segunda-feira, 29 de junho de 2009

Xamanismo e Profetismo da Floresta


A combinação de funções sacerdotais com a autoridade real é conhecida de todos. A Ásia Menor sediou, por exemplo, várias capitais religiosas: Zela e Péssimo foram dominadas por sacerdotes. Essa associação real e sacerdotal foi comum na Itália e Grécia antigas. Havia uma razão pela qual o sacerdote tinha que matar seu predecessor. Assim, era sacerdote e assassino. A ‘regra do santuário de Nemi’ se estabelecia, segundo James George Frazer em seu livro “O Ramo de Ouro”, de modo tal que o candidato ao ofício sacerdotal só ascenderia a ele matando o sacerdote, ocupava o posto até que chegasse, enfim, a sua vez de ser morto por alguém mais hábil ou mais forte – este posto conferia, em geral , o título de rei. Essa combinação entre poderes sacerdotais e reais intercalava-se sucessivamente entre vida e morte, contudo entre os xamãs sul-americanos o poder de vida e morte se exercia de outro modo, assim como Pierre Clastres descreveu em seus livros “A Sociedade contra o Estado” e “Arqueologia da Violência”. Mas quem eram então os xamãs?

Figura muito importante das sociedades indígenas, o xamã [ou o pajé] era respeitado, admirado e temido. Apenas ele possuía poderes sobrenaturais para dominar o perigoso mundo dos espíritos e dos mortos. Entre os índios, uma população de fantasmas atormentava o mundo dos homens. Se o xamã era um sábio que cuidava dos doentes ou um homem capaz de provocar a vida, então, ele não deixava de ser um homem que podia matar. Neste caso, entre as sociedades primitivas da América do Sul, o xamã era o ‘senhor da vida e da morte’. Com efeito, afirma-se que havia uma hierarquia entre os xamãs: o grau inferior dos ‘pequenos xamãs’ que medicavam sua família e os cães; a ‘média categoria’ daqueles que podiam até serem líderes; os ‘grandes xamãs’ que ultrapassavam todos os outros e protegiam sua comunidade dos maus espíritos. A natureza é aqui atravessada pelo sobrenatural, onde os seres da natureza [animais e plantas] também são agentes sobrenaturais, os acontecimentos não são considerados como acidentais, mas como agressões de forças sobrenaturais de espíritos das florestas, das almas de mortos ou de xamãs inimigos. O xamã se situa como médico no centro da vida religiosa do grupo e deve descobrir onde a alma está prisioneira, para libertá-la do seu cativeiro e reconduzi-la ao corpo do paciente, visto que a doença para os primitivos era a antecipação da morte, ou seja, a separação entre o corpo e a alma. Senhor da vida e da morte, portanto, os xamãs buscavam uma ‘Terra sem Mal’. As grandes migrações religiosas guiadas por xamãs era consequência desta busca excepcional dos índios tupi-guarani, onde as tribos se movimentavam para atingir as ricas moradas dos deuses. Absolutamente diferente, por exemplo, das práticas do sultão de Deli, Muhammad Tughlak, a partir de sua severidade, foi acusado de ter obrigado os habitantes de Deli a abandonar a cidade e, após a evacuação, ordenou-lhes que se mudassem para Daulatabad [cidade que queria transformar em capital], conforme Elias Canetti em seu livro “Massa e Poder”, não restou um gato ou cão nos arrabaldes e palácios de Deli. Por outro lado, a sociedade tupi-guarani, sob pressões diversas [demográficas, sociológicas e políticas] estava em vias de deixar de ser uma sociedade primitiva. Talvez não fossem sacerdotes nem muito bem xamãs, mas profetas [os karai], que por sua única atividade – a fala – proferiam discursos em todos os lugares e se deslocavam incessantemente: o nomadismo dos profetas podia resultar do seu não pertencimento a nenhuma comunidade, mas nem por isso eram considerados inimigos. O discurso dos karai afirmava o caráter mau do mundo e exprimia a certeza da conquista de um mundo melhor, isto não parecia um delírio para os índios, mas repercutia a figura má do mundo.

Discurso que constatava a morte da sociedade, enfim, a divisão e a desigualdade, daí traduziam-se a prática dos profetas em suas ‘migrações religiosas’. Entre os tupi-guarani, as migrações religiosas era conduzida pelos profetas para que os índios abandonassem suas aldeias e plantações. Se no mito do paraíso terrestre, comum a todas as culturas, somente após a morte o homem ascende a ele, para os karai, ao contrário, a ‘Terra sem Mal’ era um lugar real, acessível, sem passar pela morte. Este talvez seja um elemento fundamental que explica como as sociedades primitivas não só possuem o Estado, mas agem contra ele.

domingo, 28 de junho de 2009

O Ethos Guerreiro Sul-americano


A dupla descoberta renascen- tista foi o retorno à cultura greco-romana e, sobretudo a irrupção do que não existia: o Novo Mundo – a América, onde muitos exploradores se aventuraram com o apoio das monarquias de Lisboa e Madri. Mas, talvez seja, ainda no século XXI, o território dos Yanomami, a última região inexplorada da América do Sul, que abriga a última sociedade primitiva livre, no extremo sul da Venezuela, numa parte da Amazônia que opõe obstáculos naturais a penetração. Toda sociedade primitiva é guerreira, isto é, a guerra pertence à essência da sociedade primitiva contra a ‘máquina de unificação’ que constitui o Estado. A guerra dos Yanomami é um ataque-surpresa: ao amanhecer, enquanto seus inimigos ainda dormiam, flechas eram disparadas por cima dos telhados.

Foi assim que Pierre Clastres afirmou, em seu livro “Arqueologia da Violência”, que não se pode pensar a sociedade primitiva sem se pensar ao mesmo tempo a guerra. Mas a ‘máquina de guerra’ é incapaz de engendrar a desigualdade na tribo, o líder guerreiro não tem condições de impor a sua vontade sobre um grupo. Se o chefe de guerra e os guerreiros permanecem iguais é porque quando um chefe busca impor seu próprio desejo de guerra à comunidade, ela o abandona ou o mata. Toda sociedade primitiva pode se transformar em sociedades guerreiras por circunstâncias locais externas [agressividade de grupos vizinhos] ou internas [exaltação de normas que regem a existência coletiva do ethos guerreiro]. No continente americano [de norte a sul] há uma amostragem ampla de sociedades que levaram longe sua vocação guerreira, onde a guerra ocupava o centro da vida política e de seus rituais, dentre os quais se destacam, o ‘butim de guerra’, os ‘escalpos’ e o ‘canibalismo’.

Primeiramente, o ‘butim de guerra’ se refere a uma espécie de pilhagem de instrumentos metálicos, de cavalos e de prisioneiros. A destinação do metal para aumentar seu rendimento técnico de armas [pontas de flechas, lanças, facas, etc.]; os cavalos eram capturados mais por ‘esporte’ do que por necessidade, tribos como os Abipones, Mocovi, Toba e Guayakuru não careciam de cavalos, eles possuíam milhares deles; os prisioneiros eram a parte mais prestigiosa do butim de guerra, tornavam-se servos ou escravos. O butim de guerra representa, portanto, o sinal de reconhecimento do guerreiro – fonte de prestígios. Em seguida, pelo menos entre as tribos do Chaco [Abipones, Chulupi e Guayakuru] respeitava-se o ato de se escalpar o inimigo abatido. O escalpo é o ponto de partida, não o coroamento do guerreiro: explica o desejo do jovem vencedor em ser admitido junto com os guerreiros. Os escalpos são cabeleiras retiradas de oficiais ou guerreiros inimigos, conservados pelos proprietários, dispostos em estojos de couro ou vime – quando os guerreiros morrem os seus escalpos são queimados juntos.

Enfim, a ‘antropofagia ritual’ pode ser exógena ou endógena. Entre os Yanoama, por exemplo, quando uma pessoa da tribo morre, suspende-se numa árvore o seu cadáver dentro de um cesto até desaparecer as carnes ou as queimam imediatamente. Os ossos são recolhidos e moídos [reduzidos a pó e conservados numa cabaça]: o pó é consumido misturado a um purê de banana. O ritual endocanibal entre os Guayaki [tribo nômade] se realiza ao assar a carne do parente morto e, ao comê-la, abandonam-se os ossos queimados. Os parentes são, enfim, devorados coletivamente em festas que consideram a ‘poeira dos ossos’ ou a ‘carne assada’. Os Tupi-guarani não praticavam o endocanibalismo, por não devorarem seus próprios parentes, mas exerciam o exocanibalismo, ou seja, devoravam prisioneiros de guerra.

Butim, escalpo e canibalismo são rituais ou técnicas de guerra ou de violência comuns na ‘América do Sul primitiva’ que requerem, acima de tudo, uma ascese física complexa, em que o aprendiz pode chegar ao esgotamento: jejuns prolongados, privação contínua do sono, isolamento nas florestas, por meio de absorção intensa de drogas alucinógenas. Ethos guerreiro daqueles que só são chamados de líderes porque são desprovidos de todo o poder – a chefia institui-se no exterior do exercício do poder, onde a guerra impede o Estado. O lugar do poder é realmente no corpo social, que o detém e o exerce como ‘unidade indivisa’, poder que impede que a desigualdade se instale entre os homens. Sob vigilância, o chefe pode ser abandonado por sua tribo, caso o seu desejo de poder tornar-se mais evidente que o do coletivo social. O ‘Descobrimento da América’ forneceu ao Ocidente o seu primeiro contato com os ‘selvagens’, num confronto com um tipo de sociedade radicalmente diferente – o ‘mundo dos selvagens’ e suas guerras incessantes eram impensáveis para o pensamento europeu.

Divinatio, Incipit Homo e Super-Homem


Toda forma é um composto de forças. Dado um composto de forças, questiona-se com que forças de fora elas entram em relação e, logo, qual a forma resultante. Trata-se de saber com quais outras forças, as forças no homem entram em relação, em cada formação histórica, e que forma resulta desse composto de forças. No homem, as forças não compõem uma forma-Homem necessariamente, mas podem se investir num outro composto ou numa outra forma.

O século XVIII não parou de se perder no infinito, onde as forças no homem entram em relação com forças de elevação ao infinito. Estas são forças de fora, pois o homem é limitado e não pode exercer uma potência tão perfeita qual essa que o atravessa. Esse composto de forças não é uma forma-Homem, mas a forma-Deus. O que define esse “solo clássico” é, ainda no século XVIII, a operação do desenvolvimento ao infinito e da formação de continuuns: o Divinatio.

A mutação histórica do século XIX consiste, então, no ato de forças no homem que entram em relação com novas forças de fora que são, ao contrário, forças de finitude. Essas forças são a Vida, o Trabalho e a Linguagem – “tripla raiz da finitude” que provoca o surgimento, de acordo com Michel Foucault em seu livro “As Palavras e as Coisas”, da biologia, da economia política e da linguística. Só quando as forças no homem entram em relação com forças de finitude vindas de fora que o conjunto das forças compõe a forma-Homem e não mais a forma-Deus: Incipit Homo.
Quando a forma-Homem aparece, necessariamente, já compreende a morte do homem. Com efeito, são as próprias forças de finitude que fazem com que o homem só exista através da disseminação dos planos de organização da vida, da dispersão das línguas, da disparidade dos modos de produção, ou seja, o conhecimento não deixa de ser uma ‘ontologia do aniquilamento dos seres’. Gilles Deleuze afirmou, em seu livro intitulado “Foucault”, que a colocação mais adequada do problema que Nietzsche chamava de ‘Super-Homem’ era esta: se as forças no homem só compõem uma forma ao entrar em relação com as forças do lado de fora, com quais novas forças elas correm o risco de entrar em relação agora? Que outra forma pode advir que não seja nem Deus nem o Homem?

A linguística no século XIX acabou por consistir em fazer valer um ‘ser da linguagem’ para além do que ele designa e significa, para além dos próprios sons; foi preciso que a biologia saltasse para a biologia molecular e fizesse a vida dispersa se reunir no código genético; foi preciso que o trabalho se reunisse nas máquinas de terceira geração [cibernéticas e informáticas]. O mecanismo operatório é uma ‘superdobra’ [a ‘dupla hélice’ talvez seja o mais conhecido deles] característica das cadeias de códigos genéticos, nas potencialidades do silício nas máquinas de terceira geração e nos contornos frasais da literatura moderna [o livro de Mallarmé, os ensaios de Péguy, os sopros de Artaud, Burroughs e seus cut-up e fold-in].

As forças no homem entram em relação com forças de fora: as do silício e não mais do carbono; as dos componentes genéticos e não mais do organismo; as dos agramaticais que se vingam do significante. O super-homem é, então, o composto formal das forças do homem com essas novas forças: carregado dos próprios animais, das próprias rochas ou do inorgânico; carregado do ser da linguagem em sua região informe e muda. É o homem que tende a liberar dentro de si a vida, o trabalho e a linguagem. Não se trata do desaparecimento dos homens existentes, mas do surgimento de uma nova forma, nem Deus, nem o homem. Espera-se que ele não seja pior que essas duas formas precedentes.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Ecosofia e Autocolonização Amazônica


Sabe-se que uma política ecológica precisa, para que se torne eficaz, articular no mínimo três componentes ou aspectos, a ecosofia, conforme sublinhou Félix Guattari em seu livro “As Três Ecologias”: [1] Ecologia mental – a inserção ecológica da dimensão psicológica e individual; [2] Ecologia social – a configuração dos interesses sociais e regionais do desenvolvimento ecológico; [3] Ecologia natural – os aspectos físicos, químicos e biológicos intrínsecos ao ambiente natural. Não se trata de hierarquizar as esferas de análise, as estratégias ecológicas devem ser coerentes e impulsioná-las simultaneamente.
Produz-se e reproduz-se um discurso sobre as questões ecológicas que envolvem atualmente a Amazônia brasileira em torno de três problemas básicos. Em primeiro lugar, a Reforma do Código Florestal, que determina uma proporção de 80% da área florestal original que deve ser preservada pelos seus proprietários. Em segundo lugar, a reabertura da BR-319, que se torna preocupante por poder agravar um povoamento hostil ao meio ambiente. Em terceiro lugar, construções de usinas hidrelétricas que tem sido paralisadas por laudos do IBAMA.

Os problemas que se redundam, nestes três casos, estão praticamente circunscritos ao componente natural da ecologia, equivocamente, os aspectos ‘social’ e ‘mental’ acabam por ser punidos. Enquanto só os argumentos do Greenpeace e de mais meia dúzia de ONGs forem ouvidos; os diagnósticos de biólogos e outros dados científicos forem considerados; a força da lei das autoridades manterem sua crueza - paradoxalmente, a população amazônica vai continuar a superar os especialistas. Em outras palavras, infelizmente, não foi com leis de segurança ambiental nem com apoio científico que se preservou a Amazônia até hoje, porque além de floresta, ela é uma morada, como tal poderia ter sido gerida por normas racionais. Afinal, há apenas cinquenta anos que, no entanto, a região amazônica passa por tentativas de integração ao território nacional, impulsionada a partir da década de 1960 e das políticas do regime autoritário no Brasil. São 500 anos de exploração européia no território brasileiro e ainda possuímos tribos resistentes e florestas preservadas, mesmo se se considerássemos as mazelas da ‘autocolonização’ na Amazônia, como queimadas e extrativismo ilegal.

Autocolonização que se manifesta em todas as iniciativas governamentais para a região e toda a diversidade econômica que se imiscui na Amazônia. Não resta dúvida que se tem que punir quem destrói o meio ambiente, seja na floresta ou nas metrópoles. Mas é inegável, o mérito da manutenção das reservas naturais é da ‘população florestana’ e, contraditoriamente, mais uma vez, excluída do processo decisório e estrangulada por leis ideais ou ‘enforcement vazio’. Uma lei pode encher os olhos, mas também nos cega. Percebe-se de longe o equívoco da verticalização das estratégias ambientais que acabam por anular a horizontalização das táticas de sobrevivência. Portanto, trata-se de inverter essa lógica equivocada, na medida em que se substituir essas estratégias político-ecológicas de longo alcance, por táticas capazes de absorver ou repensar as práticas reais e cotidianas da sociedade e da cultura amazônica, quem sabe assim, uma normatização passaria a ter substância, vida.

sábado, 20 de junho de 2009

Commodities, Company Town e Fair Trade


Maior reserva territorial da sociedade brasileira, a Amazônia é um dos últimos grandes espaços pouco povoados do planeta, embora sua biodiversidade e seu equilíbrio ecológico regionais tornem seu desenvolvimento ainda um desafio científico e estratégico. Principalmente porque a mineração exerceu o papel de estruturador [desestruturador e reestruturador] de espaços na Amazônia brasileira. A ampliação dos mercados indiano e chinês tornou evidente a expansão econômica contemporânea das commodities, ou seja, mercadorias cujos preços se determinam em dólares pelo mercado mundial, mas tem efeitos concretos socioambientais à escala local. Constata-se, porém, que a velocidade de circulação dos minerais não promoveram grandes mudanças rumo à integração regional da Amazônia oriental brasileira. Em que medida, então, os corredores de mineração amazônicos dinamizaram e integraram as economias locais?

As ‘rotas’ ou ‘corredores-fronteira’ pouco acionaram uma integração das vias de circulação mineral com os lugares situados ao longo do seu percurso. Quatro desses corredores minerais amazônicos foram examinados por Maria Célia Nunes Coelho em seu artigo “Commodities Minerais e a Permanência do Padrão Corredor-Fronteira na Amazônia Oriental”:

1] o corredor da extração e circulação do manganês no corredor da serra do Navio ao Porto Santana no Amapá: corredor estagnado, sem dinamismo, com baixa integração regional, percebe-se um ex-espaço funcional;

2] o corredor da extração da bauxita-alumina e alumínio no corredor de Trombetas ao baixo curso do rio Amazonas; percorrido por navios graneleiros de até 60 toneladas, com baixa integração regional, espaço funcional;

3] extração do ferro no corredor de Carajás [PA] aos portos de Madeira e Itaqui [MA]: corredor-estruturante e inclui uma ferrovia que tende a diversificar os transportes, espaço multipolar em processo de formação, média integração regional;

4] corredor de extração do caulim e, futuramente, bauxita no rio Capim em Ipixuna do Pará: formado por dutos subterrâneos com baixa integração regional, espaço unipolar, estruturado pelo Distrito Industrial de Barcarena.

Percebe-se, em alguns corredores, o padrão norte-americano de construção de company town – vilas dotadas de rede de esgoto, água potável, energia elétrica e tratamento de lixo. O Núcleo Urbano de Carajás seguiu o modelo company town de Serra do Navio no Amapá e da Mineração Rio Norte [MRN] no vale do rio Trombetas [Pará], assim como os pequenos núcleos residenciais em Parauapebas, Marabá, Nova Vida, Monte Alegre, Pequiá e Santa Inês. Idealizou-se, contudo, construir um ‘cinturão de proteção’ em volta das concessões de explorações minerais de Carajás pela Companhia Vale do rio Doce [CVRD], conforme o artigo escrito por Maria Célia Nunes Coelho intitulado “Reflexões a Propósito do Futuro dos Assentamentos e das Populações Quilombolas em Áreas de Mineração da Amazônia Oriental”. O IBAMA obteve a permissão para a criação de unidades de conservação no entorno de uma área no sudeste do Pará, em áreas dos municípios de Parauapebas e Oriximiná.

Primeiramente, com a criação das unidades de conservação em torno da Província Mineral de Carajás, a estratégia de fechamento do ‘cinturão de proteção’ no entorno da mineração foi ainda mais favorecida, porque a área de concessão de concessão de uso da CVRD limita-se a oeste com a reserva dos índios Xickrin do Cateté. Em segundo lugar, após o Massacre de Eldorado de Carajás, o governo acelerou os assentamentos no sudeste do Pará, Marabá concentrou 60% deles, entre 1997 a 2001. Enfim, em terceiro lugar, antes da atividade mineradora avançar para o médio e baixo vale do rio Trombetas, no município Oriximiná, uma população de negros [descendentes e ex-escravos] vivia da exploração da castanha-do-pará, da extração de óleos vegetais, da lavoura de subsistência e da pesca. Área de mineração de bauxita concedida a MRN, onde foram criadas a Reserva Biológica do Rio Trombetas em 1979 e a Floresta Nacional Saracá-Taquera em 1989, uma estratégia adotada foi a do ‘cinturão de proteção’, com 27 comunidades rurais, sendo que 11 eram remanescentes de quilombos e estavam situadas nestas áreas de conservação ambiental federais.

Não se trata apenas de distribuir assentamentos para pequenos grupos em cinturões verdes, mas torna-se preciso organizá-los economicamente. De que maneira pode-se enunciar um modelo economicamente viável aos moradores e pequenos produtores amazônicos? Trata-se do ‘comércio justo’ que pode ser mais bem examinado a partir do chamado fair trade que objetivava, para Beat Grüninger e Alex Uriarte em seu artigo “Fair Trade: uma introdução e algumas considerações”, auxiliar pequenos produtores pobres e isolados comercialmente, mobilizando instituições filantrópicas e de consumidores a inserir esses produtos no mercado. Deste modo, o ‘comércio justo’ é uma parceria entre produtores e consumidores, que trabalham para ultrapassar as dificuldades encontradas na produção, a fim de aumentar seu acesso ao mercado e promover o desenvolvimento sustentado.

A dimensão política e ambiental acrescenta-se ao ‘comércio justo’, incentivando formas de empoderamento dos agricultores familiares, trabalhadores assalariados e produtores, que estão em desvantagem ou marginalizados pelo sistema convencional do comércio. Jacob Binsztok escreveu, em seu artigo “Agricultura Familiar, Associativismo, Cafeicultura Orgânica e Comércio Justo na Amazônia”, sobre as formas de empoderamento em Rondônia, que prioriza a inserção de gênero, mas abrange os jovens agricultores e os agricultores de terceira idade, ao reservar a essas categorias cerca de 10 a 30% dos cargos de diretorias dos sindicatos filiados a Federação dos Trabalhadores de Agricultura do Estado de Rondônia [FETAGRO]. A proposta do ‘comércio justo’ engloba ações para erradicação do trabalho escravo e infantil; preservação do meio ambiente e eliminação das discriminações; eliminação da intermediação comercial especulativa e garantia ao pagamento justo aos pequenos produtores. A partir da década de 1990, o Estado tomava uma série de medidas que se sucederam com a criação do IBAMA [1989] e do Ministério do Meio Ambiente, além de dois programas cruciais para a Amazônia: a) o Programa Nacional do Meio Ambiente [PNMA 1990/91] e o Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil [PPi 1990/91]. O PNMA e PPi são instrumentos de desregulação no Brasil, mesmo sendo voltados para a preservação dos recursos genéticos, neles são enfatizadas as participações das ONGs. Trata-se de uma nova parceria e planejamento fundados na aliança entre ONGs, grandes bancos e o Governo Federal, além dos sindicatos e empresas privadas, que se voltam recentemente para o setor.

O estímulo à desregulação se manifesta, entretanto, territorialmente, por dois fatos: Novos Recortes Territoriais – que correspondem à multiplicação de vários tipos de áreas reservadas e projetos comunitários; Novos Atores – as ONGs competem ou complementam a burocracia estatal com recursos externos ou fundações internas para a definição da política territorial. A associação dos recortes territoriais com as ONGs, sindicatos e comunidades revela a transição territorial na Amazônia, em suma, ou prioriza-se a desregulação associada ao desenvolvimento sustentado e mais democrático ou, pelo contrário, incentiva-se mais ainda à fragmentação.
Será que atualmente as estratégias escolhidas para o ordenamento territorial amazônico são diferentes às que impulsionam a ‘desregulação’ e a ‘fragmentação’? Em busca de maior regulação, talvez, estrategicamente, o caminho dos ‘cinturões verdes’ sob uma produção em ‘economia justa’ seja o único capaz de minimizar os impactos ambientais e econômicos dos corredores minerais e, principalmente, o impacto do controle político exercido pelo ‘terceiro setor’.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Sufrágio na Era dos Piquetes


Sabe-se que o sufrágio universaliza as políticas nacionais e norteia a geopolítica mundial. Há partidos mais nacionalistas e outros mais liberais. Os mais liberais estão articulados exclusivamente ao capital internacional, mas os nacionalistas também estão, porém de modo singular. Os partidos liberais deixam, em geral, os interesses nacionais pelos globais. A ‘globalização’ como um processo econômico, aliada à tecnologia da informação[1], foi um resultado dessa dissimetria de interesses, que reorganizou o mundo nas décadas de 1980-90. Comprometer-se com o capital financeiro via endividamento[2]; privatizar estatais; terceirizar os contratos de trabalho[3]; ‘flexibilizar’ o processo produtivo[4] e instituir a ‘guerra dos lugares’[5] são algumas práticas que caracterizaram esse período, além de reconhecer os EUA como superpotência mundial em concorrência com os soviéticos. No final da década de 1990 e na primeira do século XXI, contudo os interesses nacionais tornaram-se evidentes, como não poderia ser diferente ‘após essa onda neoliberal’. Na América Latina e no Oriente Médio, pontos estratégicos da geopolítica mundial, os interesses nacionais afetaram a população e foram eleitos representantes nacionalistas. No final da II Guerra Mundial a década de 1970, após a descolonização da África e da Ásia, os interesses nacionalistas estavam latentes e foram mobilizados por resistências, guerrilhas e insurgências como, por exemplo, na Argélia, na Índia e, não sem o festival bélico e a interferência de interesses norte-americanos, no Vietnã e na Coréia. O que Frantz Fanon indicou em seu livro “Os Condenados da Terra” não foi apenas o processo de tomada do Estado por países do Terceiro Mundo, mas principalmente a insatisfação da população em relação a essas ‘correntes nacionalistas’, tanto por ser representadas pelas elites das nações recém-independentes como mantinham privilegiados os interesses internacionais. O fracasso do regime nacionalista no Terceiro Mundo foi percebido muito antes da queda do muro de Berlim.

O fracasso desses nacionalismos no Terceiro Mundo resultou, de um lado, na instauração da democracia em países que estavam sob um nacionalismo autoritário, de outro lado, na derrota eleitoral desses nacionalismos. Globalmente identificados e analisados através das revoluções de maio de 1968[6], enfim dois problemas se impuseram à constituição política terceiro-mundista: [1] tornarem-se independentes da colonização européia; [2] reconhecerem a elite nacionalista como mantenedora do capital estrangeiro. Não tardou para que uma ‘onda neoliberal’ se espalhasse por grande parte do Terceiro Mundo, no Brasil esse momento coincidiu com redemocratização do país e mais especificamente a partir do governo Collor de Melo, mas ganhou uma racionalidade mais intensa com as políticas econômicas de FHC. De meados da década de 1980 ao início do século XXI populações inteiras experimentaram as políticas neoliberais. O que aconteceu, entretanto, foi um retraimento dessas políticas especulativas e um novo ‘nacionalismo’ foi edificado como contraproposta, seja culminando no autoritarismo como na Venezuela, seja trabalhista como no Brasil, seja camponês como na Bolívia, seja religioso como no Irã. Atualmente, na Venezuela, na Bolívia e no Irã os oposicionistas neoliberais foram às ruas e a imprensa teve muitos problemas para permanecerem nos momentos de piquete[7], eles acusam seus adversários por lesarem o processo eleitoral. Nessa matemática eles não acreditam, em suma, que perdem. O que acontecerá no Brasil se há urna eletrônica?
Notas:
[1] As relações estabelecidas pela doutrina neoliberal entre a Globalização e as suas tecnologias cibernéticas foram analisadas por Manuel Castells em seu livro “A Sociedade em Rede”.
[2] David Harvey em seu livro “O Novo Imperialismo” descreveu o neoliberalismo através da acumulação do capital via espoliação, isto é, um conjunto de práticas que promoveram o endividamento de nações terceiro-mundistas em proveito dos países mais ricos do mundo.
[3] O endividamento, a privatização e a terceirização como elementos da economia neoliberal nos países periféricos ao longo do século XX e a supremacia das instituições internacionais de poder econômico como o FMI, o Banco Mundial e a OMC são algumas das questões que estão contidas no livro “A Globalização da Pobreza” de Michel Chossudovsky.
[4] A flexibilidade do trabalho por meio das novas tecnologias de comunicação [informáticos e telemáticos] permite o trabalho domiciliar, o que possibilitou Richard Sennett desenvolver a concepção de ‘flexitempo’ em seu livro “A Corrosão do Caráter”.
[5] No período neoliberal, a diminuição dos impostos, a mão-de-obra barata, a localização privilegiada em relação à produção dos recursos são alguns itens que inserem as cidades na luta concorrencial para implantação de empresas em seus parques industriais, em geral, multinacionais, assim, o conceito de “guerra dos lugares” foi concebido por Milton Santos e María Laura Silveira, mais aproximado da realidade brasileira no livro “O Brasil e Sociedade no início do século XXI”.
[6] Contrários a hegemonia norte-americana e ao conluio soviético, Immanuel Wallerstein em seu livro “O Declínio do Poder Americano” demonstrou que os revolucionários de 1968 condenavam a ‘velha esquerda’ como problema e não como solução.
[7] Realizados atualmente e em proveito de interesses externos, esses ‘piquetes democráticos’ parecem ter por influência movimentos que lhes contradiziam há décadas atrás, nos períodos em que neoliberalismo estava no poder. Por exemplo, o movimento dos ‘piqueteiros’ argentinos definidos por Michael Hardt e Antonio Negri, em seu livro “Multidão”, por manifestação de trabalhadores desempregados que funcionavam com sindicatos militantes e politizados dos desempregados.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Bolhas Fictícias ou Tributos Reais


