sábado, 4 de julho de 2009

Soberania do Cadafalso ao Polizeistaat


O direito de vida e morte não é um privilégio absoluto, porque se condicona à defesa do soberano e à sua sobrevivência enquanto tal. O direito formulado como ‘de vida e morte’ é o direito de ‘causar’ a morte ou de ‘deixar’ viver. O soberano só exerce seu direito de vida se exercer seu direito de matar ou contendo-o, ou seja, ele marca seu poder sobre a vida pela morte que tem condições de exigir, poder que se apodera da vida para suprimi-la. Foi em “Vigiar e Punir” que Michel Foucault descreveu a ostentação dos suplícios a partir de um acontecimento que ocorreu na França em 1757 – a condenação de Damiens a pedir perdão diante da principal Igreja de Paris e logo ser esquartejado –, mas três décadas depois, registrou-se o regulamento redigido por Léon Faucher para a Casa dos Jovens Detentos de Paris. Cada um desses casos define certo estilo penal, a exemplo dos suplícios e da utilização do tempo nas casas de detentos. Ruptura com o velho direito de causar a morte ou deixar viver, que foi substituído por um poder de causar a vida e devolver à morte. O poder vai possuir nas disciplinas do corpo e nas regulações da população os seus pontos de fixação, isto é, nos dois pólos em torno da vida e de seu desenrolar.

A velha potência da morte simbolizava o poder do soberano, mas agora o poder se redescobre pela administração dos corpos e pela gestão da vida. Na Inglaterra, até o século XVIII, havia 313 ou 315 condutas de levar alguém ao cadafalso, com efeito, havia 315 casos passíveis de ser punido com a morte, o que tornou esse sistema penal um dos mais sangrentos que já se conheceu. Com o surgimento do ‘problema’ da fortuna na Inglaterra, no entanto, no fim do século XVIII, uma riqueza se investia no interior de um capital que não era essencialmente monetarizado: estoques, matérias-primas, objetos importados, máquinas, oficinas, etc., que estavam diretamente expostos à depredação. Toda uma população de pobres e desempregados manteve contato direto e físico com essa fortuna: roubos de navios, depredações nas oficinas, pilhagens de armazéns e estoques tornaram-se comuns na Inglaterra desse período.

A polícia de Londres nasceu da necessidade de proteger as docas, entrepostos, armazéns e estoques. Michel Foucault afirmou, no livro “A Verdade e as Formas Jurídicas”, que esta foi a primeira razão do aparecimento da necessidade absoluta de controle. Donde também a importância da tese de Paul Virilio em seu livro “Velocidade e Política”, que demonstrava que o poder político do Estado é polis, polícia - vistoria – e que as portas da cidade, seus pedágios e suas alfândegas são barreiras e filtros para a fluidez das massas, para a penetração dos fluxos migratórios, pessoas, animais e bens. A polícia é um conjunto tecnológico que pressupõe a organização de um exército profissional. Do século XV ao XVI a palavra ‘polícia’ designava uma forma de comunidade ou associação que seria regida por uma autoridade pública, um poder político; assim, ‘polícia e regimento’ exprimem uma associação de uma maneira de reger e de um modo de governar, cuja polícia seria um resultado positivo e valorizado de um bom governo.

A partir do século XVII a ‘polícia’ passa a ser designada pelo conjunto dos meios possíveis de fazer as forças do Estado crescerem: a polícia vai ser o cálculo e a técnica possíveis de estabelecer uma relação móvel e controlável entre a ordem interna do estado e o crescimento de suas forças. Em poucas palavras, o Polizeistaat dos alemães, o ‘Estado de Polícia’, institucionalizado por um conjunto de práticas específicas na Alemanha do século XVII, identificado por Michel Foucault no livro "Segurança, Território, População". Portanto, o poder político do Estado só é, secundariamente, o poder de uma classe para opressão de outra, materialmente ele é polis, polícia – serviço de manutenção do serviço viário – que confunde a ordem social com o controle da circulação [pessoas, mercadorias] e a revolução [levante] com o engarrafamento, o estacionamento ilícito, a colisão. A polícia ocupar-se-á com o número de habitantes, com as necessidades imediatas que a vida e o nascimento lhes deram, ela cuidará das estradas, da navegabilidade dos rios – o ‘espaço da circulação’ tornar-se-á um objeto privilegiado para a polícia.

Polis, polícia e cidade se confundem porque, de todo modo, a cidade é o correlato da estrada e só existe em função de uma circulação e de circuitos, ela é uma rede, porque está essencialmente em relação com outras cidades. Alguns autores souberam distinguir o sistema imperial-palaciano e o sistema citadino, urbano. Há cidade nos dois sistemas, mas no primeiro, a cidade é uma excrescência do palácio ou templo, no segundo, o templo é uma concreção da cidade – num caso, a cidade é a capital, no outro, é a metrópole. São estratificações históricas que possibilitam que a cidade exponha a coexistência de um poder soberano como potência de morte e de uma força policial enraizada num dispositivo disciplinar.

Atualmente no Brasil, as práticas paramilitares ou milicianas bem como os crimes passionais e parentais asfixiam as relações sociais e são ilustrações deste desejo de poder do soberano, que assombra a morte, ao coexistirem com dispositivos disciplinares penitenciários e mecanismos de controle alternativos e de alta tecnologia. Enfim, quanto mais se buscar por soberania mais os limites entre a vida e a morte deixarão de ser nítidos, tornar-se-ão difusos. Onde o direito de se ‘fazer morrer’ das práticas do soberano [suplícios, torturas, esquartejamentos] ainda prevalecer, sociedades inteiras vão continuar a sangrar, em cujo conflito a polícia se imiscui e coloca em dúvida, muitas vezes, o regimento de se ‘deixar viver’.

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