quarta-feira, 26 de agosto de 2009

O Império Incaico e o Esconjuro Guerreiro


Povos sul-americanos em templos gigantes e tribos emaranhadas numa carcaça vegetal gritante: de um lado, povos de olho no Sol, de outro lado, tribos com gosto de sangue. Trata-se de arrebatar o curioso hábito primitivo dos povos e tribos sul-americanos de se submeterem aos Impérios e, ao mesmo tempo, por sua igual avidez em destruí-los. Escudo rochoso, planaltos e planícies torneadas pelo oceano Pacífico, a oeste, e pelo oceano Atlântico, a leste, caravelas inteiras não o viram nem o reviram. Ao norte do subcontinente, em suas mais altas montanhas, não se cansou de gerar impérios sucessivos, sujeitando os próprios corpos que desejavam involuntariamente a própria sujeição. De nordeste a noroeste, passando por sul a sudeste, em uma vasta dimensão tropical, um círculo se irradiava e expandia redes de sociedades tribais, com laços sociais hostis entre si e relações tecidas pela centrifugação de guerras permanentes, contra o poder unificado imperial. A maculosa imagem dos clássicos estados-imperiais sul-americanos, despóticos, e seu anverso não menos histórico, o socius primitivo e selvagem, ou a máquina de guerra contra o Estado.

A América do Sul estava inteiramente ocupada pelos homens no momento do seu ‘descobrimento’, no final do século XV, com raríssimas exceções, como no deserto de Atacama, no extremo norte do Chile. A extensão territorial e a variação climática fundam uma sucessão de ambientes ecológicos e de paisagens no sul da América que partem da floresta equatorial úmida do norte [bacia amazônica] às savanas da Patagônia, até ao clima inóspito da Terra do Fogo. A essas diferenças naturais acrescentam-se culturas ameríndias muito contrastadas: agricultores sedentários andinos, agricultores itinerantes [com queimada de floresta]; caçadores-coletores nômades. Na América do Sul, as culturas de caçadores são minoritárias, sua área de atuação corresponde onde a agricultura foi impossível, por causa de elementos naturais e climáticos repulsivos, em geral, como na Terra do Fogo e nos pampas argentinos. Por isso a ausência de agricultura não persistiu entre eles como um modo de vida, estável ao longo do tempo, mas proveio de perdas sistêmicas: os Guayaki no Paraguai e os Sirionos da Bolívia praticaram e abandonaram a agricultura com queimada, e voltaram a ser caçadores nômades, inúmeras vezes, devido a diversas circunstâncias naturais e históricas.

Na América pré-colombiana, no tocante a ocupação real e simbólica do espaço, os índios florestais comportam-se em seus territórios, enquanto o dos Andes foram povos da terra, ou melhor, camponeses. A história dos Andes parece se confundir com uma sucessão de aparecimentos e desaparecimentos de impérios, fortemente teocráticos, o último deles, e o mais conhecido, é dos Incas, cuja expansão territorial irradiou-se do atual Peru e se estendeu por Equador, Colômbia, Bolívia, Argentina. O imperialismo político dos Incas era ao mesmo tempo cultural e religioso, cujo astro solar [Inti] impunha-se como figura maior do seu panteão. O Sol tornou-se uma divindade pan-peruana instituído por um sistema político atravessado por despotismos arcaicos, que identificava o seu senhor ao império do Sol – os imperadores eram considerados, por isso, filhos do sol. O período incaico estendeu-se do século XIII até a chegada dos espanhóis.

Desejo de submissão, próprio das sociedades com Estado, tal como no Império Inca, mas por outro lado, a ‘recusa de obediência’ caracteriza os selvagens, desobediência como efeito do funcionamento intrínseco de suas máquinas sociais tribais. A tribo busca separar o poder e a chefia, porque ela não quer que o chefe se torne o detentor de poder. Para os florestanos, trata-se de recusar a relação de poder para impedir que o desejo de submissão se realize –, ao ponto de abandonar e exclui um chefe que quer bancar de chefe, caso ele insista no poder, eles chegam a matá-lo, esconjuro total. “A Sociedade contra o Estado” é um livro em Pierre Clastres dedicou a esclarecer esses mecanismos de conjuração do Estado comum às tribos sul-americanas. O que resta ainda desse desejo por submissão pré-colombiana nos dias de hoje? Como compreender a insanidade do terror do narcotráfico senão através destes vetores políticos de submissão incaica e de rebelião selvagem? Qual o lugar da Colômbia, da Bolívia e de Venezuela nisto? Qual o lugar em que se posiciona inteiramente o Brasil? Percebe-se, pois, de um lado, o Império Inca, que separa os homens entre detentores e submetidos ao poder, de outro, as tribos florestais, que são igualitárias e se expressam em relações entre iguais – qual outro nome de justiça?

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