Tempo de paz? Não é necessário inovar demais, pois a estratégia é velha conhecida. Minas Gerais quer pagar menos com presídios – bala perdida, mulher mata marido a facadas. O tráfico de drogas e as milícias são figuras que também proliferam nessa guerra que invade as cidades, adentra as casas e percorre o trânsito. Vencidos pela novidade, os homicídios parentais, passionais até nos comovem. O sensacionalismo tipicamente jornalístico revela o aumento do número de crimes violentos nas metrópoles brasileiras e, com isso, a sensação de insegurança alcança um número relativamente grande de pessoas. Marcelo Lopes de Souza denunciou, em seu livro “Fobópole”, que a mídia tem se encarregado de ampliar e retroalimentar o medo, afinal, o crime não só rende boas manchetes e aumenta a venda de jornais e revistas como produz bons negócios, tais quais, carros blindados, condomínios exclusivos, serviços e tecnologia de segurança, principalmente, os candidatos a cargos públicos ganham com isso. Nesse momento de crise, em que o país precisa tomar fôlego e se reposicionar economicamente, a propagação da violência pode, pelo sim ou pelo não, contribuir com o aquecimento do mercado interno. O discurso midiático tem buscado antecipar massas de ar cada vez mais frias e temporais cada vez mais intensos, tornados norte-americanos –, entretanto, os impostos devem, nessas persistentes críticas, cair. Empolgados com a tática de incremento do IPI através dos cigarros e a sua redução nos eletrodomésticos e automóveis, os economistas liberais [mais próximos dos media] pensam na aniquilação dos impostos, de uma só vez, essa barbaridade. Ou seja, parece até que os impostos devem deixar de existir pela ótica global dos economistas afiliados aos grandes meios de comunicação. Essa colisão entre violência e imposto causa um caos inoportuno, principalmente aliado ao temerário discurso da crise instaurado atualmente pelos próprios mass media.

O que é o imposto? Poderia até dizer que é uma fórmula mágica inventada por imperadores orientais. Mas é quase isto. Grosso modo e de maneira simplificada, mas nem por isso equivocada, o imposto possui sua história singular. Por um lado, nos impérios arcaicos, conforme escreveu Guillaume Cardascia em “Armées et fiscalité dans le monde antique”, as terras eram distribuídas aos funcionários que as explorassem ou as arrendassem. Se o funcionário recebe uma renda em trabalho e em produtos, então, ele deve ao imperador um imposto em dinheiro. A necessidade de ‘bancos’ é proveniente daí, onde a equivalência será assegurada, bem como a conversão e a circulação de bens-moeda pela economia. Por outro, autores como Gabriel Ardant mostrou que a função comercial não dava conta da origem da moeda, prova-se inclusive com o mundo grego ocidental. Com efeito, Deleuze e Guattari em “Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia” afirmaram que o imposto monetariza a economia e é ele que cria a moeda. O imposto cria a moeda em circulação, em movimento e em rotação, necessariamente a cria em correspondência com serviços e bens ao longo de toda a circulação. Se for do imposto e não do comércio que a forma-dinheiro nasce, então essa forma-dinheiro vinda do imposto torna possível uma apropriação monopolista pelo Estado das trocas exteriores. Os bens e os serviços são mercadorias, a mercadoria é medida e igualada pelo dinheiro, o que decorre, antes de tudo, do imposto. Lógico, o alcance do imposto aparece no imposto dito indireto, isto é, faz parte do preço e influencia o valor da mercadoria, independentemente e fora do mercado. O imposto é esse elemento adicional que se acrescenta aos preços, mas ele apenas constitui a primeira camada do preço – ímã monetário – sob o qual se aglutinam a renda e o lucro. Aparelho de captura é, enfim, o imposto, além da renda e do lucro.

O efeito contraditório dos comentários econômicos a respeito da redução dos impostos aliado a proliferação da violência como estimulante ao consumo se transformam numa verdadeira ‘anomalia grotesca’. A cacofonia que complica a organização do mercado neste período de crise é, felizmente, apenas midiática. Curiosamente o imposto cria o dinheiro, não as trocas. As políticas governamentais parecem cônscias à manutenção ordenada dos impostos, longe do ‘delírio neoliberal’ maquinando bolhas de capital fictício e de papéis podres. O que se espera de um Estado é, portanto, a manutenção e, principalmente, a restituição desses impostos à população, por diversas formas, infra-estrutura, programas sociais e de seguridade.

EZLN e FSM [enxames]


Investiga-se a utilização do mecanismo informacional como suporte de movimentos e organizações sociais em rede. Não se trata de interpelar as técnicas capazes de ‘desarmar’ um sistema informacional como em uma infowar, ilustradas pelas práticas militares norte-americanas nos Bálcãs. Trata-se, ao contrário, de compreender os meios de comunicação e informação como ‘armas’ políticas, democráticas. Primeiramente, Scherer-Warren, em seu livro intitulado “Redes de Movimentos Sociais”, não deixou de definir os grassroots [movimentos de base] que foram, desde as décadas de 1970-80, parte da multiplicação das comunidades eclesiais de base e suas pastorais cristãs, mas caracterizou as networks [redes de movimentos] que se formam no Brasil por quatro princípios comuns: articulação dos atores e movimentos sócio-culturais; transnacionalidade; pluralismo organizacional e ideológico; atuação nos campos cultural e político. Neste mesmo período, a partir da década de 1970, houve a transição fordista para a produção pós-fordista, em que as técnicas e as organizações da produção industrial transferiram-se para unidades produtivas menores e móveis, isto é, para estruturas de produções mais flexíveis. Não é forçoso afirmar que, a partir de então, as redes de informação, comunicação e cooperação vão passar a definir os novos movimentos guerrilheiros. As forças guerrilheiras policêntricas serão compostas por numerosos focos independentes, onde não existe um centro, mas uma pluralidade de ‘nós’ em comunicação uns com os outros.

O ataque em rede foi descrito por Hardt e Negri em seu livro “Multidão” como uma multiplicidade de atacantes irracionais, desconhecidos, incertos, invisíveis e inesperados. Uma rede disseminada ataca o inimigo como um ‘enxame’, ou seja, inúmeras forças independentes atacam em todas as direções um ponto específico e em seguida desaparece do ambiente. O ataque em rede se apresenta como um enxame, porque ele parece informe. Deduz-se do conceito de enxame, afinal, o comportamento coletivo de animais sociais que investigam sistemas de inteligência disseminados com múltiplos agentes – a inteligência do enxame baseia-se, pois na comunicação. Essa forma de inteligência coletiva pode surgir da comunicação e da cooperação. Os enxames surgem como novas organizações políticas em rede e compõem-se por uma multidão de diferentes agentes criativos em torno da sexualidade, raça, etc. Não se trata de uma evolução natural das formas de resistência, mas não se pode deixar de observar, ao longo do século XX, sucessivas organizações de movimentos e lutas que partiram dos exércitos populares [cubano, maoísta], os bandos de guerrilheiros urbanos [Panteras Negras, tupamaros uruguaios, Facção do Exército Vermelho alemão, as Brigadas Vermelhas italianas] e os movimentos em rede [Exército Zapatista de Libertação Nacional e Fórum Social Mundial].

O Exército Zapatista de Libertação Nacional [EZLN] foi um pivô entre o velho e o novo modelo estrutural de movimentos guerrilheiros em rede. Os zapatistas usam a internet para distribuir os comunicados e alcançar tanto o nível nacional quanto o global. Enfatizam a necessidade de se criar organizações horizontais em rede, em vez de estruturas verticais e centralizadas, como nos exércitos ocidentais, mesmo assim os zapatistas compõem seu exército com uma série de títulos e patentes, resulta daí a emblemática posição rotativa apresentada como um esvaziamento de autoridade no centro: Marcos sinaliza, então, com a patente de subcomandante, a sua relação de subordinação, através de uma meta em que se procura mudar o mundo, mas sem tomar o poder. Os movimentos anti-globalização de Seattle, Gênova e o FSM constituem, portanto, o mais claro exemplo de organizações em rede. Os movimentos anti-globalização não são ilimitados, eles protestam contra o complexo carcerário-industrial e se constituem como o mais avançado movimento de organização em rede. A estrutura disseminada em rede é um modelo democrático de uma poderosa arma contra estruturas capitalísticas de poder, enfim, tende-se a não criar um centro de comando, ao mesmo tempo em que se busca maximizar a autonomia dos elementos componentes. A globalização como ‘retórica neoliberal’ tornou-se uma força importante na década de 1990, como demonstrou Immanuel Wallerstein em seu livro “O Declínio do Império Americano”, cujo foco midiático era o Fórum Econômico Mundial de Davos, promovido pelo Consenso de Washington através das políticas do FMI e do fortalecimento da OMC. Depois dos protestos nos encontros da OMC em Seattle em 1999, uma série de manifestações continuaram pelo mundo contra a ‘agenda neoliberal’, que levou à construção do Fórum Social Mundial, que procura reunir tanto a velha esquerda quanto grupos organizados de forma estritamente local, regional e transnacional. Percebe-se, portanto, que o uso adequado dos meios de comunicação e informação pode servir para a organização menos centralizada dos grupos e mais horizontalizada. Um novo paradigma democrático irrompe-se, toda vez que a liberdade de expressão deixa de estar apenas a serviço dos profissionais da comunicação, mas em proveito de todos. O que uma simples página da internet não pode fazer em tempos de guerra? Ainda não se sabe.

