sexta-feira, 17 de julho de 2009

Caliban Argelino [1954-1962]


O que sentiria um argelino ao apresentar a ‘África’ para si mesmo e para os ocidentais, exatamente àqueles povos que lhe haviam pilhado, colonizado e subjugado durante séculos? Torpor por atrocidades desnecessárias ou vaidade pelo sucesso de sua independência. Neste meio-tempo está nosso argelino situado nesse entre-lugar, cuja colonização francesa o deixou. As luzes de uma missão civilizadora se apagaram, deixando de Gaulle no escuro. A relação da França com a Argélia foi, na melhor das hipóteses, uma ‘associação hierárquica’ que ocorreu por intermédio da força, o que se estendeu também para as suas demais colônias. Os franceses se empenharam em um milhão de colonizadores e 800 mil homens em seu exército de ocupação na Argélia, mas se pautavam em um discurso de ‘assimilação colonial’ com referências às teorias raciais que guiavam as estratégias imperiais francesas, como as de G. Le Bom, E. Seillère, A. Sarraut, P. Leroy-Beaulieu, J. Harmand, entre outros.

Na Argélia, desde 1830, entre os governos franceses houve um processo contínuo de tentar afrancesá-la. Assim, os nativos e seus territórios não eram vistos como entidades que pudessem se tornar francesas, mas podiam conquistar possessões com características imutáveis que se requeriam separação e subserviência, mesmo que isso não estivesse prescrito explicitamente na mission civilisatrice. Primeiro, as terras eram tomadas dos nativos argelinos e os seus edifícios ocupados; depois, os argelinos eram removidos das cidades e, num mesmo gesto, elas eram povoadas por colonos franceses, como Annaba, antes chamada Bônes, a 25 km dali ficava o povoado de Mondovi, fundado em 1849 por agricultores ‘vermelhos’ deportados de Paris, que expropriavam terras argelinas; a seguir, os colonos franceses já estavam tomando conta das matas de sobreiros e jazidas minerais. Daí resultou, ou a partir de 1830, uma economia motivada por esse ‘capital de pilhagem’, pelo decréscimo dos nativos, pelo aumento de colonos – economia européia colonial dual, em geral, uma economia empresarial francesa coexistiu com uma economia pré-capitalista de bazares argelinos. Essa estratégia no domínio imperial francês assemelhava-se a uma espécie de ciência ou prática geral de se governar ‘criaturas inferiores’, cujas terras, recursos e destinos estavam a cargo da França.

Como um povo ou cultura pode imaginar seu próprio passado na medida em que se torna independente? Duas uma, pode-se fazer como Ariel, ou seja, ser um solícito servidor do Próspero, mas outra possibilidade é fazer como Caliban e buscar por trás dos nacionalismos, nativismos, radicalismos, o momento em que foram produzidas as expressões da négritude, fundamentalismo islâmico, arabismos entre outros, conforme Edward Said em seu livro “Cultura e Imperialismo”. A perspectiva inaugural do nacionalismo antiimperialista sempre vai partir da tomada de consciência de si como um membro de um povo sujeitado, subalterno, com efeito, daí resulta literaturas, partidos políticos, lutas minoritárias, de gênero e, na maioria das vezes, Estados Independentes. Desses movimentos deriva também um corrente perigo, a consciência nacional pode apenas substituir as autoridades e os burocratas brancos por equivalentes de cor, não assegurando que os velhos arranjos imperiais sejam repetidos: chauvinismos, xenofobia são perigos reais. Mas o Caliban precisa ver a complexidade social de sua história e compartilhá-la com a história de homens e mulheres, como ele, subjugados. A négritude de Leopold Senghor, o movimento rastafári, o projeto de Garvey [a volta dos negros americanos para África], as descobertas essencialistas muçulmanas da era pré-colonial, todas essas re-voltas não deixam de ser nativistas e, por vezes, reforçam até distinções hierárquicas, já que valorizam o lado mais fraco, mas nem por isso podem ser julgadas por adorarem o negro e ao mesmo tempo o detestarem. No caso argelino, Frantz Fanon percebeu uma divisão, em seu livro “Os Condenados da Terra”, entre a burguesia nacionalista da Argélia e a tendência liberalista da Frente Libertação Nacional argelina [FLN], o que estabelecia padrões óbvios de conflito.

Uma vez deflagrada a insurreição, as elites nacionalistas buscariam certa paridade com a França: reivindicação de direitos humanos, autodeterminação, sindicatos e, assim por diante. O partido nacionalista oficial se viu forçado a cooptar e a se assimilar às autoridades dirigentes, tornando-se ‘mímicos’, desta forma diversas tensões surgiram no âmbito nacionalista: campo-cidade, líder/liderados, campesinato/burguesia, todas exploradas ainda pelos imperialistas. A sociedade colonial argelina pode ser observada em relação ao império francês como entidades discrepantes, após a independência, mas relacionadas, ao mesmo tempo em que representa um público duplo, na relação obscura de uma libertação que acorrenta o nativo ao Ocidente. Portanto, em pleno processo de descolonização, os ‘nativos’ insurgentes recriaram o seu passado pré-colonial, como na Argélia durante a ‘Guerra de Independência’ [1954-1962], quando argelinos e muçulmanos foram levados a criar representações sobre aquilo que julgavam ter sido o período anterior à colonização francesa. Essa foi uma estratégia visível em obras de poetas e literatos de quase todo o mundo colonial, mas tal estratégia nativista se deslocou do meio acadêmico e incorporara-se a grupos ‘manipuladores-nativos’ que aproveitavam da situação para encobrir corrupções e tiranias.

Na Argélia, quase todos os homens, que chamaram um dia o povo para a luta nacional, foram condenados à morte ou foram procurados pela polícia francesa. Quando, em 1956, depois da rendição de Guy Mollet diante dos colonos da Argélia, a Frente de Libertação Nacional constatou, num panfleto, que o colonialismo só desistiria com uma faca no pescoço: nenhum argelino achou esses termos violentos demais. O homem colonizado se liberta na violência, a poesia de Aimé Césaire assumiu essa perspectiva precisa da violência, em uma significação profética. Um bandido que ocupara o campo durante dias seguidos diante de policiais lançados em sua perseguição, ou aquele que, num combate singular, se sucumbisse depois de abater quatro ou cinco policiais, e aquele que se suicidara para não ‘entregar’ os seus cúmplices constituíram esquemas de ação para o povo, ‘heróis’. E de nada serve dizer que tal herói fora um ladrão, um crápula ou um depravado. Se o ato pelo qual esse homem foi perseguido pelas autoridades coloniais era um ato dirigido exclusivamente contra ele, logo, demarcação nítida e processo de identificação imediato. Béhanzin, Soundiata, Samory, Abdel Kader reviveram com uma particular intensidade no período que precedeu a história do povo colonizado em resistência nacional à invasão francesa.

Na guerra da Argélia, os repórteres franceses mais liberais utilizavam expressões ambíguas para caracterizá-la; a França testava suas bombas atômicas em território argelino; alguns recrutas argelinos foram verdadeiros reféns incorporados às forças francesas, por sorte que o dirigente da insurreição chegava a ver a nação naufragar e tribos inteiras se constituírem como harkis e, dotados de armas modernas, tomavam o curso da guerra e invadiam a tribo rival, rotulada, nessa circunstância de nacionalista. A unidade nacional desmoronava e a insurreição enfrentava uma manobra decisiva: o povo argelino, uma massa de famintos e de muitos analfabetos, homens e mulheres, que mergulharam num obscurantismo a séculos, enfrentavam tanques e aviões, napalm e os serviços psicológicos, mas principalmente corrupção e lavagem de cérebro, os traidores e os exércitos ‘nacionais’ do general Bellounis. Esse povo resistiu, apesar dos fracos, dos hesitantes, dos ditadores aprendizes, porque os sete anos de luta lhes abriram horizontes insuspeitos. Arsenais funcionaram nas montanhas, tribunais foram instalados em todas as instâncias, comissões locais desmembraram as propriedades coloniais e elaboraram a Argélia dos argelinos, desde 1962.

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