domingo, 5 de julho de 2009

État de Guerre [Martial Laws]


Povos, impérios e máquinas de guerra são três estratos históricos que coexistem. Os Bárbaros não se atiraram sobre o Império espontaneamente. Henri Pirenne afirmou, em seu livro ‘Mahomet et Charlemagne’, que os bárbaros foram parar lá empurrados pela precipitação dos hunos, o que iria determinar toda a sequência de invasões. Estratificação ou segmentaridade, portanto, de um lado, o império romano, com seu centro e sua periferia, seu Estado, sua pax romana, sua geometria, seus campos e suas fronteiras. No horizonte, de outro lado, uma linha de fuga, a dos nômades que saem da estepe, levando por toda parte a desterritorialização e lançando fluxos que se aquecem acionados por uma máquina de guerra sem Estado. Os Bárbaros migrantes estão efetivamente entre os dois: eles vão e vêm, passam e repassam as fronteiras, pilham e espoliam, mas também se integram e se reterritorializam. Eles podem penetrar no império, fazem-se necessários e federados, fixam-se, ocupam terras, ou até mesmo eles próprios podem delinear Estados, como os ‘sábios’ Visigodos. Ao contrário, passam para o lado dos nômades e ao se associar a eles, tornam-se indiscerníveis como os ‘brilhantes’ Ostrogodos.

No livro “Genséric – Roi des Vandales”, Émile Felix Guatier compreendeu que os Vândalos – Godos de ‘segunda ordem’ – jamais deixaram de ser derrotados por Hunos e Visigodos, mas traçaram uma fuga que os tornaram tão fortes quanto os seus senhores: foi o único bando ou massa a transpor o mediterrâneo numa inesperada reterritorialização – um império da África. Dessa forma, as teses de Georges Dumézil podem tomar corpo:

[1] a soberania política teria dois pólos – o Imperador terrível e mágico que opera por captura, laços, nós e redes [dispõe de uma violência que não passa pela guerra, mas possui policiais e carcereiros] e o Rei sacerdote-jurista que procede por tratados, pactos e contratos [adquire um exército que pressupõe uma integração jurídica da guerra e uma organização da função militar];

[2] uma função de guerra é sempre exterior à soberania política e se distingue de ambos os pólos da soberania [é Indra entre Mitra-Varuna, Thor entre Oddhin e Tyr].

Gilles Deleuze e Félix Guattari afirmaram, então, em seu livro “Mil Platôs”, que a instituição militar ou o exército não é a ‘máquina de guerra’, mas sim a forma sob a qual ela foi apropriada pelo Estado. Daí resulta três hipóteses:

[1] a máquina de guerra é uma invenção nômade que tem na guerra o seu objetivo secundário, suplementar, quando entra em choque com o Estado ou a cidade;

[2] quando o Estado se apropria da máquina de guerra, ela muda de natureza, torna-se instituição militar;

[3] apropriada pelo Estado, a máquina de guerra toma a guerra por objeto primeiro.

Trata-se da captura da máquina de guerra pelo Estado. Portanto, o Estado por si só não possui máquina de guerra, uma vez apropriada por ele exclusivamente sob a forma de instituição militar, ela nunca deixará de lhe criar problemas.

Golpes de Estado sempre iminentes e imanentes na dinâmica da formação dos Estados, resta a desconfiança dos Estados face aos exércitos, porque ele procedem de uma máquina de guerra de natureza extrínseca. Assim, em seu livro “Estado de Exceção”, Giorgio Agamben distinguiu, por meio do decreto de 8 de julho de 1791 da Assembléia Constituinte francesa, o état de paix [onde a autoridade militar e a autoridade civil agem cada uma em sua própria esfera], o état de guerre [a autoridade civil deve agir em consonância com a autoridade militar] e o état de siège [no estado de sítio todas as funções de que a autoridade civil investidas para a manutenção da ordem e da polícia internas passam para a exclusiva responsabilidade do comando militar].

O único dispositivo jurídico que, na Inglaterra, poderia ser comparado com o estado de sítio francês é conhecido pelo nome de martial law – conceito tão vago que foi possível defini-lo com uma ‘expressão infeliz’ capaz de justificar, através da common law, os atos realizados por necessidade e com o objetivo de defender a commonwealth em caso de guerra. Enfim, o ‘direito de guerra’ não é exatamente uma lei, mas, antes, um procedimento guiado pela necessidade de atingir um determinado fim: a guerra. Por isso, no limite, a violência da máquina de guerra poderia parecer mais doce que a dos aparelhos de Estado, porque ela não possui ainda a guerra como ‘fim’.

Nos desertos e estepes, restituída a seu meio de exterioridade, sob todos os aspectos, a máquina de guerra é de outra origem que o Estado e os seus exércitos. O deus indiano Indra, o herói escandinavo Starcatherus, o herói grego Héracles, sempre acuados pela soberania política, onde o homem de guerra parece ultrapassado, condenado, reduzido ao próprio furor que volta contra si mesmo. Arminius anunciou uma máquina de guerra germânica que rompia com a ordem imperial das alianças e os exércitos, erguendo-se para sempre contra o Estado romano, mas nem Aquiles nem Ajax nada poderiam contra Ulisses, o nascente homem do Estado moderno.Tulo Hostílio e Tarquínio também fizeram da irrupção do guerreiro a aparição de um personagem inquietante, sobretudo ilegítimo.

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