sexta-feira, 17 de julho de 2009

Eletrochoque e Psicoses: Argélia 1954-1962

A guerra argelina foi um conflito de brutalidade peculiar e ajudou a ‘institu-cionalizar’ a tortura nos exércitos, polícias e forças de segurança de países, como a França, que se diziam civilizados. Popularizou-se o infame uso generalizado da tortura com choques elétricos aplicados na língua, bico dos seios, órgãos genitais, levando a derrubada da IV República [1958] e quase a da V República [1961], antes de a Argélia conquistar a independência e o general de Gaulle reconhecer sua inevitabilidade, conforme Eric Hobsbawm em seu livro “Era dos Extremos”. Em países como a Argélia percebe-se uma resistência de uma comunidade parcialmente surgida da inferiorização colonial que se prolongou como um conflito cultural e armado contra uma potência imperial como a francesa e, depois, cedeu lugar a um Estado ditatorial de partido único, mas com uma oposição islâmica fundamentalista, opondo-se principalmente às práticas coloniais francesas de tortura e deportação. Os franceses contra-atacaram, então, os levantes promovidos pelos argelinos em busca de independência nacional, mas este era um território em que uma população local coexistia com um grande número de colonos europeus, dificultando o processo de descolonização. Desse modo, não houve apenas dominação na Argélia, mas a decisão de ocupar um ‘terreno’, onde os argelinos, as mulheres de haik, as palmeiras e os camelos formavam tão-somente a paisagem natural da presença humana francesa.

A guerra de libertação nacional travada pelos argelinos foi total, o que favoreceu a eclosão de distúrbios mentais, em geral, rubricadas por distúrbios de ‘psicoses reacionais’: o desencadeante principal foi a atmosfera sangrenta e impiedosa de práticas desumanas. Essa ‘guerra colonial’ assumiu o aspecto autêntico do genocídio. Não são incomuns, no entanto, publicações sobre patologia mental entre recrutas engajados na ação militar e civis vítimas do êxodo e dos bombardeios. A Guerra da Argélia pode, mesmo assim, ter sido original até na própria patologia que produziu. Segue-se esse derramamento patológico, descrito por Frantz Fanon em seu livro “Os Condenados da Terra”:

[1] as pulsões homicidas indiferenciadas de um sobrevivente de uma liquidação coletiva – S., 37, um camponês habitante de uma aldeia em Constantinois que nunca tratou de política. Desde o início da guerra, sua região foi palco de batalhas violentas entre as forças argelinas e o exército francês, ele teve assim a ocasião de ver mortos e feridos, mas se manteve afastado, mesmo que periodicamente, como o conjunto desse povo camponês, ele ajudasse os combatentes argelinos de passagem. Num dia, no início de 1958, ocorreu uma emboscada terrível não muito longe da aldeia. As forças inimigas montaram uma operação e cercaram a aldeia, aliás, vazia de soldados, horas depois, um oficial francês chegou de helicóptero e disse: ‘essa aldeia dá muita confusão. Destruam!’ Os soldados começaram a atear fogo nas casas, mas algumas que mulheres tentavam recolher roupas ou mantimentos eram repelidas a coronhadas, enquanto alguns camponeses aproveitaram para fugir. O oficial ordenou que se reunissem os homens restantes e os levassem para perto do rio onde o massacre começou. S. foi ferido por duas balas atravessadas na coxa direita e no braço esquerdo;

[2] psicose ansiosa grave de tipo despersonalização após o assassinato de uma mulher – Dj., 19, ex-estudante, militar na ALN. Quando chegou ao Centro estava doente já há vários meses, muito deprimido, lábios secos, mãos úmidas, suspiros incessantes, insônia tenaz. Duas tentativas de suicídio desde o início do distúrbio ele adotava atitudes de escuta alucinatória. O doente falava de seu sangue derramado, das suas artérias que se esvaziavam, do seu coração que falhava, ainda suplicava para que se detivesse a hemorragia e que se impedisse de ‘vampirizá-lo’ no hospital. Não conseguia mais falar e pedia um lápis. Escreveu: ‘não tenho mais voz, toda a minha está indo embora’;

[3] assassinato, por dois jovens argelinos, de 13 e 14 anos, de um colega europeu – dois jovens argelinos, alunos de uma escola primária foram acusados de ter matado um de seus colegas europeus. Reconheceram ter cometido o ato, eles reconstruíram o crime e foram feitas fotos, nelas se vê um dos meninos segurando a vítima, enquanto o outro a esfaqueava. Os pequenos acusados não modificaram suas declarações;

[4] psicoses puerperais entre as refugiadas – psicose puerperal é o conjunto de distúrbios mentais que ocorrem na mulher por ocasião da maternidade, as suas duas principais causa estão ligadas a um transtorno no funcionamento das glândulas endócrinas e a existência de um ‘choque afetivo’. Encontraram-se cerca de 300.000 refugiados nas fronteiras da Argélia com Tunísia e Marrocos, desde que o governo francês decidiu praticar a política de ‘zona-tampão’ e de ‘terra-arrasada’ em centenas de quilômetros. É preciso considerar o estado de indigência em que esses refugiados vivem, em extrema precariedade e miséria, além da desnutrição que reina nesses campos, onde as mulheres grávidas mostravam especial predisposição para a eclosão de psicoses puerperais. Sabe-se que foram incontáveis os bombardeios franceses em territórios marroquinos e tunisianos, Sakiet-Sidi-Youssef na Tunísia foi o exemplo mais sangrento, as invasões frequentes das tropas francesas que se valiam do ‘direito de seguimento e perseguição’, das diversas incursões aéreas, das rajadas de metralhadora do exército francês e o estado de desmembramento familiar, consequência do êxodo, mantendo esses refugiados em insegurança permanente. Poucas argelinas refugiadas deram à luz sem apresentar distúrbios mentais;

[5] depois do choque elétrico – patriotas argelinos torturados com choques elétricos, no momento em que a eletricidade fazia parte de um conjunto de processos de torturas, desde setembro de 1956, para a realização de certos interrogatórios. Casos de cenestopatias, de apatias, de medo fóbico de eletricidade foram encontrados depois do tratamento de choque;

[6] depois do soro da verdade – diante de um doente que sofre de um conflito e não consegue exteriorizá-lo num interrogatório, recorreu-se a métodos de exploração química, o Pentotal, por injeção intravenosa.

Na Argélia, os médicos militares pensaram na hipótese de que se o Pentotal fosse capaz de varrer as barragens que se opunham à evidência de um conflito interior, então, entre os patriotas argelinos ele deveria varrer também a barragem política e facilitar a confissão do prisioneiro, sem recorrer a eletricidade, numa espécie médica de ‘guerra subversiva’. Enfim, camaradas, vamos e não percam tempo com litanias ou mimetismos nauseantes, deixem essa Europa que fala sem parar do homem e ao mesmo tempo o massacra em todos os lugares em que o encontrar, nas esquinas, nas ruas, em todo lugar do mundo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário