profano quanto do sagrado, isto ocorre porque esse homem é homo sacer. No caso de Honduras, o homo sacer é esse vivente embaraçoso que retorna, não morre, esse ‘devoto’ Manuel Zelaya, entretanto a imagem do pontífice traduz-se quando Micheletti respondeu a Thaís Oyama uma pergunta final: o senhor parece bem-disposto para alguém que está a frente de uma crise que já dura três meses. Micheletti responde: sabe por quê? Porque Deus está comigo.

Carl Scmitt, autor de Politsche Theologie, tentou definir o poder neutro do soberano no Estado de Exceção contrapondo, dialeticamente, auctoritas e potestas. Ele lamentava a falta de tradição da moderna teoria do Estado que opõe autoridade e liberdade, autoridade e democracia, até confundir a autoridade com a ditadura.

Já em 1928, em seu tratado de direito constitucional, mesmo sem definir a oposição, Schmitt evocava sua grande importância na doutrina geral do Estado e remetia para sua determinação ao direito romano: o senado tinha a auctoritas, mas é do povo que dependia potestas. A auctoritas não basta a si mesma: seja porque autoriza, seja porque ratifica, supõe uma atividade alheia que ela valida. Tudo se passa, analisa Giorgio Agamben em seu livro “Estado de Exceção”, como se para uma coisa poder existir no direito, fosse necessária uma relação entre dois elementos [dois sujeitos, Zelaya e Micheletti]: aquele que é munido de auctoritas [Micheletti] e aquele que toma a iniciativa do ato em sentido estrito [Zelaya]. Se os dois elementos ou os dois sujeitos coincidirem, então o ato será perfeito [caso Zelaya alterasse a constituição, por exemplo, ou fizesse o referendo]. Se houver, ao contrário, entre eles uma distância, o que realmente houve, será necessário introduzir a auctoritas para que o ato seja válido [o golpe de Estado, não a reeleição]. No direito público, auctoritas designa uma prerrogativa do Senado, dos patres, dos patres auctores: alusão perfeita ao Presidente do Congresso Nacional de Honduras, Roberto Micheletti. Auctoritas e potestas são claramente distintas e formam juntas um sistema binário: a auctoritas parece agir como uma força que suspende a potesta onde ela agia e a reativa onde ela não estava mais em vigor – é uma força que suspende ou reativa o direito, mas não tem vigência formal como direito. O que aconteceu com Honduras? O poder de reativar a potesta vacante não é um poder jurídico recebido do povo ou de um magistrado, mas decorre inteiramente da condição dos patres. Só podemos compreender esse conceito de auctoritas ou a partir do direito romano do período do principado ou como conceito fundamental do direito público nos Estados modernos autoritários.

Trata-se, pois de reler a teoria dos dois corpos do rei de Kantorowics, sob essa imagem dicotômica entre auctoritas e potestas. O soberano é a encarnação de uma auctoritas, ou seja, a qualidade de Duce e de Führer estão ligadas à pessoa física e pertencem à tradição biopolítica da auctoritas e não à tradição jurídica da potesta. Schmitt definiu o princípio da Führung por meio da identidade de estirpe entre chefe e seguidores, afinal o Führer é definido por meio de categorias psicológicas e sua unidade com o grupo social bem como o caráter original e pessoal de seu poder são fortemente enfatizados, a sua autoridade nunca é derivada, mas é sempre original a sua pessoa,além disso, nunca é coercitiva, baseia-se, pois no consenso e no reconhecimento de uma ‘superioridade de valores’. O que acontece com os líderes em Honduras? Qual a relação de potestas e Zelaya, auctoritas com Micheletti? Ressalta-se o autoritarismo de Micheletti e a potência insurgente do povo e do carisma de Zelaya? Acontece que o estado de exceção é o dispositivo que articula e mantém juntos os dois aspectos da máquina jurídico-política, instituindo um limiar de indecidibilidade entre anomia e nomos, entre vida e direito, entre auctoritas e potestas.

