sábado, 4 de julho de 2009

Bruto e Patria Potestas


‘Crimes parentais’ definem-se por um termo amplo que utilizamos para englobar todos os tipos de crimes que acontecem no espaço domiciliar e que se estabelecem por relações de parentescos (que vão além de crimes que se circunscrevem aos cônjuges) demarcadas, em geral, no espaço da casa. Constrói-se, então, uma ‘geografia do crime passional’ capaz de territorializar atos criminosos na escala doméstica, da casa, como por exemplo, um caso amplamente divulgado pela imprensa, o caso de Eloá: Eloá, de 15 anos, foi morta com dois tiros, um deles na cabeça, disparados pelo ex-namorado Lindemberg Alves, 22.

O crime ocorreu em outubro do ano passado, ao fim de um seqüestro de cem horas em Santo André, no ABC paulista. Trata-se de parricídios, como o complexo enredo do crime realizado pelos irmãos Daniel e Cristian Cravinhos, assassinos confessos dos pais de Suzane Von Richthofen; como o parricida, ex-seminarista Gil Rugai de 25 anos, acusado de matar o pai e a madrasta em 2004. São crimes parentais que não envolvem apenas parricídios, mas também filicídios, como o caso de Isabella Nardoni: com Isabella no colo, o pai (Alexandre Nardoni) subiu nas camas, deixando no lençol marcas dos chinelos que usava. Aproximou-se da janela, introduziu Isabella no orifício da tela e soltou-a de uma altura de 20 metros. Sem tanta repercussão na mídia quanto o crime de Isabella, o esquartejamento de duas crianças pelo pai e pela madrasta aterrorizaram o Brasil em 2008: João Alexandre Rodrigues, 40, preso ao lado da mulher, a dona-de-casa Eliane Aparecido Rodrigues, 36, sob a acusação de ter assassinado e esquartejado os irmãos Igor Giovani, 12, e João Vítor, 13, filhos de Rodrigues em outro relacionamento. A madrasta dos meninos confessou que Rodrigues os asfixiou com um saco e teria dado detalhes sobre como ambos foram esquartejados. Foice e pá foram usadas para esquartejar os corpos dos dois irmãos.

Percebe-se, então que os esquartejamentos e as torturas são práticas soberanas, ou seja, práticas de soberania que são capazes de gerir a morte, conforme destacou Michel Foucault em “Vigiar e Punir” e “A Vontade de Saber”, afinal são formas de suplícios que ostentam a morte como finalidade do poder, mesmo que estejam presentes freqüentemente nos dias atuais. De um lado, o esquartejamento é uma prática de suplício que manifesta a territorialização da morte como mecanismo privilegiado das antigas sociedades de soberania, bem como ilustra a patria potestas, poder de vida e morte do soberano que deriva da força dos pais ao destinarem seus filhos à morte. A tortura também é uma técnica de suplício, dispositivo soberano, utilizado por policiais e criminosos. Em caso de crime passional que ficou incógnito por muito tempo, a tortura foi utilizada por policiais. Os jovens, Renato Correia de Brito, 24, William César de Brito Silva, 28, e Wagner Conceição da Silva, 25, deixaram o Centro de Detenção Provisória de Guarulhos, em setembro de 2008. Eles dizem ter sofrido tortura numa base da Polícia Militar e no 1º Distrito Policial de Guarulhos, como asfixiamento com saco plástico, choque elétrico, espancamento com a mão, cadeiradas. Após serem mantidos presos por dois anos em uma cela superlotada sob a acusação de terem violentado sexualmente e assassinado uma garota de 22 anos, os três, que dizem só ter assumido o crime após serem torturados por policiais militares e civis, foram soltos por decisão da Justiça “cinco dias depois de Leandro Basílio Rodrigues, 19, chamado pelos policiais civis de ‘maníaco de Guarulhos’, ter admitido o assassinato de Vanessa Batista de Freitas, 22, ex-namorada de Renato” (Folha de S. Paulo, 2008). Torturas e esquartejamentos ilustram bem à força pela qual as relações de poder em uma sociedade de soberania se exercem.

Não é da vida que se tratam essas técnicas, mas é sobre a morte que esquartejamentos e torturas recaem. No direito romano, vita [vida] não é um conceito jurídico, ao contrário, indica apenas, como no uso latino comum, o simples fato de viver como um modo particular de vida, um “modo de vida”. O que relaciona a vida ao direito soberano é que ela aparece originariamente, no direito romano, apenas como contraparte de um poder que ameaça com a morte. Este poder é absoluto e irrompe imediatamente e somente da relação pai-filho. Por muito tempo, conforme afirmou Michel Foucault em seu livro “A Vontade de Saber”, um dos privilégios característicos do poder soberano foi o direito de vida e morte e sem dúvida, ele derivava formalmente da velha patria potestas que concedia ao pai de família romano o direito de ‘dispor’ da vida de seus filhos e de seus escravos; podia retirar-lhes a vida, já que a tinha ‘dado’. Patria potestas é um poder que se exerce na relação pai-filho, de acordo com Giorgio Agamben em seu livro “Homo Sacer”, assim, quando analisamos crimes que envolvem parricídios e filícidios, semelhantemente observamos essa prática soberana, que tem mais por direito a morte que a vida. Deste modo, , quando lemos, em uma fonte tardia, que Bruto, mandando à morte os seus filhos, ‘havia adotado em seu lugar o povo romano’, é um mesmo poder de morte que, através da imagem da adoção, se transfere agora sobre todo o povo, restituindo o seu originário, sinistro significado ao epíteto hagiográfico de ‘pai da pátria’, reservado em todos os tempos aos chefes investidos no poder soberano. Derivando dessa patria potestas, o soberano só exerce seu direito sobre a vida, exercendo seu direito de matar. Massacres se tornam vitais, como gestores da vida e da sobrevivência dos corpos que tantos regimes puderam travar tantas guerras, causando a morte de tantos homens. Há alguns pesquisadores que tratam da transição entre a modernidade disciplinar e a sociedade de controle, mas nossa preocupação é analisar a persistência de práticas sociais de soberania nos vacúolos deixados pela sociedade disciplinar, ou melhor, definir a coexistência entre essas três formas de sociedade, enquanto milhares de Brutos ressurgem infinitamente na banalidade cotidiana.

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