domingo, 14 de junho de 2009

Pilhagem e Diatribe no Atlântico-Sul


Os
revides
neoliberais
se sucedem
na América
Latina, seja
no contragolpe à liderança de Hugo Chávez e, com efeito, à nacionalização do petróleo venezuelano – desde a instauração da Revolução Bolivariana no fim do último século –, seja na diatribe da oposição em relação às denúncias de corrupção na Petrobras e na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis [ANP], estatais experientes em explorações em águas profundas e ultra-profundas, recentemente encontraram gás natural e petróleo no litoral brasileiro: o 'pré-sal'. As queixas dos neoliberais em relação à estatização do petróleo na América Latina têm se transformado em verdadeira estratégia eleitoral tanto na Venezuela, com iniciativas de golpes de Estado, quanto parece ser no Brasil, pelo que se observa para as próximas eleições. O 'anti-populismo' e a 'diatribe' que se proliferaram das campanhas oposicionistas venezuelanas nos últimos anos serão analisadas através do discurso de Michael Reid em seu livro “O Continente Esquecido”, enquanto as práticas neoliberais de pilhagem dos recursos naturais na América Latina, lucrativas e intactas ao longo do século XX, aprofundando-se no período da Guerra Fria, partem das análises feitas por Eduardo Galeano em “As Veias Abertas da América Latina”. Trata-se então de ilustrar a prática econômica neoliberal em relação aos recursos naturais latino-americanos no período pós-guerra, através da verdadeira pilhagem nas minas de ferro brasileiras e nos poços de petróleo venezuelanos. Período em que se consolidou o “neoliberalismo americano”, que se opôs à existência do New Deal de Roosevelt no início da década de 1930, grosso modo, às políticas keynesianas; ao plano Beveridge e a todos os projetos de intervencionismo social-econômico elaborados durante as guerras; a todos os programas sociais desenvolvidos na América da administração Truman à administração Johnson. Desde a década de 1950 os norte-americanos importavam cobre, zinco, bauxita, sem a qual não se fabrica alumínio e, principalmente, petróleo. Essa dependência norte-americana crescente de fornecimentos externos identificava-se aos interesses capitalistas nos vastos recursos minerais da América Latina.

No Brasil, as jazidas de ferro do vale do Paraopeba derrubaram dois presidentes [Jânio Quadros e João Goulart], antes que o presidente marechal Castelo Branco as cedesse a Hanna Mining Co., em 1964. O presidente Eurico Gaspar Dutra [1946-51] havia concedido à Bethlehem Steel, anos antes, quarenta milhões de toneladas de manganês no Amapá, por irrisórios 1,4% das rendas de exportação para o Estado. Foi assinado em 1952 um acordo militar com os Estados Unidos que proibia o Brasil de vender matérias-primas de valor estratégico – principalmente o ferro, utilizado em armamentos – aos países socialistas. Getúlio Vargas desobedeceu, contudo, este pacto e vendeu ferro, entre 1953 e 1954, para a Tchecoslováquia e Polônia por preços mais elevados que os pagos pelos EUA. Em 1957, a Hanna Mining Co. comprou a maioria das ações da Saint John Mining Co., empresa britânica que se dedicava à extração de ouro em Minas Gerais desde o tempo do império. A Saint John Mining Co. operava no vale do Paraopeba, onde havia a maior concentração de ferro do mundo, avaliada em 200 bilhões de dólares. O negócio do século. Diversas pressões se desencadearam sobre os sucessivos presidentes do Brasil, a partir de então, executivos da Hanna tornaram-se membros do governo brasileiro. Foi um bombardeio intenso para reconhecer à Hanna o direito de explorar o minério que era, a rigor, do Estado. Em 21 de agosto de 1961, Jânio Quadros tentou anular as ilegais autorizações à Hanna, ao restituir as reservas nacionais. Quatro dias depois, ministros militares obrigaram Jânio Quadros a renunciar. Até o golpe de 1964 eclodir e homens da Hanna ocuparem cargos no governo autoritário, em vários ministérios. Todo o ferro foi entregue a Hanna, enquanto a US Steel se associava, com 49% das ações, à Cia. Vale do Rio Doce, transformando-se apenas em um codinome da empresa estrangeira, além das concessões recebidas para exploração na serra dos Carajás, na Amazônia[1].

O negócio do petróleo esteve nas mãos de um cartel nascido em 1928 na Escócia, a Standard Oil [New Jersey], a Shell e a Anglo-Iranian [Britsh Petroleum] colocaram o mundo capitalista sob um acordo de divisão do planeta, outras empresas aliaram-se ao cartel, como a Gulf e a Texaco. O petróleo na América Latina provocou, neste sentido, golpes de Estado e desencadeou a guerra do Chaco [1932-35] entre bolivianos e paraguaios. A primeira refinaria estatal latino-americana foi a uruguaia ANCAP [Administração Nacional de Combustíveis, Álcool e Portland], inaugurada em 1931. O chefe do Conselho Nacional de Petróleo do Brasil, na época, general Horta Barbosa, viajou para Montevidéu e se entusiasmou com a ANCAP, assim a Petrobras iniciou suas operações em 1953. Certamente, a Petrobras foi mutilada no Brasil, por um lado, o cartel [Esso, Shell e Atlantic] passou a distribuir a gasolina, lubrificantes e diversos fluidos, por outro lado, a indústria petroquímica foi desnacionalizada pelo governo de Castelo Branco. A iniciativa privada nunca se ocupou livremente do petróleo brasileiro antes de 1953, um caso ilustra a relação do cartel com a exploração de petróleo no Brasil: em novembro de 1960, o estado do Sergipe passaria à vanguarda da produção de petróleo, mas em agosto do mesmo ano, Walter Link recebeu meio milhão de dólares para analisar a espessura sedimentar do estado, ex-geólogo [típico condottieri] da Standard Oil de New Jersey, rebaixou para nível C, como inexpressivo, depois, soube-se que era nível A. Ele trabalhava como agente da Standard, resolvido a não encontrar petróleo no Brasil, assim o país continuaria dependente da filial Rockefeller na Venezuela.

No período da guerra fria, praticamente a metade dos lucros norte-americanos na América Latina provinham da Venezuela, sua maior exportadora de petróleo. Caracas chegou a crescer sete vezes em trinta anos, arranha-céus subiram junto com torres de petróleo no Lago Marabaico. Três milhões e meio de barris de petróleo eram produzidos por dia, na década de 1970, com a cifra de setenta milhões de dólares anuas em média, confessos como renda do capital estrangeiro. A Venezuela foi explorada intensamente, a despeito de crescer em média 6% a.a., entre 1920-1980, até que, no final da década de 1990, Hugo Chávez ganhou as eleições. Ressalta-se toda uma trama política que envolveu a presidência de Hugo Chávez: da posse de Carlos Andrés Perez ao caracazo em 1998, como antecedentes do golpe militar bolivariano. Proliferou-se um discurso anti-populista da oposição que se beneficiava da pilhagem do petróleo e da privatização dos meios de produção. Com o alvo da corrupção, toda uma diatribe neoliberal se manifestou, mas agora como excluídos do exercício do poder sobre os recursos naturais nacionalizados. Torna-se necessário repensar o “Plano Bolívar 2000” como paradigma político ou estratégia geral da oposição a respeito do controle privado do petróleo latino-americano a partir de apenas dois aspectos: [1] Quando Chávez ousou demitir o Conselho de Administração da Petróleos Venezuela [PdVSA], a companhia petrolífera estatal, ele acusou a PdVSA de ter promovido um Estado dentro do Estado, agindo em nome de seus próprios interesses e não dos interesses venezuelanos. Os eventos que se sucederam, em abril de 2002, estabeleceram uma crise ao ponto de o comando do exército pedir a renúncia de Chávez; [2] passado crise, greves, manifestações da oposição, referendos, eleições, Hugo Chávez criou novos programas sociais, “as missões”, fornecendo aos pobres os serviços que antes não estavam disponíveis, acusado pela oposição por fazê-lo de forma clientelista, como um Estado Paralelo que só prestava contas a Chávez. Com o intuito de conservar as velhas práticas de pilhagem, a oposição prenhe de interesses privatistas e liberais não conseguiu criar pânico e instabilidade na Venezuela, ela saiu enfraquecida, afinal, muito recentemente, em janeiro de 2007, Hugo Chávez não só ganhava mais um mandato como nacionalizou uma das principais empresas de telecomunicações – a CANTV, com 28,5% de participação americana. Os resultados obtidos com a Venezuela servem-nos de um ensaio geoestratégico para a atuação do próximo conflito entre oposição e governo nas eleições de 2010. Sobre a Petrobras uma diatribe se espraia semelhantemente, em primeiro lugar, as queixas de Chávez à empresa estatal venezuelana, sobre a criação de um Estado dentro de outro Estado, associadas ao paradoxo da "Petrobras é do Brasil ou o Brasil é da Petrobrás”, quando os interesses da empresa são diferentes dos interesses do país; em segundo lugar, as práticas de corrupção dos projetos sociais são denunciadas pelos opositores da Revolução Bolivariana, da mesma forma em que os opositores do governo Lula levantaram suspeitas de corrupção na Petrobras, com ênfase nos gastos com propagandas e patrocínios.

Não se consideram tanto as diferenças entre as práticas políticas que irradiam de Hugo Chávez e o campo de forças que estão se constituindo no setor petroquímico estatal do governo petista “Brasil para todos”. Trata-se de uma análise “estratégica”, no lugar de uma análise “dialética”, ou seja, aquilo que Michel Foucault distinguiu, em seu livro “Nascimento da Biopolítica”, como 'lógica da dialética' [termos contraditórios num elemento homogêneo] e como 'lógica da estratégia' [conexões entre termos díspares, heterogêneos]. Certamente, na atualidade, os negócios petrolíferos latino-americanos mais atraentes são os poços venezuelanos e a alta tecnologia da Petrobras, em termos de nacionalização, por enquanto, os primeiros já foram salvos. Resta saber no Brasil quais serão as estratégias tomadas neste campo de batalhas, da exploração petrolífera, que chegam a depor, em período de forças hegemônicas, presidentes eleitos democraticamente. Porém, este período de crise econômica nos países desenvolvidos [EUA, Comunidade Européia e Japão], isto é, momento inegável de recessão do capitalismo que pode acabar por forçar os neoliberais a projetarem a sua própria imagem corrupta sobre os negócios petrolíferos, num oceano de denúncias, dentre suspeitas e certezas, talvez se soçobrem apenas dúvidas, isto é, onde havia bombas só restem fogos de artifícios.