Zelaya [2]: Estado de Exceção e Guerra Civil


Thaís Oyama, correspondente da revista Veja, publica, em 07 de outubro de 2009, o seguinte, nas páginas 132-3: “Zelaya [...] exortando a população a praticar atos de desobediência civil contra o governo, foi o principal argumento para que o presidente Roberto Micheletti, que substituiu Zelaya no dia 28 de junho, decretasse o Estado de Exceção no país”. A partir disso, destaco duas observações, de um lado a desobediência civil, a guerra civil, de outro, o Estado de Exceção em Honduras decretado por Micheletti, presidente do Congresso Nacional que diz obedecer a Constituição de Honduras, nomeado presidente da república por seis meses, na ausência de Zelaya, suspeito por cometer delitos contra o país, ‘traição à pátria’, além de atos de corrupção. Certamente, Zelaya deve responder aos crimes que cometeu e se cometeu ser punido, mas não se deve por isso derrubá-lo do governo, instaurar um teatro sórdido da Ditadura Constitucional, muito menos implantar um Estado de Exceção.

Em primeiro lugar, entre os elementos que tornam difícil uma definição do estado de exceção, encontra-se sua estreita relação com a guerra civil, a insurreição e a resistência, ou seja, a desobediência civil que aplaca Honduras nesses dias. A guerra civil se situa numa zona de indecidibilidade quanto ao estado de exceção, dado que é o oposto ao estado normal e que a desobediência civil é a resposta imediata ao poder estatal aos conflitos internos mais extremos. Giorgio Agamben, em seu livro intitulado “Estado de Exceção”, define o totalitarismo moderno, neste sentido, como uma instauração, por meio do estado de exceção, de uma ‘guerra civil legal’ que permite a eliminação física dos adversários políticos e de categorias inteiras de cidadãos que, por alguma razão, não pareçam integráveis ao sistema político. Portanto, a desobediência civil provém do Estado de Exceção e não, como quer Micheletti, das exortações de Zelaya à população. Tanto no Direito de Resistência, enfim, quanto ao estado de exceção, o que está em jogo é o problema do significado jurídico de uma esfera de ação em si extrajurídica

Em segundo lugar, se a Constituição hondurenha prevê e evita, em seu artigo 374, o caudilhismo: todo aquele que desrespeitar esse artigo, como tentou Zelaya, deve ser considerado traidor da pátria, delito, punido com quinze a vinte anos de prisão. Mas onde está escrito na Constituição de Honduras que se deve instaurar em quaisquer circunstâncias um Estado de Exceção sob a forma de uma Ditadura Constitucional? Se Micheletti instaurou um Estado de Exceção em Honduras, ele ao mesmo tempo criou um ‘vazio de direito’: uma das características essenciais do Estado de Exceção é, segundo um dos seus maiores teóricos contemporâneos, Giorgio Agamben, a abolição, mesmo que provisória, do poder executivo, legislativo e executivo, o que mostra a tendência do estado de exceção tornar-se uma prática duradoura de governo. Essa promessa da Ditadura Constitucional, sobretudo, de alternação entre formas democráticas de governo traz em todos nós a sensação de uma ilusão, ‘ficção’, caso nos atentarmos numa compreensão de Clinton L. Rossiter [em seu livro Constitucional Dictatorship]: em tempos de crise, o governo constitucional deve ser alterado por meio de qualquer medida necessária para neutralizar o perigo e restaurar a situação normal, mas essa alteração implica um governo mais forte, no sentido de que o governo terá mais poder e os cidadãos menos direitos: a famigerada suspensão dos direitos humanos, constitucionais, etc. Está claro, desde o fim da República de Weimar, que mostrou não ser uma democracia e que o paradigma da ‘Ditadura Constitucional’ funciona, sobretudo como uma fase de transição, mas que leva fatalmente a instauração de um regime totalitário. Por uma ‘inconsciente ironia’, pela primeira vez na história [24 de junho de 1968, a coalizão entre democratas cristãos e socialdemocratas votou uma lei de integração da constituição que reintroduziria o estado de exceção, sob a alcunha de ‘estado de necessidade interna’] a declaração do estado de exceção era prevista Não para a salvaguarda da segurança e da ordem pública, mas para a defesa da ‘constituição liberal-democrata’.

