segunda-feira, 29 de junho de 2009

Xamanismo e Profetismo da Floresta


A combinação de funções sacerdotais com a autoridade real é conhecida de todos. A Ásia Menor sediou, por exemplo, várias capitais religiosas: Zela e Péssimo foram dominadas por sacerdotes. Essa associação real e sacerdotal foi comum na Itália e Grécia antigas. Havia uma razão pela qual o sacerdote tinha que matar seu predecessor. Assim, era sacerdote e assassino. A ‘regra do santuário de Nemi’ se estabelecia, segundo James George Frazer em seu livro “O Ramo de Ouro”, de modo tal que o candidato ao ofício sacerdotal só ascenderia a ele matando o sacerdote, ocupava o posto até que chegasse, enfim, a sua vez de ser morto por alguém mais hábil ou mais forte – este posto conferia, em geral , o título de rei. Essa combinação entre poderes sacerdotais e reais intercalava-se sucessivamente entre vida e morte, contudo entre os xamãs sul-americanos o poder de vida e morte se exercia de outro modo, assim como Pierre Clastres descreveu em seus livros “A Sociedade contra o Estado” e “Arqueologia da Violência”. Mas quem eram então os xamãs?

Figura muito importante das sociedades indígenas, o xamã [ou o pajé] era respeitado, admirado e temido. Apenas ele possuía poderes sobrenaturais para dominar o perigoso mundo dos espíritos e dos mortos. Entre os índios, uma população de fantasmas atormentava o mundo dos homens. Se o xamã era um sábio que cuidava dos doentes ou um homem capaz de provocar a vida, então, ele não deixava de ser um homem que podia matar. Neste caso, entre as sociedades primitivas da América do Sul, o xamã era o ‘senhor da vida e da morte’. Com efeito, afirma-se que havia uma hierarquia entre os xamãs: o grau inferior dos ‘pequenos xamãs’ que medicavam sua família e os cães; a ‘média categoria’ daqueles que podiam até serem líderes; os ‘grandes xamãs’ que ultrapassavam todos os outros e protegiam sua comunidade dos maus espíritos. A natureza é aqui atravessada pelo sobrenatural, onde os seres da natureza [animais e plantas] também são agentes sobrenaturais, os acontecimentos não são considerados como acidentais, mas como agressões de forças sobrenaturais de espíritos das florestas, das almas de mortos ou de xamãs inimigos. O xamã se situa como médico no centro da vida religiosa do grupo e deve descobrir onde a alma está prisioneira, para libertá-la do seu cativeiro e reconduzi-la ao corpo do paciente, visto que a doença para os primitivos era a antecipação da morte, ou seja, a separação entre o corpo e a alma. Senhor da vida e da morte, portanto, os xamãs buscavam uma ‘Terra sem Mal’. As grandes migrações religiosas guiadas por xamãs era consequência desta busca excepcional dos índios tupi-guarani, onde as tribos se movimentavam para atingir as ricas moradas dos deuses. Absolutamente diferente, por exemplo, das práticas do sultão de Deli, Muhammad Tughlak, a partir de sua severidade, foi acusado de ter obrigado os habitantes de Deli a abandonar a cidade e, após a evacuação, ordenou-lhes que se mudassem para Daulatabad [cidade que queria transformar em capital], conforme Elias Canetti em seu livro “Massa e Poder”, não restou um gato ou cão nos arrabaldes e palácios de Deli. Por outro lado, a sociedade tupi-guarani, sob pressões diversas [demográficas, sociológicas e políticas] estava em vias de deixar de ser uma sociedade primitiva. Talvez não fossem sacerdotes nem muito bem xamãs, mas profetas [os karai], que por sua única atividade – a fala – proferiam discursos em todos os lugares e se deslocavam incessantemente: o nomadismo dos profetas podia resultar do seu não pertencimento a nenhuma comunidade, mas nem por isso eram considerados inimigos. O discurso dos karai afirmava o caráter mau do mundo e exprimia a certeza da conquista de um mundo melhor, isto não parecia um delírio para os índios, mas repercutia a figura má do mundo.

Discurso que constatava a morte da sociedade, enfim, a divisão e a desigualdade, daí traduziam-se a prática dos profetas em suas ‘migrações religiosas’. Entre os tupi-guarani, as migrações religiosas era conduzida pelos profetas para que os índios abandonassem suas aldeias e plantações. Se no mito do paraíso terrestre, comum a todas as culturas, somente após a morte o homem ascende a ele, para os karai, ao contrário, a ‘Terra sem Mal’ era um lugar real, acessível, sem passar pela morte. Este talvez seja um elemento fundamental que explica como as sociedades primitivas não só possuem o Estado, mas agem contra ele.

Nenhum comentário:

Postar um comentário