Notas:
[1]Eduardo Galeano afirmou em “Veias Abertas da América Latina” que “a imperiosa necessidade de materiais estratégicos, imprescindíveis para salvaguardar o poder militar e atômico dos Estados Unidos, está claramente vinculada à maciça compra de terras, por meios geralmente fraudulentos, na Amazônia brasileira. Na década de 1960, numerosas empresas norte-americanas [...] lançaram-se num rush febril sobre esta selva gigantesca. Previamente, em virtude do acordo firmado em 1964, os aviões da Força Aérea dos Estados Unidos haviam sobrevoado e fotografado a região. Utilizaram equipamentos de cintilômetros para detectar jazidas de minerais radioativos pela emissão de ondas de luz de intensidade variável, electromagnetômetros, para radiografar o subsolo rico em minerais não ferrosos, e magnetrômetros para descobrir e medir o ferro. Os informes e as fotografias obtidas no levantamento da extensão e profundidade das riquezas secretas da Amazônia foram postos em mãos de empresas privadas”.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Circo Ciber e PsyOps [Sabotage]


Os fluxos de informação são estimulados por um arsenal cibernético e navegam no ambiente aeronáutico, privilegiado por excelência, trafegando sob uma estratégia Open Sky que estende sua transparência à escala atmosférica do ecossistema planetário. Pós-industriais, as sociedades de controle ou de comunicação, denunciadas por Gilles Deleuze em seu livro “Conversações”, operam máquinas informáticas, cujo perigo passivo é a interferência e o ativo é a pirataria e o vírus. Substituem-se as greves e as sabotagens [o tamanco – sabot – emperrado na máquina] por uma criação de desvios na fala e vacúolos de não-comunicação, interruptores para escapar do controle. Busca-se compreender exatamente como fugir do controle ao se criar vacúolos, desvios e interruptores de não-comunicação. De que maneira é possível interferir no condicionamento dos fluxos de informação propagados pela imprensa? A relação dos mass media com os setores federais do atual governo brasileiro investigados por suspeitas de corrupção servem-nos de motivação para essas análises geoestratégicas. Com auxílio do livro “Estratégias da Decepção” escrito por Paul Virilio, descreve-se, em primeiro lugar, uma information warfare [infowar: guerra aero-orbital] e seu arsenal informacional, em segundo, o seu experimento militar amplamente utilizado na guerra dos Bálcãs, em meados de 1990. Associam-se a esse armistício, neste mesmo período de guerra no leste europeu, instrumentos jurídicos capazes de legitimar uma guerra ilegal em escala global – o Tribunal Penal Internacional. Antes dessa análise estratégica militar, faz-se uma breve genealogia militar do setor informacional.

A cibernética, quando se uniu aos meios de telecomunicações em “tempo real”, foi capaz de deslocar a lógica da informação e sua barreira logística, isto aconteceu no final da década de 1950, com o projeto de defesa antiaéreo dos Estados Unidos, assegurando a cobertura por radar de todo o espaço norte-americano. A Força Aérea americana e o laboratório Lincoln do MIT pesquisaram um sistema de alerta (a rede SAGE – Semi Automatic Group Environment). Paul Virilio sinalizou no seu texto “A Arte do Motor”, que esse laboratório desenvolvia o whirlwind, primeiro computador funcionando em tempo real, e dedicava-se à criação de uma rede de defesa do território da América do Norte. Pari passu, no Brasil, a existência do Ministério da Aeronáutica [1941] e a criação do Centro Técnico da Aeronáutica [1946] foram os dois fatores que possibilitaram a Indústria Aeronáutica –, a EMBRAER criava aeromodelos e iniciou a produção de aeronaves em 1969, trata-se, pois do período em que o poder aeroespacial foi instaurado como um controle automatizado do espaço aéreo brasileiro, através de unidades de detecção por radar e de telecomunicações estrategicamente localizados[1]. Momento em que a internet foi criada, por um esquema realizado na década de 1960 pelos tecnólogos militares da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada do Departamento de Defesa dos Estados Unidos [DARPA], afirmou Manuel Castells em seu livro “A Sociedade em Rede”, com o objetivo de impedir a tomada ou a destruição dos sistemas de comunicação norte-americanos pelos soviéticos, em caso de guerra nuclear.

O sistema cibernético da web foi criado, strictu sensu, para neutralizar os efeitos eletromagnéticos de uma explosão atômica, evitando um colapso geral das telecomunicações estratégicas. Era da ‘revolução informática’ e também a da desinformação. Desinformar é afogar o telespectador num oceano de informações ou de dados aparentemente contraditórios. Censura-se a verdade dos fatos pela superinformação. O Estado globalitário é babel e não a censura com a tesoura, traduz-se na impossibilidade de se ter informações corretas, há apenas propagandas. Vinte anos mais tarde, em 1996, a criação da National Imagery and Mapping Agency [NIMA] se reuniu em Fairfax na Virgínia e destinou-se a processar e distribuir imagens espaciais do Pentágono e da CIA, mas após dois anos engajou-se no controle do fluxo das imagens comerciais, ponto de passagem obrigatório das imagens civis.

Numa ‘guerra aero-orbital’ deve se considerar o caráter esférico da terra e a compressão temporal dos dados, que servem para ser travado o combate. Trata-se, sobretudo, de uma guerra econômica e publicitária, na medida em que avança metamorfoseada pela promoção de maior liberdade de comunicação, neste conflito informacional a estratégia publicitária deve ser corrigida. Em seu livro “La Publicité est-elle une arme absolute?”, o presidente da agência Jump, Michel Hébert demonstrou a necessidade de se transformar toda a cadeia de comunicação ao aliar o entretenimento visual à eficiência do mercado. A partir daí, agências de pesquisa de opinião passaram a se comportar como multinacionais da informação privada no disputado mercado mundial: a agência americana Kroll, as britânicas Control Risk e DSL, a Executive out comes sul-africana.

Na era da infowar, onde a cibernética dos sistemas domina a vida das nações em uma geopolítica global, a interceptação da informação adversa ultrapassa a simples interferência em suas emissões, afinal tende a eliminar toda a telecomunicação entre o Estado inimigo e sua própria população, independente das mensagens transmitidas serem propagandas [ativa] ou informação [passiva]. A interceptação é uma forma totalitária de ingerência midiática – é uma bomba – que substitui os argumentos e a contrapropaganda dirigida às comunidades. Supremacia aérea que ilustra a diferença midiática das imagens. A ofensiva estratégica não é a invasão ou o extermínio em massa, mas o desenvolvimento permanente de um arsenal global em que a guerra predomina graças a armamentos atmosféricos e extra-atmosféricos [aviação, mísseis e satélites]. Não se pode suprimir a bomba, decide-se suprimir o Estado, acusado de ser ‘soberanista’ e ‘nacionalista’, isentando um inovador complexo militar-industrial e científico. Imerso no mercado único, a manobra global da infowar [guerra da informação] é o lançamento de uma logística de controle cibernético do conhecimento e da “transferência de dados”, em sua dimensão militar e estratégica. Baseada na interatividade global, a infowar busca a indistinção de um ato voluntário de uma reação involuntário, ou ainda de um acidente. Ataque de uma simples falha técnica –, como no caso de um satélite de telecomunicações Galaxy IV que interrompeu, em 19 de maio de 1998, as mensagens de quarenta milhões de americanos usuários do bip, no momento em que o computador de bordo do satélite desviou ligeiramente sua posição. Foi um acidente inesperado ou um teste real da infowar?

O sistema lançado pelos Estados Unidos nos Bálcãs de uma information warfare exercia, por exemplo, um poder com três princípios básicos: a presença permanente dos satélites sobre os territórios; a transmissão em tempo real das informações; a análise veloz dos dados transmitidos aos Estados-maiores. Havia acima dos Bálcãs cinquenta satélites de todo tipo e uns vinte sistemas espaciais diferentes [radares geradores de imagem do National Reconnaissance Office (NRO); geradores ópticos de imagens; satélites de escuta de sinais eletrônicos que identificam o movimento das forças em campo; constelações de Global Positionning System (GPS) que informavam a posição dos armamentos em ação]. Há quinze mil pés, em grandes altitudes, os aparelhos de reconhecimento aéreo pilotados para evitar a defesa antiaérea sérvia, em altitude menor, os drones de reconhecimento automático. De um lado, o Pentágono resolveu privar a Iugoslávia de eletricidade por meio de um bombardeio de suas cidades, mergulhando-as na escuridão, com bombas de grafite [Bomba BLU 114.B], de outro, na Guerra do Golfo soava o alerta e as luzes de Bagdá se apagavam em seguida, mas nos conflitos de Kosovo, o agressor provocou o colapso da corrente elétrica de Belgrado. Guerra que interrompe toda a comunicação. Ingerência midiática contra os meios audiovisuais do inimigo, além de ingerência energética. Acidente integral do ecossistema energético e cibernético que determina a vitalidade das sociedades pós-industriais. Capazes de paralisar a vida das sociedades, bombas cortam a energia elétrica de uma nação, vírus e bombas lógicas ou o Bug do Milênio [Y2K] que provocam ‘chernobyl informáticos’. Determinados a provocar acidentes sistêmicos e outras reações em cadeia no campo adversário, a contaminação viral e a irradiação cibernética não explodem uma estrutura, neutralizam, entretanto, a infra-estrutura do adversário, criando pane e pânico pela interrupção de toda a atividade coerente e coordenada.

O ‘circo ciber’ que se instalou na atmosfera acima dos Bálcãs fez um cerco eletromagnético que se associou aos cortes das transmissões televisivas do satélite EUTELSAT, em 26 de maio de 1999, para calar o instrumento sérvio de propaganda, acrescente-se o lançamento do quadrimotor Hercules EC 130E, repleto de antenas direcionais e abrigo de uma central de rádio e televisão em sua fuselagem. Ao chegar à área, operadores a bordo enviam, por ondas eletromagnéticas, as mensagens pré-gravadas em servo-croata, elaboradas pelo 'departamento de operações psicológicas' de Forte Bragg, os Psy-Ops [psychological operations da infowar]: com auxílio de cinco especialistas em guerra eletrônica, entre eles pelo menos um lingüista, capaz de exercer interferência. Assim, o ‘comando solo’ distribuiu seus sinais de TV em alcance médio e suas emissões radiofônicas em centenas de quilômetros.