Para compreender a localização de abandono, bando, em que se encontra Manuel Zelaya, adapta-se a concepção schmittiana de soberania, na Politsche Theologie: o soberano [Micheletti], que pode decidir sobre o estado de exceção, garante sua ancoragem na ordem jurídica. Mas, enquanto a decisão diz respeito aqui à própria anulação da norma [deposição de Zelaya], enquanto o estado de exceção representa a inclusão e a captura de um espaço que não está fora nem dentro [sobre a embaixada brasileira, por exemplo, as práticas diplomáticas de Celso Amorim]; o soberano [Micheletti] está fora da ordem jurídica normalmente válida [óbvio] e, entretanto, pertence a ela, porque é responsável pela decisão quanto à possibilidade de suspensão da constituição. Estar fora e ao mesmo tempo pertencer que atinge Zelaya e a embaixada brasileira, bem como assustadoramente Micheletti: eis, pois o paradoxo topológico do estado de exceção.

O Estado de Exceção é um espaço anômico, onde o que está em jogo é uma 'força de lei sem lei'. Esse é o nó que falta desatar em Honduras e desamarrar a exceção, através de atos diplomáticos. Então, tal 'força de lei sem lei' define o ato e a potência como elementos separados de modo radical, certamente como um elemento místico, ou melhor, um ‘fictio’ por meio do qual o direito busca atribuir-se a sua própria anomia.

Zelaya [1]: Lei e Vigência sem Significado


Sobre a Constituição de Honduras, aprovada em 1982, que amparou certa decisão da Suprema Corte de destituir o presidente Zelaya: a Lei, antes de ser uma fingida garantia contra o despotismo, ela é a invenção do próprio Déspota!

A Lei não começa por ser aquilo em que se tornará ou pretende se tornar mais tarde.

Nada, Nada! E, com efeito, há algo de comum ao regime da lei tal como aparece na formação imperial e ao modo como ele evoluirá mais tarde: a indiferença a designação. É isto que caracteriza a lei: significar não designando nada. A lei não designa nada nem ninguém, como assinalaram Gilles Deleuze e Félix Guattari em seu livro "o Anti-Édipo", com suas aporias semiológicas ao 'querer dizer', contra o ato hermenêutico ou a ‘interpretose paranóica’.

A Suprema Corte entendeu que a 'consulta popular' proposta por Zelaya para convocar uma Assembleia Constituinte destinava-se a alterar a cláusula pétrea (artigo 239), de que um presidente não poderá se recandidatar. Antecipação, suposição, antes do ato criminoso, a instauração de uma lei sobre algo que ainda vai acontecer ou que iria acontecer. Suponha-se que visito a cidade de São Paulo e ainda mantenho o hábito de fumar, por exemplo, em um bar qualquer, mexo em meus bolsos e encontro a minha carteira de cigarros: sou preso por que fumaria num ambiente proibido?

Trata-se, em outros termos, do modelo jurídico característico da Arte Neoliberal de Governar, quando o criminoso é julgado, mas não sob o crime que cometeu, mas sob um crime que poderia cometer, sob a possibilidade de se infringir a lei, conforme Michel Foucault em "Nascimento da Biopolítica"; trata-se de uma interpretação paranóica baseada no encadeamento de indícios que levariam um indivíduo posteriormente a um possível delito, assim que se atravessa a periculosa esteira do Estado de Direito.

Certamente, são cães que acham preferível ligar estreitamente o desejo e a lei na pura exaustão do instinto, ouvindo hipócritas doutores explicar o 'que é que isso quer dizer'? Essa é a característica da lei, segunda a qual ela governa as partes ainda não-totalizáveis nem totalizadas, compartimentando-as, organizando-as como tijolos, medindo sua distância e proibindo a sua comunicação, atuando assim como unidade formidável, embora formal e vazia: eminente, distributiva. Entretanto, a Lei possui outra característica, onde ela não faz conhecer o que quer que seja, nem tem objeto cognoscível, em que o veredito não preexiste à sanção e o enunciado da lei não preexiste ao veredito. Nessa lacuna entre essas duas características da Lei não se configura um caso de atuação diplomática? Talvez seja sempre nessa lacuna a única razão da diplomacia.

