sexta-feira, 17 de julho de 2009

Razzia e shari’ah [Argel - 1962]


Entre as décadas de 1930 e 1940, quando o Norte da África ocupava lugar de destaque que, em nenhum momento e por nenhum francês, ainda não se reconhecia que as colônias pudessem se tornar independentes, mesmo com a presença de movimentos nacionalistas, que representavam para os franceses apenas sérios desafios. Manuela Semidei questionou os abusos discursivos franceses para persuadir ideologicamente os escolares argelinos, a partir do uso de textos escolares no entreguerras que comparavam a França favoravelmente em relação à Inglaterra; mas se na vida cotidiana houve alguma referência à violência na Argélia, ela deve ter sido feita de modo que a França se sentia obrigada a fazê-la, mas em compensação a Argélia tornava-se uma ‘nova França’, próspera, com escolas, hospitais e estradas. Na Argélia, os franceses proibiram o árabe como língua formal de ensino e administrativo, mas após 1962, a FLN [Frente de Libertação Nacional Argelina] o transformou na única língua oficial e implantou um novo sistema de educação árabe-islâmica. A FLN promoveu, a seguir, uma política de absorção de toda a sociedade argelina que evidentemente levou a concentração da maioria das atividades políticas nas mãos de um único partido, mas foi inegável o surgimento de uma oposição islâmica, que lutava em favor de uma identidade argelina militante muçulmana baseada em preceitos corânicos [shari’ah], ou seja, o estabelecimento de uma democracia em que ambos reivindicavam o direito de governar.

Assim, nos países islâmicos ocidentais um conflito tornou-se patente e explosivo entre os velhos seculares e a nova democracia de massa islâmica, por isso, em meados do século XX, da Argélia à Turquia, achava-se um estado de colapso, cujas condições para derrubada de regimes odiados e deslegitimados existiam ao lado de levantes populares com a liderança de forças capazes de substituí-los. Torna-se necessário recriar, contudo, um retrato da psicologia de conquista argelina das décadas de 1930 e 1940 para identificar a sua dinâmica inevitável de miniaturização da presença árabe-muçulmanos.

Sobre essa miniaturização francesa do muçulmano, percebe-se que ela foi difundida por um drástico exemplo, quando Alexis de Tocqueville chegou a criticar a política americana em relação aos negros e aos indígenas, acreditando que o avanço da civilização européia exigia crueldade em relação aos indigènes muçulmanos. Ele considerava o islamismo uma poligamia, onde as mulheres estavam isoladas e sem vida política, sob tirânicos governos que obrigavam aos homens a se satisfazerem integralmente em seus lares. Como Tocqueville achava que essa ‘tribo’ era nômade, tornava-se necessário usar todos os meios para devastá-las. Em 19846, Tocqueville não se pronunciou sobre as centenas de árabes que foram asfixiadas por fumaça durante as razzias que ele mesmo aprovara. No império francês, o general Changarnier insistia em justificar os ataques de seus soldados a povoados pacíficos, porque, para ele, a ruína e a destruição total são admitidas, não porque Deus as legitimam, mas porque, de Burgeaud a Salan, ‘os árabes só entendem a força bruta’.

Entre os argelinos e os franceses, Albert Camus não deixou de se referir à morte de árabes tanto em L’étranger quanto em La Peste, afinal ele se preocupava mais com o estado real dos assuntos franco-argelinos e com uma intervenção efetiva na história das iniciativas francesas na Argélia, de torná-la e mantê-la francesa, do que em escrever romances sobre o seu estado de espírito. Em suma, se os romances e contos de Albert Camus destilaram tradições, lugares-comuns e estratégias discursivas sobre a apropriação francesa da Argélia, com destaque para a sensação de repúdio aos islâmicos na Argélia, num tom de propaganda imperialista. Questiona-se, pois se a França ainda permanece como um ‘estado colonial’? Ou melhor, será que a sociedade francesa conservou traços de um passado colonial que estaria na base do tratamento que ela dispensa a uma parcela da população? Em 1990, por exemplo, 76 por cento do povo francês achavam que havia árabes demais na França. Por isso, Étienne Balibar afirmou que se construiu uma categoria social e jurídica humanamente monstruosa na França, que a ‘condição hereditária do imigrante’: uma vez migrante; migrante para sempre. Não é por acaso que municipalidades frequentemente exercem um direito de preempção sobre os terrenos destinados a se construir mesquitas, obedecendo a lei de 1905, que estipula ao Estado francês o dever de garantir o livre exercício de diferentes cultos, de forma paritária, caso ele não possa subvencioná-los.

Recentemente um tribunal administrativo, sobre a apresentação de uma queixa feita pelo Movimento Nacional Republicano de Bruno Mégret, em nome da luta contra ‘o islamismo em nosso país’, anulou o arrendamento enfitêutico [concessão de um terreno por um prazo de 99 anos, pela soma simbólica de 1 real] que um município havia acordado para a construção de uma mesquita, reparou Robert Castel em seu livro “A Discriminação Negativa”, que a justiça mesma sede às pressões da ‘islamofobia’, em detrimento do espírito da lei sobre a laicidade, que tende a desconhecer o Islã, a segunda religião mais forte na França. Dessa ‘islamofobia’ destaca-se também as estatísticas da Direção da administração carcerária, citadas por Farhad Khosrokhavar, de fato, os muçulmanos aprisionados representam os habitantes masculinos das periferias [as mulheres são pouco numerosas]. Um fato permanece – aqueles cujos pais são de origem magrebina estão exageradamente representados. Certamente as periferias francesas estão transferindo o seu controle para o islamismo, desde então, ouve-se falar de uma ‘escalada islâmica’ que cria perigos para a República francesa, talvez porque o islamismo sempre foi a forma mais extremada de comunitarismo, ou seja, a negação da soberania dos indivíduos e a afirmação da igualdade entre os cidadãos, paradoxalmente, esses são os mesmos princípios sobre os quais se construiu supostamente a nação francesa.

Especialmente, com a descolonização, a Europa vem se reduzindo territorialmente às suas próprias entranhas e penínsulas, mas o mundo agora é tanto árabe e asiático quanto africano, principalmente, com o recente declínio da hegemonia norte-americana, pós-11 de setembro. Mas ninguém imaginaria que Samuel Huntington, em seu livro “O Choque de Civilizações”, fosse capaz de destinar ao Islã a capacidade de desempenhar o mesmo papel, na idade contemporânea, que a ética protestante desempenhou na história ocidental, principalmente porque os movimentos fundamentalistas islâmicos sempre foram competentes na utilização de técnicas de comunicação e organização para difundir suas mensagens.

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