Afora o arsenal optoeletrônico para neutralizar o inimigo, acrescente-se sempre um instrumento jurídico para legitimar as linhas de combate. O Tribunal Penal Internacional [TPI] e a Comissão Parlamentar de Inquérito [CPI] são contemporâneos em seu uso político generalizado, a partir da década de 1990, respectivamente no mundo e no Brasil, mas esses dispositivos são semelhantes por parecem montagens judiciárias encarregadas de legitimar às pressas uma guerra ilegal, mas para justificar a sua existência, geralmente, eles têm que abrir ‘pequenos processos’ sem possuir, contudo, os meios de interpelar os supostos culpados. Numa massa disforme de opiniões flutuantes, questiona-se como um tipo de agressão é julgado criminoso [como no caso do líder sérvio Slobodan Milosevic] enquanto o outro [high tech da OTAN] não merece ser levado em consideração. Talvez existam guerras justas, mas nunca há exércitos inocentes.

Notas:
[1] “Os Transportes no Atual Desenvolvimento do Brasil” é um livro coordenado pelo Gen. João Baptista Peixoto, que traz informações a respeito da produção tecnológica do setor aeroespacial no Brasil.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Teleatores & Mercenários


É conhecida a lógica capitalista que articula em um só golpe o capital e o trabalhador nu. Miríades de condutas econômicas são contrapostas ao sistema de leis. Ethos é, antes de tudo, morada, que resulta das normas da casa, economia, no grego oikos-nomos. Não é necessária uma digressão filológica sobre a expressão ethos, pois o comportamento animal é o escopo da etologia, cujo radical é o mesmo de ética. Descreve-se, pois, a organização do trabalho no sistema capitalista, quando se estão em questão o ambiente ético e o comportamento dos indivíduos, como um campo de forças que cinde o espaço político. Busca-se compreender, de acordo com Michel Foucault em seu livro intitulado “Nascimento da Biopolítica”, a invenção neoliberal do ‘capital humano’ para que se possa destacar o comportamento de ‘teleatores’ nos meios de comunicação de massa, conforme sugeriu Paul Virilio em seu livro “Bomba Informática”, e as condutas de ‘mercenários’ que tendem a se corromper, segundo Michael Hardt e Antonio Negri em seu livro “Multidão”, no complexo militar-industrial. Analítica do ethos, em sentido amplo, ou ética, em sentido estrito, de soldados desconhecidos em uma guerra informática, onde é preciso evitar a perda de intelectuais de intensivo investimento humano.

Hostil às proposições de Keynes, Lionel C. Robbins aplicou uma definição de objeto econômico, no começo da década de 1930, onde a economia tornou-se a ciência do comportamento. Deste modo, a economia é a análise da racionalidade interna, da programação estratégica da atividade dos indivíduos. Estuda-se, então, o trabalho como conduta econômica praticada, aplicada e calculada por quem trabalha. Pensar a economia como ciência do comportamento é o mesmo que especular sobre a utilização e a disposição dos recursos pelos trabalhadores. Compreender o trabalhador como um sujeito econômico ativo que comporta um capital, uma aptidão, uma competência: diz-se, uma máquina[1]. Essa concepção de “capital-competência” se refere a certa renda, uma renda-salário, como se o trabalhador aparecesse como uma espécie de empresa para si mesmo. Uma economia, então, uma sociedade feita de ‘unidades-empresa’. O neoliberalismo retornou com o homo economicus, que na versão liberal clássica mercantilista era o homem das trocas, baseando-se na teoria utilitarista a partir do problema da necessidade. No neoliberalismo, entretanto, o homo economicus é um empresário de si mesmo, sendo para ele próprio seu capital e sua fonte de renda. O capital humano é essa renda que não pode ser dissociada do indivíduo, o seu portador. Os neoliberais analisaram a constituição e o acúmulo desse capital humano, composto por elementos inatos e adquiridos. O apanágio dos recursos humanos se assentou sempre nos investimentos em educação e treinamento profissional como fator chave do desenvolvimento, assim o capital humano expressou-se nas estratégias da Carta de Puenta del Leste, em 1961, assinada no governo J. F. Kennedy. O capital humano mistura saúde, conhecimento e atitudes, comportamentos, hábitos, disciplina, isto é, um conjunto de elementos que produzidos e uma vez adquiridos ampliam a capacidade de trabalho, a produtividade. Interroga-se, então, a ética através de um ethos pautado tanto no comportamento quanto no ambiente onde o capital humano e suas unidades-empresa se confrontam. Como detalhamento do capital humano que oscila dos teleatores [no espaço das redes multimidiáticas que estabelecem o ‘mercado do visível’] aos mercenários [condottieri, engenheiro] vinculados aos sistemas de comunicação e ao complexo industrial-militar.
Pensa-se na cibernética como um sistema técnico de comunicação estratégica que traz consigo o risco sistêmico de uma reação em cadeia dos estragos. Percebe-se, dessa forma, uma espécie de ‘delação sistemática’ que provoca fenômenos de pânico, boatos e suspeitas que estão prestes a minar as bases da ‘verdade’ e, logo, da liberdade de imprensa. Dúvidas sobre a veracidade dos fatos, a manipulação descontrolada das fontes e da própria opinião pública demonstram que a revolução da informação real é igual a da desinformação virtual. Raros por natureza, os acidentes tornam-se cotidianos, não sendo uma distração das elites, com o cinema, a destruição tornou-se a verdadeira arte popular do século XX. Os teleatores da revolução cibernética das comunicações agem e interagem em tempo real num ritmo [tempo técnico] que se sobrepõe ao tempo local, propriamente histórico das sociedades e dos países. Trata-se tanto de um adestramento dos comportamentos individuais quanto de um fenômeno de contaminação ideológico sem precedentes, em suma, traduzidos na promoção da web e de serviços on line como uma vasta empresa de transmutação da opinião, que faz pouco uso da inteligência coletiva, da cultura das nações. Os teleatores ou atores promovem atos que são antes entreatos ou inter-atos, porque desaparece a diferença entre o ator e o telespectador: fusão/confusão dos papéis ou uma percepção simultânea da ficção teatral e do instante sem passado e futuro da realidade virtual. Arte de um feedback, interatividade do ator e de seus espectadores como se, tela contra tela, o computador doméstico e o monitor da TV disputassem o ‘mercado da percepção global’, cujo controle abre-se em uma era estética e ética. Até que se instaura a ‘transparência’ das aparências instantaneamente transmitidas à distância no ‘comércio do visível’, publicidade ou divulgação global semelhante à exploração militar de informação, assim como a propaganda política e seus abusos. A revolução da ‘delação generalizada’ se expressa na frase de Joseph Paul Goebbels: “aquele que sabe de tudo não tem medo de nada”. Atualmente, o mercado único exige uma concorrência global, a comparação torna-se um fenômeno também global e necessita de superexposição integral dos lugares, das pessoas, de seus comportamentos, de suas ações e reações íntimas. A publicidade comparativa denuncia o concorrente comercial, desarma a resistência dos consumidores, condena sua posição e atitude. As agências publicitárias satisfazem a curiosidade dos compradores de suas mercadorias e assassinam simbolicamente seus concorrentes. A tentação terrorista é permanente na internet, é fácil causar danos com impunidade, os piores internautas não são os militantes, mas empresários [ciberterroristas] prontos para qualquer baixeza para arruinar um concorrente, em um mercado que utiliza procedimentos de espionagem totalitária. Trata-se de empresas da aparência disposta à ótica cibernética que nos mostra o mundo inteiro, graças a transparência das aparências transmitidas imediatamente à distância. Democracia live midiatizada em uma ciber-ótica mergulhada na estética moderna européia e na ética das democracias ocidentais.
Louis-Ferdinand Céline captou a transformação do corpo moderno na estreita ligação entre o corpo de infantaria na guerra e o corpo do operário na fábrica. A guerra moderna transformou a sociedade num certo tipo de fábrica da guerra – acumulam-se corpos nos campos de batalha assim como nas fábricas. Na fase imperialista de acumulação do capital, o complexo industrial-militar designa uma confluência de interesses, entre empreendimentos industriais e o aparato militar-policial do Estado: empresa de seguros Lloyds e os projetos imperialistas britânicos; o fabricante Dassault e as políticas gaullistas; a Boeing e o Pentágono. O corpo anônimo do operário massificado corresponde ao do soldado na guerra, ilustra-se o Unknown Soldier. Se os dirigentes americanos pensam uma guerra sem corpos ou sem soldados, trata-se apenas de soldados americanos. Os corpos inimigos existem, entretanto, para morrer. A maioria dos soldados que correm risco na linha de frente não são americanos, mas uma ‘força aliada’ [grupo de soldados migrantes europeus, canadenses, australianos e até paquistaneses e afegãos] toda comandada por americanos – um exército terceirizado. Para não comprometer o êxito das missões militares, sem por em risco tropas terrestres americanas, faz-se uso cada vez maior de fornecedores militares particulares, isto é, empresas que recrutam, treinam e dão apoio operacional dentro e fora do campo de batalha. Soldados de aluguel, ou seja, mercenários. Na guerra pós-moderna como na Roma antiga, os exércitos de mercenários tendem a se tornar as principais forças de combate. Revolução nos assuntos militares e corrupção da arte da guerra. Os mercenários armados são um exército da corrupção: corrupção como destruição da ética pública. Quando o exército deixa de ser o povo em armas, o império rui. Atualmente, as forças armadas tendem a se tornar exército de mercenários liderados, como no Renascimento, por condottieri. A figura do condottieri é facilmente preenchida por um engenheiro: alguém vinculado a uma série de indústrias que desenvolvem novas armas, sistemas de comunicação e de controle. Hoje, então, ao rigor do capital humano, os mercenários devem dominar capacitações técnicas, jurídicas, culturais e políticas. Assim mercenários e aristocracia ora se aproximam ora se afastam. O que se teme é que um condottieri se volte contra a aristocracia imperial, na medida em que a conquista do poder mercenário assinala o fim da República, onde o comando mercenário e a corrupção tornam-se sinônimos. Devem-se aguardar a insurreição dos mercenários contra o Império global atual? No poder mercenário, a corrupção é apenas um dos caminhos possíveis.
Entre mercenários e teleatores, a corrupção e os acidentes, o homo penalis[2], homem penalizável que se expõe a lei e pode ser punido por ela é, estritamente, um homo economicus, onde a lei articula a penalidade e a economia. A lei é uma solução econômica de punir as pessoas eficazmente, cujo crime é somente uma infração à lei, o que quer dizer que enquanto não há lei, não há crime nem possibilidade de incriminar um ato. Se todo sujeito é um homem econômico, então o criminoso é tratado como qualquer pessoa que investiu uma ação, que espera lucrar com ela e também corre o risco de uma perda. Mobilidade do trabalhador, a migração deve ser observada como um custo e um investimento, em outras palavras, um número de despesas são feitas para obter certa melhoria de vida. O sistema penal se ocupa, pois de uma série de condutas que produzem ações, cujos atores esperam um lucro, mas que são afetados por um risco de perda econômica infligida. Os neoliberais anteciparam-se, portanto, em definir o crime como toda ação que faz um indivíduo correr o risco de ser condenado a uma pena. Antecipação, afinal, porque os neoliberais se colocaram no ponto de vista de quem vai cometer o crime: para o sujeito de uma ação, conduta ou comportamento, o crime é aquilo que ele corre o risco de ser punido. O cegamento ético dos contornos dessas batalhas produz uma ignorância da lei, onde o ‘herói-trágico’[3] se traveste num misto de culpado e inocente, como em Édipo-rei. Caso irônico, em que Albert Camus mostrava outro indício, “quando formos todos culpados, teremos assim a verdadeira democracia”. Na fronteira ética dos delitos orientados pela superexposição midiática e governados pela corrupção generalizada, espera-se a carne enfileirada dos corpos sujeitados e produzidos de teleatores, de um lado, e mercenários, de outro, mas ambos embriagados de paixão pelo poder.
Notas:
[1] A perspectiva maquínica da conjugação dos fluxos de capital e de trabalho nu foram analisadas por Gilles Deleuze e Félix Guattari em “O Anti-Édipo”.
[2] As concepções de homo penalis e de homo criminalis foram desenvolvidas em “Nascimento da Biopolítica” por Michel Foucault.
[3] Encontrada no livro “O que resta de Auschwitz”, Herói-trágico é a noção que Giorgio Agamben criou para designar os atos criminosos que são realizados sem a consciência de quem os pratica.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Mensagens Céleres e Agravantes Éticos