Nada impede, por isso, nenhum camponês muito menos Zelaya de entrar pela porta da lei, senão pelo simples fato de que esta porta já está sempre aberta e de que a lei não prescreve nada: nenhum hondurenho (artigo 102) poderá ser expatriado nem entregue pelas autoridades a um estado estrangeiro. Nessa paródia camponesa kafkiana, atribuída a esse código da constituição de Honduras, o poder da Lei está precisamente na impossibilidade de entrar no já aberto, de atingir o lugar em que já se está: Como esperar abrir se a porta está aberta? Giorgio Agamben em seu livro "Homo Sacer" expõe a forma pura da lei, em que ela se afirma com mais força justamente no ponto em que não prescreve nada: até que se prove o contrário, nada aconteceu em Honduras, a não ser um porvir de uma consulta (referendo, plebiscito) proposta pelo então presidente Zelaya, democraticamente eleito, que justificou uma atitude de antecipação na interpretação dos juristas hondurenhos, sobre um crime que poderia acontecer (reeleição, corrupção), acrescente-se a isso um 'presidente interino' de mãos dadas com as Forças Armadas, blindando Honduras em um Estado de Exceção que, paradoxalmente, promete ser apenas passagem para um Regime Democrático? Velho Golpe, Filme Datado.

Por isso, essa justificativa constitucional hondurenha de Roberto Micheletti define-se pelo relacionamento com a lei descrito como um 'nada da revelação', ou seja, significando com essa expressão um estágio em que a Lei afirma ainda a si mesma, pelo fato de que vigora, mas não significa. Honduras está onde a riqueza de significado falha e o que aparece, reduzido ao ponto zero do próprio conteúdo, todavia não desaparece, lá emerge o nada: uma Lei que se encontra em tal condição não é ausente, mas se apresenta na forma da inexequibilidade.

Vigência sem significado caracteriza o estado da lei que define o Golpe de Honduras, comandado por suas Forças Armadas e Micheletti, sob o qual Zelaya não consegue encontrar saída, respeitemos-lhe, realmente a Embaixada Brasileira tornou-se o único lugar, talvez a porta ou a Lei vazia? Todas as sociedades e todas as culturas, infelizmente, entraram em crises de legitimidade desta natureza, quando a Lei vigora, mas não significa.

Em Kant a forma pura da lei como ‘vigência sem significado’ aparece pela primeira vez na modernidade, demarcou Giorgio Agamben. Aquilo que na Crítica da Razão Prática ele chama de ‘simples forma da lei’, uma lei reduzida ao ponto zero de seu significado e que, todavia, vigora como tal. O limite, e ao mesmo tempo a riqueza da ética kantiana, está em ter deixado vigorar como princípio vazio a forma da lei: Kant chama de ‘respeito’ a esta condição de quem se encontra vivendo sob uma lei que vigora sem significar, sem prescrever nem vetar nenhum fim determinado. Respeito (Achtung, atenção reverencial); na ética kantiana, trata-se da motivação que um homem manifesta perante a própria lei (através do respeito que ela inspira), sem determinar quais objetivos se possa ter ou alcançar obedecendo a ela. Respeito, portanto, a todos os cidadãos comuns que por ventura tiveram seus direitos suspensos ou foram mortos nos muros de tantas ditaduras, até mesmos os judeus e os muçulmanos que foram banidos atrozmente nos Lager e na Guantanamo, em geral, ao sem-número de tipos e formas de bodes-expiatórios que sangraram pela terra, ao sabor do abandono e culpados pela virtualidade mórbida do Mal ou pela possibilidade paranóica do Perigo ou pela iminência ansiosa do Delito, isto é, não se trata de suspeita, mas do sentido cruel de uma Lei que se aplica se desaplicando. Manuel Zelaya? Mais um... dentre inúmeros, que se aplacaram na rede desta arcaica prática do bando, mais um que foi julgado por seus atos ilícitos e ficou à mercê da Exceção.

sábado, 19 de setembro de 2009

À Sombra dos Radares [Rafale II]


