terça-feira, 14 de julho de 2009

Extinção, Extermínio, Genocídio [biotech I]


No final da Idade Média, a lepra foi extinta do mundo ocidental, mas isso não resultou de práticas médicas, nem da mais obscura terapêutica. Da Alta Idade Média às Cruzadas houve uma multiplicação dos ‘leprosários’ em toda a Europa, que foi capaz de banir a lepra pela segregação, isto é, as testemunhas da lepra eram salvas na e através dessa prática de exclusão. Chegou haver 19 000 leprosários em toda a Cristandade; por volta de 1266, à época em que Luís VIII estabeleceu o regulamento francês dos leprosários, mais de 2000 deles foram recenseados; a Inglaterra e a Escócia abriram, só no século XII, 220 leprosários. Na medida em que a lepra regredia sua incidência até desaparecer, os leprosários foram povoados por incuráveis e loucos.

Sabe-se que ao longo século XVII vastas ‘casas de internamento’ foram criadas para cercar toda uma população através dos muros no confinamento. Trata-se de alojar, alimentar aqueles que se apresentam de boa vontade e aqueles que são encaminhados pela autoridade real ou judiciária, ressaltou Michel Foucault em “História da Loucura”. A lepra suscitou modelos de exclusão semelhantes aos que culminaram na forma geral do ‘grande Fechamento’, grande internamento, no qual o leproso era visto por uma prática de rejeito-exílio-cerca: deixa-se que o indivíduo se perca lá dentro indiferenciadamente.

A peste suscitou, entretanto outro modelo que segue as medidas tomadas no fim do século XVII, quando se declarava a peste numa cidade: a] fechamento da cidade, proibição de sair sob pena de morte e um policiamento especial estrito; b] divisão da cidade em quarteirões onde se estabelece o poder de um intendente; c] cada rua é colocada sob a autoridade de um síndico que a vigia; d] no dia designado, ordena-se que todos se fechem em suas casas; e] o síndico fecha as casas, por fora, e leva as chaves ao intendente do quarteirão, que as conserva até o fim da quarentena; f] só os intendentes, os síndicos, os vigilantes das casas e os corvos entre um cadáver e outro põem circular nas ruas da cidade; g] o síndico deve passar diariamente pelas ruas e diante das casas chamar cada morador por seu nome, informar-se do estado de saúde de um por um: se alguém não se apresentar, ele descobrirá se mortos ou doentes estão escondidos, descrito por Michel Foucault em “Vigiar e Punir”. Espaço recortado, imóvel, fixado, portanto onde cada um se prende a seu lugar, caso se mexa, corre-se perigo de vida, por contágio ou punição. A inspeção funciona constantemente: postos de vigilância às portas e sentinelas no fim rua. Essa vigilância se apóia num sistema de registro permanente: relatórios transitam dos síndicos aos intendentes, dos intendentes ao prefeito. Espaço fechado onde cada indivíduo é localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os mortos. Enfim, trata-se de definir como o ‘banimento nos leprosário’ e a ‘perseguição sistemática ao pestilento’ não deixaram de compor as tecnologias de poder preliminares para a constituição do judeu como raça-adversa e perigo-biológico, culminando e entrecruzando-se nos campos nazistas no século XX.

Os campos de concentração surgiram pela primeira vez na Guerra dos Boêres, no começo do século XX, mas continuaram a ser usados na África do Sul e na Índia para os ‘elementos indesejáveis’, paralelamente a emergência do racismo do período do ‘genocídio colonial’ que se tratava de matar pessoas, populações, civilizações. Adolf Hitler proclamou repetidas vezes que os judeus seriam exterminados como insetos, isto é, com gás venenoso. Trata-se de campos que se correspondem aos campos do começo do regime totalitário nazista: usados para suspeitos cujas ofensas não se podiam provar nem ser condenados pelo processo legal comum. Por isso, talvez, as massas humanas detidas nesses campos serem tratadas como se já não existissem mais, como se não interessasse mais a ninguém, enfim como se já tivesse morta. Daí resultou a designação dos campos nazistas, enunciada por Hannah Arendt em seu livro “Origens do Totalitarismo”, como ‘mundo dos mortos-vivos’. Os campos nazistas foram, de um lado, campos de extermínio, que herdaram do ‘modelo da lepra’ a prática de extermínio sistemático dos internos pela fome ou pelo abandono: morre-se em decorrência de tortura ou fome, mata-se quando o campo estiver superpovoado e se houver a necessidade de liquidar com o material humano excedente. Campo de concentração, por outro lado, como herdeiro do ‘modelo da peste’ num aperfeiçoamento sob o qual toda a vida é organizada e o material humano é impiedosamente explorado, direcionado para fins de trabalho, trata-se de experiências médicas de todo tipo nesses laboratórios.

O Estado nazista tornou absolutamente co-extensivo o campo de uma vida que ele organiza [protege, cultiva] biologicamente e o direito de matar tanto os outros quanto os seus próprios. Os Estados racistas, como o nazismo, são os mais assassinos, afirmou Michel Foucault no seu livro “Em Defesa da Sociedade”. Não é possível travar uma guerra em que só os adversários sejam mortos, por isso os próprios cidadãos são expostos à morte. Nesta guerra o adversário político deve ser destruído como ‘raça-adversa’, como uma espécie de ‘perigo biológico’. Essa guerra também buscou regenerar a ‘própria raça’, afinal quanto mais números forem os seus mortos, mais pura será a raça.

O racismo permitiu uma relação biológica e não só militar, entre a vida do Führer e a morte do outro, pois quanto mais os judeus [raça para ele inferior] desapareciam e quanto mais os alemães anormais eram eliminados, menos degenerados haveria em relação à espécie. Assim o ‘indivíduo-espécie’ viverá forte, vigoroso, saudável para se proliferar. Pregaram os nazistas, que a morte do judeu [da raça ruim] e a do anormal [da raça inferior] era o que deixaria a vida em geral mais sadia e mais pura. O racismo moderno só esteve ligado ao funcionamento de um Estado porque ele foi obrigado a utilizar a raça [eliminação e purificação] para exercer seu poder. Portanto, se a criminalidade, a loucura e as anomalias diversas foram pensadas com base no racismo, isto só se tornou possível porque historicamente eles sempre foram condenados à morte e ao isolamento.

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