Dia 08 de junho, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) se sentiu coagida, porque a Petrobras criou um blog chamado Fatos e Dados, onde serão publicadas na íntegra as entrevistas que são reportadas à imprensa, antes de serem publicadas pelas empresas de informação. A imprensa se sentiu constrangida, fala-se em 'roubo', afinal as perguntas são das empresas de comunicação, mas as respostas também? Entretanto, sabe-se, como sinalizou Tatiana Farah[1], que “do ponto de vista legal, eles podem fazer isso, mas do ponto de vista ético e de relacionamento com a mídia, esse não é o caminho”. Entre os comunicadores, para uns, bom para todos é uma informação editada pela imprensa com independência e liberdade para a instituição, mídia e leitores, para outros, a discussão sobre o blog é boa, mas o problema é menor, a distribuição de verbas publicitárias da estatal deveria estar mais em voga. As vítimas dessa ‘novidade democrática’, como disse José Sergio Gabrielli [presidente da Petrobras], ‘O Globo’, ‘Folha de São Paulo’ e ‘O Estado de São Paulo’ estão preocupados, sobretudo, com o prejuízo que a Petrobras causará aos seus profissionais de ‘boa fé’[2].

Com essa tática de velocidade da Petrobras, a ‘boa’ e a ‘má fé’ cinde não apenas o espaço estritamente político, mas o midiático também. Agora é a hora dos diretores da imprensa em geral começar a se preparar ou a liberdade da informação se propaga na velocidade da luz ao sabor dos seus próprios volantes? Foi inaugurado um dispositivo irrepreensível juridicamente, mas capaz de interpelar a ética, mas a ética dos meios de comunicação principalmente – diz-se, aqui, há pouco tempo, que quem não deve não teme. Nesse lema, ouviu-se dizer que até seria bom para Petrobras ser inquirida pelos parlamentares, ao provar sua idoneidade, certo que sim, do mesmo modo será bom para a imprensa mostrar, espera-se que não existam, ‘sua má fé’, seus ‘cassados’.

São, se assim se puder dizer, duas máquinas de guerra que se enfrentam, o complexo industrial-militar e a máquina de visão, ou seja, Petrobras e Mídia em geral, ao mesmo tempo em que o Parlamento ensaia e encena seu teatro para as eleições. Há um conflito. Em uma guerra há sangue. No seu papel militar, em sua lógica singular, a ‘edição’ esquarteja a informação como se fossem corpos. A metáfora sobre a maquinaria da edição é tal como Paul Virilio em ‘Guerra Cinema’ descreveu, na medida em que se oferece, nessa guerra, a imagem desprovida de dimensões estáveis, logo se reconhece “em pedaços” aos espectadores. Aos pedaços, esquartejada e dirigida a imagem se produz até que se ilumine a verdade, produzida neutramente, reivindica-se. Se os editores precisam, com suas objetivas e repórteres, picotar um texto, a Petrobras o expõe inteiro e... antecipadamente: efeito furtivo. Se não há nenhuma irregularidade legal ou jurídica que impeça a Petrobras de produzir essa tática, restam-nos os apelos éticos da imprensa. Mas o que seria ética?

A respeito da ética no imaginário político ocidental, poderíamos recorrer aos processos de sujeição amplamente analisados por Michel Foucault tanto em “Vigiar e Punir”, acerca da produção dos corpos dóceis na modernidade, quanto em “A Hermenêutica do Sujeito” referentes a constituição de técnicas ascéticas ocidentais gregas, romanas e judaico-cristãs. Historicamente, deduz-se que nos seja familiar a concepção de governamentalidade foucaultiana, bem como, contemporaneamente, o paradigma ético e estético no livro “Caosmose” escrito por Félix Guattari. Essas referências são elencadas para afirmar que em todas elas a ética não deixa de possuir um aspecto facultativo. Sintética e explicativa definição de Gilles Deleuze em “Conversações” ao distinguir a moral e a ética. Enquanto “a moral se apresenta em um conjunto de regras coercitivas de um tipo especial, que consiste em julgar ações e intenções referindo-as a valores transcendentes (é certo, é errado...); a ética é um conjunto de regras facultativas que avaliam o que fazemos, o que dizemos, em função do modo de existência que isso implica”. Regras facultativas, portanto, na dimensão ética a batalha se estende aos apelos dos mass media. No nível da avaliação do comportamento ético, o cálculo das forças inquisitoriais se resume: [1] entrevista e pesquisa concedida pela empresa; [2] material disponível na íntegra na web; [3] antecipação da mensagem. Os efeitos desse bombardeio se sucedem nessa “explosão da informação”: [1] o reconhecimento de que o controle da informação não está sob propriedade privada da imprensa; [2] a informação como um corpo despedaçado, editado, pode ser comparado com o material integral na rede em maior velocidade; [3] a censura na informação, instrumento editorial, torna-se tão visível quanto a ética das reportagens de ‘boa’ ou ‘má fé’. Em suma, o revide da Petrobras é um mecanismo que não é ilegal, pensa-se, principalmente, no desequilíbrio das forças que atenuam o controle indiscriminado da informação pelos agenciamentos de comunicação.

É óbvio que a imprensa questionou o gesto antiético da estatal, por não garantir a ela toda sorte de privilégios ainda não legalizados e facultativos para manipular livremente as informações. Não se compreende a surpresa dos mass media em relação à direção da Petrobras. Esse impasse é válido para uma discussão ética entre ambos, certamente. Com requintes éticos num conflito nessa dimensão, entre dois complexos de alta tecnologia, petroquímico e midiático, onde a regra vale para todos, no bombardeio da informação o que se considera são os desvios de comportamento do ‘capital humano’ – é nele que se cristalizam os hábitos, as práticas e os comportamentos (o modo de existência) detonados pelos julgamentos éticos. É inegável que esse revide da Petrobras tenha sido imprevisível e, mais que isso, eficaz: primeiro, porque ninguém imaginava a possibilidade dele acontecer e, segundo, não se imaginava a proporção do seu efeito. Ressalta-se a velocidade, no modo em que os corpos se expõem às vísceras, porque em geopolítica, certamente, a política é a continuação da guerra por outros meios. Corpos dos dois lados da batalha serão expostos, talvez pela primeira vez, com os mesmos pressupostos éticos. Um novo modo de sujeição se expõe nos trópicos, talvez como tenazmente Slavoj Zizek em seu livro “Bem-vindo ao Deserto do Real” repensou a idéia de Homo Sacer de Giorgio Agamben, ao compor outra noção, a de Homo Otarius, o modo liberal dominante de subjetividade que de tanto manipular e explorar os outros, acaba sendo ele mesmo explorado.

Notas:
[1] ‘Forma de inibir o trabalho da mídia’, texto escrito por Tatiana Farah, publicado em O Globo no dia 09 de junho de 2009.
[2] Sobre a boa fé dos profissionais: “a estatal federal prejudica o trabalho jornalístico do profissional que, de boa fé, procura a empresa para checar alguns dados ou ouvir alguma contestação” (O Globo. O país. p.5, 09 de junho, 2009).