Os EUA adotaram, em setembro de 2009, uma ‘nova arquitetura de defesa’ contra o Irã, ao cancelar o 'escudo antimíssil' no Leste Europeu e substituí-lo por radares, sensores e interceptores. Assim, Clóvis Rossi indagou na F. São Paulo [18/09/2009] se não seria mais interessante que submarinos e aviões que o Brasil quer comprar [?]. A questão é o que se promete com o Rafale, que ele pode driblar, mais que os outros caças em licitação no Brasil, exatamente estes sensores e radares, ou seja, trata-se aparentemente de uma ‘aeronave-fantasma’, que precipita sua sombra e torna-se obscura nos radares, tal como o caça F117, usado pelos EUA na Guerra do Golfo por Bush-pai, Paul Virilio exemplificou essa tecnologia em "A Arte do Motor". Portanto, tecnologicamente o que se discute no Brasil é como driblar os radares, mas para Barack Obama o que está em questão é pura economia, poupar o 'luxo bélico', o que é óbvio após a crise dos papéis podres.

Desde 1976 o Brasil procura desenvolver essa tecnologia de radares, sensores e interceptores, como infra-estrutura básica no setor aeroespacial, com destaque para o pólo militar-industrial em São José dos Campos - SP. Por exemplo, o SISDACTA [Sistema Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo] foi estabelecido no país, com a primeira implantação em um polígono de 1.500.000 km2, entre Brasília-Rio de Janeiro-São Paulo-Belo Horizonte-Brasília, conforme João Baptista Peixoto em "Os Transportes no Atual Desenvolvimento do Brasil". Tratava-se de um sistema de detecção-radar através de unidades de detecção e de telecomunicações, estrategicamente localizadas para controlar aeronaves com ‘transponder’. De 1979 a 1973, entretanto, já se instalava um sistema nacional de telecomunicações por rede hertziana; de 1974 a 1984 incorporou-se ao sistema o satélite INTELSAT e, por fim, entre 1985 a 1988 desenvolveram-se dois satélites brasileiros, o Brasilsat I e II, histórico resumido, mas desenvolvido por Milton Santos e María Laura da Silveira em seu livro "O Brasil: Território e Sociedade no Início do Século XXI". O SIVAM [Sistema de Vigilância da Amazônia] realizou-se por meio de um convênio entre o Estado brasileiro e a empresa norte-americana Raytheon, em 2002, patrocinada e recomendada pelo governo dos Estados Unidos. Este acordo suscitou opiniões divergentes: cientistas nacionais identificaram o SIVAM como obra faraônica – uma "Transamazônica Eletrônica", além de criar relações de dependência desnecessária com os Estados Unidos.

Acontece que no âmbito do espaço hertziano, condutor dos sinais provenientes do espaço aéreo, explora-se a detecção multistática por meio de emissões não-cooperativas, mas o que isso quer dizer? Trata-se de um conceito soviético que põe o Radar obsoleto, uma vez que a televisão pode substituir os radares de vigilância ou de controle do tráfego aéreo e detectar em qualquer ponto do espaço atmosférico aviões em voo. A limitação só diz respeito ao alcance das estações transmissoras e retransmissoras de TV, segundo S. Brosselin, "Guerre des Ondes: le Radar Squatte la Telévision", em Le Monde de L'aviation, nº 12, maio de 1999. Observe! Como a Central Globo de Televisão, por exemplo, cobre todo o território brasileiro, o país inteiro está mergulhado no espaço hertziano da televisão. Nesse 'lençol eletromagnético' os sinais audiovisuais se comportam como os que são emitidos por radares contínuos. Quando um avião em voo é atingido por um sinal eletromagnético, ele retrodifunde uma parte deste mesmo sinal. Então, basta dispor de um receptor de televisão comum, mais duas antenas espinha-de-peixe simples e um sistema de tratamento e amplificação do sinal recebido, para detectar o aparelho. Esse 'ecossistema hertziano', de acordo com Paul Virilio em seu livro "Estratégias da Decepção", foi designado por "Silent Sentry", que a Lockheed-Martin revelou ao público no outono europeu de 1998. Quer mais? A vantagem desse sistema reside no caráter indestrutível desses detectores que cobrem o território inimigo, ou seja a 'arquitetura de detecção estratégica' se revela: com uma base de dados que engloba as milhares de antenas [de difusão das cadeias de TV e rádio] que varrem o globo e interconectando-as, o RADAR TV permitiria cobrir o conjunto dos espaços aéreos dos dois hemisférios. Portanto, Sr. Clóvis Rossi ainda tem dúvida que essa tecnologia já nos foi transferida, se não, já foi estabelecida e promovida em nosso território, tanto pelos militares da FAB quanto pela iniciativa privada.

