domingo, 19 de julho de 2009

Motim Chapati [Meerut, 1857]


Os brâmanes tratam com igual desprezo não apenas as comprova-ções da ciência moderna, mas também ‘o próprio testemunho de seus olhos’. O hindu se esquiva à evidência de seus olhos, assiste-se a uma forma de coerção do sujeito nativo na qual não pode existir nenhuma verdade. Não é uma questão de racionalidade ou moralidade simplesmente. Trata-se da questão da capacidade de cultura humana. A Índia é uma figura de profunda incerteza intelectual e de ambivalência governamental: se a Índia é o símbolo originário da autoridade colonial, ela é o signo de uma dispersão articulada a um saber autoritário, afirmou Homi Bhabha em “Local da Cultura”.

Da incompatibilidade do império e da nação emerge uma ambivalência anômala, que não é necessariamente uma oposição dialética: não há senhor e escravos, há apenas o senhor escravizado ou o escravo sem senhor. Não se esquiva à anomalia do governo britânico da Índia. Essa anomalia, desde o século XIX, tem o significado do governo de um povo que tem por si só uma realidade, mas isto de um governo ser governado por outro não existe e não pode existir. Prática do poder representada de modo anômalo, como o governo virtualmente despótico de uma colônia por um povo livre – mais uma vez, nem uma coisa nem outra. Entre as décadas de 1850 e 1860, no norte e no centro da Índia, houve o ‘Levante Indiano’ ou o ‘Motim’, quando os sujeitos marginalizados ou insurgentes criaram coletivamente um dispositivo constituído por uma estratégia cultural contígua a um confronto político. Em “Elementary Aspects of Peasant Insurgency” escrito por Ranajit Guha, a transmissão ‘simbólica’ desse dispositivo rebelde se deu pela repetição do rumor e pelo pânico incontrolado, como estratégia política em meio às principais causas agrárias do ‘Levante da Índia’. R. Guha contou a história dos chapatis [pães ázimos] que foram disseminados rapidamente pelos centros rurais do ‘Levante’, logo após a introdução do rifle Enfield e das ‘balas engraxadas’ nas Infantarias Nativas.

A circulação dos chapatis pode ser tratada como rumor e seu desempenho resulta em geral na disseminação contagiosa: impulso quase incontrolável de passá-lo adiante para outra pessoa. A ação dos chapatis com sua circulação e seu contágio liga-se ao pânico, ou seja, uma conspiração que constitui o domínio da revolta e da resistência. Acontece que, de aldeia em aldeia, um mensageiro levava o símbolo em forma daqueles bolos achatados feitos de água e farinha, que consistiam no ‘pão do povo’, os chamados chapatis. Esse mensageiro aparecia e dava o bolo ao chefe de uma aldeia e lhe pedia que o despachasse para a próxima. Dessa maneira o chapati viajava de lugar para lugar; sem que ninguém se recusasse, em obediência a uma necessidade mais sentida do que compreendida... A maioria das pessoas encarava isso como sinal de alerta, como se algo fosse acontecer ao povo. Outros achavam que isto era apenas uma superstição correndo o país. Outros ainda, que a circulação [dos chapatis] era uma ficção, mas afirmavam haver pó de osso neles. Havia aqueles que indicavam que os chapatis circulavam para alarmar as pessoas de que o seu alimento seria retirado. O rumor produz uma reação infecciosa, com o propósito político do pânico e da circulação do chapati de manter viva a agitação popular. O medo obsessivo e a extrema desconfiança do governo eram sintomáticos nos soldados mais indisciplinados que se agarravam com fervor às tradições diante dos novos regulamentos para o controle e a modernização do exército com o rifle Enfield.

O Governo buscou libertar o camponês do taluqdar [proprietário de terras] e anexar o reino de Oudh, entre outros principados menores, criando uma sensação de mobilidade social que afetou um exército composto por camponeses mercenários de alta casta. O 20º batalhão de Infantaria de Bengala, que iniciou a rebelião em Meerut em maio de 1857, consistia na maior parte de pequenos proprietários de terras rajput e brâmanes do sul de Oudh. O medo não se limitava, portanto, aos camponeses, pois a indeterminação dos acontecimentos revelava o pânico entre os burocratas e dentro do exército. O tenente Harriet Martineau, inspetor no Depósito de Rifles de Umballa, era responsável pelo treinamento de soldados nativos da infantaria no uso dos rifles Enfield. Apenas cinco dias antes da eclosão do Levante em Meert, o tenente escreveu ao general Belcher acerca de seu exército, aterrorizado por uma ocorrência do chapati em suas próprias fileiras. Mas suas apreensões foram ignoradas e foi negado o seu pedido de investigação dessa agitação inusitada em suas fileiras. Criou-se a possibilidade de uma guerra de nervos, cujo mito de conspiração maometana não só autorizava o chapati, numa forma perversa de batalha, como lhe atribuía uma vantagem tática: vencer por estratagema, não pelas armas. Trata-se, enfim, de uma sujeição das massas rurais a uma fonte comum de exploração e opressão que as tornam rebeldes antes mesmo que apreendem a se juntar em associações campesinas.

A Revolta de 1857 chegou a ser o episódio mais importante e mais violento conhecido na relação anglo-indiana no século XIX: a Grande Revolta de 1857, que eclodiu em Meerut em 10 de maio e levou à tomada de Delhi. O que desencadeou o Motim foi que os soldados hindus e muçulmanos do exército indiano desconfiaram que os projéteis fossem engraxados com gordura de vaca [imprópria para os hinduístas] e gordura de porco [impuras para os muçulmanos], conforme Edward Said em “Cultura e Imperialismo”. Mas as causas do Motim eram próprias do imperialismo inglês, de um exército em larga medida composto de nativos, comandado por sahibs [britânicos ‘vestidos’ de nativos], dos descomandos da Companhia das Índias Ocidentais. O Motim demarcou a história indiana e a britânica. Para os britânicos, que esmagaram o motim com rigor e perversidade, todas as suas ações foram vistas como retaliação; os revoltos assassinavam europeus, diziam eles; essas ações provavam que os indianos mereciam ser subjugados pela civilização superior da Inglaterra européia; depois de 1857, a Companhia das Índias Ocidentais foi substituída pelo caráter formal do Governo da Índia.

Para os indianos, o Motim foi uma sublevação nacionalista contra o domínio britânico, que se consolidava apesar dos abusos, da exploração e das reclamações indianas ignoradas. Edward Thompson publicou, em 1925, “The Other Side of the Medal”, pronunciamento contra o domínio inglês que apontou o Motim como grande acontecimento em que indianos e ingleses atingiram a plenitude de uma oposição mútua. Entre o ‘ardor nacionalista’ e o ‘vigor auto-justificativo’, ser indiano era sentir uma solidariedade natural com as vítimas da represália britânica, ser inglês significava sentir choque e horror diante das demonstrações de crueldade dos ‘nativos, que encarnavam o papel de selvagens que havia sido atribuído a eles. Em 1857, Harriet Martineau havia afirmado: o espírito despreparado, seja hindu ou muçulmano, desenvolvido em condições asiáticas, não seria capaz de qualquer sintonia, intelectual ou moral, com o espírito europeu cristianizado, salientou Francis Hutchins em “The Illusion of the Permanence: British Imperialism in India”. Certamente havia uma grande insatisfação com o domínio cristão num país de tantas culturas e raças, que consideravam sua subserviência aos ingleses uma posição degradante. Os islâmicos concebem a ordem e um deus específico, enquanto os hindus acreditam que tudo é uma só mistura, tudo está interligado, que Deus é um só, não é, era, não era.

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