sábado, 4 de julho de 2009

Estado Paramilitar e Homicida


De que maneira uma comunidade inteira é capaz de sofrer a pressão dos poderes de um soberano, que possui os direitos de imperar sobre a morte? Descrevem-se homicídios paramilitares no espaço da comunidade, mas analisam-se nessas territorialidades as relações de poder diretamente ligadas às práticas de soberania, em sua gestão da morte e em sua coexistência com os sistemas disciplinares. Os ‘crimes milicianos’ ocorrem para a organização não de espaços familiares, mas do território de comunidades inteiras. A comunidade incorpora, além de um grupo de casas, inúmeras instituições sociais e culturais inter-relacionadas [educacionais, religiosas, recreativas] entrelaçadas com o Estado local, inclui também locais de trabalho [lares, fábricas, escritórios e lojas]. Na medida em que se definem e assumem uma forma fixa, essas instituições ocupam lugares distintos na comunidade. Essa é, portanto, a escala espacial menos especificamente definida, segundo Neil Smith em artigo no livro “O Espaço da Diferença”. As lutas que se espacializam e o processo de identificação na escala comunitária possuem aspectos positivos, pois a espacialização das lutas nessa escala é fundamental para a identidade social da comunidade. Entretanto, as lutas, as disputas e os conflitos territoriais que envolvem a guerra das milícias nem sempre estão em busca de um processo de identificação, geralmente são massacres, chacinas, torturas que definem como que grupos definidos estão dominando os seus territórios.

Pelo domínio do território disputam a polícia, as milícias e os traficantes de drogas. A expansão dos territórios milicianos chega há um pouco mais de 20% do total das comunidades do Rio de Janeiro, causando muitas mortes e terror: “dominando territórios à força, os grupos paramilitares têm ameaçado, torturado e matado centenas de pessoas na cidade do Rio” [O GLOBO, janeiro de 2009]. Três características podem ser enumeradas para o controle do território de algumas comunidades do Rio de Janeiro, “expansão territorial” [o aumento das milícias nas comunidades do Rio de Janeiro], “ocupação territorial” [oferecimento de serviços de segurança, ‘gatonet’, transporte alternativo] e “domínio territorial” [propriedade de um centro social na comunidade]. Entende-se por ‘crimes milicianos’ as práticas criminosas que levam em consideração a organização de grupos paramilitares, como por exemplo, a ‘Liga da Justiça’ na Zona Oeste do Rio de Janeiro. As milícias compõem-se geralmente por líderes políticos e ex-componentes dos bombeiros, da polícia civil e militar. A participação de políticos é comum entre os milicianos, destaca-se, deste modo, a denúncia de formação de quadrilha e resistência qualificada contra o deputado estadual Natalino José Guimarães e outros cinco acusados de pertencerem à milícia Liga da Justiça, da Zona Oeste. Em uma operação que mobilizou centenas de policiais, o deputado Natalino foi preso em flagrante em sua própria casa, no dia 21 de julho de 2008.

Além da relação estreita com políticos, as milícias são criminosas porque cobram ilegalmente taxas de segurança nas comunidades e pedágios para o transporte alternativo, além de explorar serviços irregulares, como TV a cabo clandestina e venda de botijões de gás, em geral, ao impor a força sua vontade sobre a população, o bando também está envolvido em torturas, agressões e homicídios na região. Desta forma, apenas em agosto de 2008 que a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei que altera o Código Penal, criando uma tipificação para o crime de milícia e prevendo pena de reclusão de quatro a oito anos. A proposta que consta no projeto de lei contra o crime de milícia define como delito ‘constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com finalidade de praticar crimes’. Percebe-se mesmo em textos jornalísticos que essa guerra se manifesta num espaço onde se pressupõe a ausência de Estado: ‘o que está acontecendo é a politização do crime. Onde o Estado não está, alguém o toma para si’. Se fosse possível descrever uma guerra onde crimes acontecem é porque os aparelhos e instituições do Estado falham, interesses de grupos específicos substituem as leis e o contrato social é estabelecido sob novas normas. De modo mais específico, o monopólio da força e o ordenamento das práticas sociais e econômicas nesses territórios são papéis essencialmente do Estado, mas ficaram nas mãos de grupos criminosos, afinal, tráfico e milícia nasceram, cresceram e se mantêm nas favelas do Rio sobre a mesma base: a ausência do Estado nessas áreas.

A ausência de Estado é um dos principais motivos para que hoje pelo menos 60% das favelas cariocas sejam dominadas por grupos armados. Certamente, em relação aos crimes milicianos a concepção de uma guerra é bem mais evidente que entre os crimes que acontecem no espaço familiar, observando textos como esses, por exemplo, “a guerra que envolve disputa territorial por milícias teve ontem mais um dia sangrento” [O Globo, fevereiro de 2009]. Enfim, as atrocidades, com efeito, refletidas por essas práticas criminosas, como torturas, homicídios e chacinas consolidam à força o perigo da morte, que acaba por fundamentar as relações de poder nesses territórios do crime. Sob o furor de uma chacina e do terror na comunidade inteira, “sete pessoas foram mortas na favela do Barbante, na Zona Oeste do Rio. [...] a própria milícia forjou um ataque do tráfico, matando inocentes aleatoriamente” [F. de São Paulo, 2008].

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