A Guerra Fria acabou!? Mas fala-se em dissuasão no Brasil, como? Nunca se viu dissuasão sem 'bomba nuclear'. Energia nuclear é totalmente discriminada entre os ambientalistas, concorda-se, porém... É um escândalo o Brasil não ser considerado uma potência porque não possui ‘bomba nuclear’, ou melhor, enriquecimento de urânio, tecnologia nuclear, e ficar atrás da Índia, da África do Sul e da China. O que esse submarino com propulsão nuclear poderá justamente propiciar ao Brasil. Mas, isso não se discute entre os ecologicamente corretos, o que também não se discute é uma ‘economia antimíssil’ de Obama, barateada com sensores. Cá entre nós, o Brasil já emprestou dinheiro para o FMI demais nesses últimos anos e comprar essa aeronave da Boeing em fim de linha, ainda mais com possíveis embargos do congresso norte-americano seria uma loucura. Tudo isso ainda é suportável, porque em geral loucura não é crime, o que está sendo insuportável é a direita oposicionista na imprensa brasileira desejar de todas as formas que os EUA sejam beneficiados com essa licitação das Forças Armadas do Brasil. Portanto, enquanto Barack Obama se organiza com sensores, o Brasil busca uma forma de fugir deles!

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Caças Fantasmas: Stealth Fighter [Rafale I]


O que está em questão na compra de caças Rafale [Dassault] que favorecem os franceses na busca por defesa e transferência tecnológica pelo Brasil? Historicamente, a política de ‘antecipação da industrialização’ referiu-se à decisão de ultrapassar a etapa da ‘substituição de importações’, o que encorajou a manufatura de novos produtos e o interesse por ‘transferência de tecnologia’. Essa ambição dominou as Forças Armadas Brasileiras desde meado do século passado, como destacaram Bertha K. Becker e Claudio Egler em seu livro “Brasil: uma Nova Potência Regional na Economia-Mundo”, especialmente em quatro setores estratégicos: aeroespacial, indústria bélica, nuclear e da computação.

As associações entre Estado e multinacionais se apresentaram de modo complexo no Brasil, o que se verificou com o desenvolvimento dos setores da computação e da indústria bélica. Com a criação da IMBEL [Indústria de Material Bélico], em 1975, e a concentração no seu interior de três grandes empresas [Avibrás, Embraer e Engesa] reforçou-se o processo de industrialização brasileira de bens de capitais. A participação do Estado brasileiro na produção industrial resultou na criação de uma holding como a IMBEL, colocando o país na lógica do capitalismo mundial, sob uma diversificação da produção e na internacionalização dos mercados.

A participação da IMBEL no setor da informática criou alguns problemas, por exemplo, com a criação da SEI [Secretaria Especial de Informática] responsável pela regulamentação de reserva de mercado para esse setor, o que gerou uma série de polêmicas internacionais, obtendo a IBM do Brasil como pivô, de acordo com Francisco Capuano Scarlato em ser artigo “O Espaço Industrial Brasileiro”. As regulamentações da SEI dificultaram a entrada de componentes para a fabricação de computadores pela IBM, assim os EUA foram motivados a retaliar e reagir à entrada de produtos brasileiros no mercado norte-americano. Com a liberalização da economia brasileira na década de 1990, entretanto as ações da SEI foram esvaziadas.

