sábado, 18 de julho de 2009

Os Zulus e a Resistência Sul-africana


Sabe-se da relação inextricá-vel que os homens estabele-cem com a morte, mas a relação com os próprios mortos ainda é muito especial. Em muitos casos, honra e alimentos são concedidos aos mortos, assim as pessoas os mantêm satisfeitos, uma vez estabelecido o acordo com todas as regras de tradição, esse ato de cuidar dos mortos é capaz de torná-los aliados. O ‘culto aos antepassados’ resulta da crença de que os mortos ainda vivem, mas principalmente que as pessoas possam dominá-los. Em “The Religious System os the Amazulu”, o missionário inglês H. Callaway publicou um testemunho a respeito do culto aos antepassados entre os zulus.

Na África do Sul junto aos zulus, esse convívio com os antepassados chega assumir uma forma particularmente íntima. Os antepassados dos zulus transformam-se em cobras e não só andam debaixo da terra como perambulam pelas cabanas, onde adentram com frequência. Essas cobras são conhecidas e não são invisíveis ou míticas, ou seja, strictu sensu, essas cobras mantêm determinadas características dos respectivos antepassados, que são reconhecidas como tais entre os vivos. Os mortos nem sempre foram justos, de maneira tal que as pessoas os conheceram e de cujos erros e fraquezas se recordam, mas os antepassados são chamados pelos seus próprios nomes e lembrados por seus títulos de glória. De tempos em tempos são-lhes oferecidos sacrifícios em sua homenagem, cabras e bois são abatidos, isto é, uma refeição da qual compartilham mortos e vivos. Nessas circunstancias, acredita-se que os mortos mantêm o mesmo comportamento que possuíam quando estavam vivos. A prosperidade de descendência torna-se central para os mortos, de acordo com Elias Canetti em seu livro “Massa e Poder”. Quando se trata de uma dinastia a relação do poderoso com o sucessor é peculiar, pois o sucessor é o filho do todo poderoso, cuja relação com o pai faz-se com dificuldade. Em geral, o filho sobrevive ao pai e por isso haverá de se tornar naturalmente o detentor do poder. Não é espantoso, então, que pai e filho tenham razões suficientes para odiarem-se mutuamente. A morte do pai é ardorosamente ansiada pelo filho, cuja chegada do mais novo ao poder sempre será adiada, em geral, de todas as formas. O sentimento mais extremo de poder se manifesta, portanto quando o soberano não quer filho algum.

Um caso conhecido é o de Shaka, que fundou a nação e o império dos zulus, na África do Sul, no primeiro terço do século XIX. Shaka foi um grande general. Obviamente, recusava-se a casar porque não queria ter herdeiros legítimos. Shaka possuía, porém um harém com centenas de mulheres, no fim somaram-se cerca de1200, que ostentavam o título oficial de ‘irmã’. Era-lhes proibido engravidar e ter filhos, assim um rigoroso controle se exercia sobre elas, para cada ‘irmã’ grávida que se deixasse apanhar era punida com a morte. A existência de um filho com uma dessas mulheres foi lhe ocultada durante um tempo, uma vez descoberto, Shaka o matou com as próprias mãos. Aos 41 anos de idade, rei entre os zulus, Shaka foi morto por dois de seus irmãos. Todo homem carrega consigo os essenciais direitos de soberania dos seus pais, mas nenhum deles se esquece da dominação da mãe: manter uma criatura cativa. Nas mãos da mãe, faz-se crescer crianças como um trigo, mas como animais domésticos, executam movimentos que lhe permitem. O poder de uma mãe é inusitado em relação aos seus filhos, indo além da alimentação, da domesticação e do crescimento. Trata-se de repensar o amor da mãe e seu auto-amor em relação à vida e à morte de seus filhos.

O livro “Beloved” de Toni Morrison nos leva à dolorosa posição ética de uma escrava, Sethe, que é levada ao infanticídio. A criança assassinada por Sethe, sua própria mãe, é uma repetição extemporânea da violenta história das mortes das crianças negras durante a escravidão em muitas partes do sul. Reconstruir a narrativa do infanticídio através de Sethe, a mãe escrava, que é também vítima social, a própria história de nosso juízo ético torna-se submetida a uma revisão radical. Elizabeth Fox-Genovese em um de seus relatos sobre as formas de resistência escrava, no livro “Within the Plantation Household”, considerou o assassinato, a automutilação e o infanticídio como parte de uma dinâmica psicológica de toda forma de resistência. Percebe-se que este ato trágico de violência é executado como parte de uma luta que procura recuar as fronteiras do mundo escravo. Essas formas extremas são capazes, por exemplo, de capturar a essência da auto-definição da ‘mulher escrava’, afirmou Homi Bhabha em seu livro “O Local da Cultura”. Havia os atos de confrontação contra o senhor ou o feitor, resolvidos dentro de um contexto doméstico, mas diferentemente o infanticídio era visto, em geral, como um ato contra o sistema colonial e reconhecia a posição legal da escrava na esfera pública. O infanticídio era visto, enfim, como um ato contra a propriedade do senhor e o seu lucro extra, isto levava algumas das mulheres mais desesperadas a sentir que, ao matar uma criança que amavam, estariam restaurando sua posse sobre ela. Como se a mãe escrava retomasse, através da criança, o direito de posse sobre si mesmo, ou seja, um conhecimento que vem como uma espécie de auto-amor que não deixa de ser o amor ao ‘outro’.

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