Acrescente-se a isso outro dado, em 1976 estava prevista a exportação de 76 aeronaves Bandeirantes para os Estados Unidos, mas houve uma reação da empresa Cessna que, junto ao governo norte-americano, tentou criar dificuldades para a compra desses equipamentos brasileiros, segundo João Baptista Peixoto em seu livro “Os Transportes no Atual Desenvolvimento do Brasil”. Neste mesmo ano, contudo a Embraer assinou um acordo com a Companhia Geral de Aeronáutica [empresa francesa] que possibilitaria a venda de aviões brasileiros para os mercados do Oriente Médio e da Europa. Percebe-se que as relações fortuitas entre Brasil e França não aconteceram recentemente, como por exemplo, entre a Embraer e a empresa aérea francesa [Air France], que são absolutamente diferentes das relações político-diplomáticas com governos norte-americanos, como o veto de W. Bush às vendas de super tucanos para Venezuela e Irã. Portanto, o posicionamento político do atual governo brasileiro em proveito da compra de caças fabricados na França em nada nos assustaria, como antecipou o presidente Lula no dia 07 de setembro de 2009. Saem perdendo a empresa Boeing e a sueca Saab em disputa com a Dassault uma operação que chega a 10 bilhões de dólares que envolve a aquisição de 36 aviões de combate Rafale.

Em uma análise fria e sob um cálculo de forças preciso, nem o F-18 Super Hornet [Boeing-EUA] muito menos o Gripen NG [Saab-Suécia] e tampouco o Rafale [Dassault-França] corresponderiam a um grande investimento de alta tecnologia? Por quê? Porque nenhum destes caças de combate possuem a propriedade de serem objetos voadores não detectáveis por radar, aeronaves de combate analisadas por Paul Virilio em seu livro “Estratégias da Decepção”, a partir das experiências norte-americanas no deserto do Golfo Pérsico, nas emboscadas da década de 1990 guiadas por Bush-pai. A tecnologia aeroespacial pressupõe atualmente esse tipo de dispositivo, portanto, as aquisições brasileiras não se referem a aviões furtivos [Stealth], como a invenção do F117, com força de penetração que desafia os raios de ondas radioelétricas dos radares, ao ponto de cegar as telas de controle – ‘aviões fantasmas’ que antecipam o desaparecimento de sua própria imagem. Deste modo, uma unidade do F117 poderia derrotar dezenas de qualquer um desses caças oferecidos em licitação para a Força Aérea Brasileira, mas depois dessa crise econômica mundial, esse caça furtivo deve estar enferrujando num dos galpões da força aérea norte-americana. Sem recursos financeiros para levantar alguns voos e sem frustrar sua tecnologia fantasma, realmente ele desapareceu das telas dos radares?

Neste caso, exigir a transferência de tecnologia é o mínimo que esses 10 bilhões são capazes de comprar, afinal são caças, em geral, em fim de linha. Em outras palavras, o Super Hornet está no limite de sua evolução, não tem mais potencial de desenvolvimento; o Gripen NG é um protótipo ainda, com apenas um motor, é o mais lento dentre eles e o mais barato, vende-se dois por um; o Rafale é o mais caro, com altos custos para manutenção e treinamento, por isso especula-se que se o Brasil não efetivar essa compra a empresa francesa não o produzirá mais. Mas foi a Dassault que desenvolveu a melhor tecnologia de invisibilidade, entre todos os outros caças em disputa pela FAB, isto é, os radares inimigos demoram mais tempo para perceber o Rafale, assim, com pilotos bem treinados, pode-se driblar as ondas radioelétricas tal como o F117. Sem dúvida, enfim, a opção francesa é de longe a melhor, principalmente por ser a mais segura em termos de transferência tecnológica e historicamente a mais produtiva como parceira econômica. Em termos diplomático-militares, de defesa do território, esses caças Rafale colocariam o Brasil numa posição mais confortável. Mas, certamente, aliando-se a uma frota de submarinos de ataque com propulsão nuclear, as Forças Armadas do Brasil será soberana no Atlântico Sul e na América Latina inteira, chegando até forçar nossos vizinhos a rever suas posições geoestratégicas.

sábado, 12 de setembro de 2009

Law and Order: Trump Tower, Suburb


As maneiras de vigiar e policiar se multiplicam, por exemplo, nos Estados Unidos, onde a prisão tornou-se uma estratégia-chave para resolver problemas que surgem entre trabalhadores descartados e populações marginalizadas. Mas essencialmente o aspecto coercitivo do estado neoliberal fortalece-se para proteger interesses corporativos, reprimir a dissensão. O Estado neoliberal deve favorecer direitos individuais à propriedade privada, ao regime de direito e as instituições de mercados de livre funcionamento e do livre comércio, trata-se de uma trama institucional essencial à garantia das liberdades individuais. O Estado tem, por isso, de usar seu monopólio dos meios de violência para preservar a todo custo essas liberdades. O aumento da vigilância e do policiamento, no caso norte-americano, do encarceramento de elementos recalcitrantes da população indica uma tendência mais intensa do controle social, conforme David Harvey em seu livro “O Neoliberalismo: História e Implicações”. O complexo prisional-industrial ainda é um setor florescente na economia estadunidense. O papel do Estado neoliberal assume rapidamente o da repressão ativa, que chega a uma guerra limitada a movimentos de oposição, como os do terrorismo ou do tráfico de drogas.

A teoria neoliberal articula a lei ao crime, assim codifica a penalização. Parte-se do princípio que um sistema penal para funcionar bem é necessário uma boa lei. A lei não deixa de ser a solução mais econômica para punir devidamente as pessoas e para que essa punição seja eficaz. Trata-se, de um lado, do crime como uma infração a uma lei, e, de outro, não há crime nem é possível incriminar um ato enquanto não houver uma lei. A lei só se tornou um mecanismo efetivamente adotado no poder penal europeu no fim do século XVIII. O homo penalis é o homem que é penalizável, que se expõe a lei e pode ser punido por ela, de acordo com Michel Foucault em seu livro “Nascimento da Biopolítica”. Assim, ‘Law and Order’ tem, pois, originalmente um sentido preciso que pode ser verificado além do liberalismo: o Estado não intervirá na ordem econômica anão ser na forma da lei, e somente no interior dessa lei que vai aparecer algo como uma ordem econômica, como efeito e princípio da sua própria regulação.

Atualmente, os muros, as cercas eletrificadas e os aparelhos de vigilância, o medo, a segregação, contribuem para a fundação de uma espécie de cidade carcerária, que complementa um processo de favelização praticamente em todas as cidades brasileiras. No Brasil urbano houve um processo de segregação dos pobres para espaços desprezados pela elite, deste modo, eles ocuparam as encostas de morros, as beiras de rios e canais, ou amontoaram-se em favelas nos interstícios dos bairros de classe média ou espalharam-se por loteamentos irregulares na periferia. Nos Estados Unidos, os guetos não evitam que seus moradores levem uma vida, em geral, excluídos das atividades econômicas da cidade à sua volta. O gueto se renova numa acepção de unidade sócio-espacial voltada sobre si mesma, onde os residentes encontram suas ocupações, subempregos legais ou ilegais, com destaque para o tráfico de drogas. Os suburbs da classe média norte-americana não deixam de ser enclaves excludentes, com uma vida econômica e social também apartada da vida urbana. Os antigos suburbs eram inteiramente residenciais, mas agora são amplamente auto-suficientes em matéria de comércio e serviços. Beverly Hills, na Califórnia, ilustra esse tipo de enclave excludente, assim como as torres de luxo nova-iorquinas, Trump Tower, é um dos exemplos de fortified citadels, que não se localizam nos arredores das cidades, mas nas áreas centrais.

Se o neoliberalismo implica as liberdades individuais, por mais paradoxo que pareça, a população chega a viver cotidianamente, às vezes inconscientemente, o ápice da própria privação da liberdade, seja nas prisões e nos guetos, seja nos condomínios fechados ou fortified citadels. Trata-se de uma cidade carcerária imposta pelo neoliberalismo, essencialmente biopolítico, ou seja, trata-se do paradoxo de uma cidade como prisão, que acondiciona a auto-segregação escapista dos ricos e que impõe a segregação induzida dos pobres.