sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Guerra Aero-orbital, Biotech e Imaterial


A crise atual não foi tão complexa como a que vivemos no período da economia neoliberal, com seu ápice na década de 1990, quando se instituiu tentativas de edificar os alicerces de uma sociedade ‘pós-industrial’. Na América Latina, mais especificamente, no México, Brasil, Chile e Argentina, onde o discurso neoliberal foi sustentado pelas práticas de reajustes financeiros, patrocinados pelas instituições de Bretton Woods [FMI, OMC, Banco Mundial], cujas reformas foram decisivas no controle dos custos da mão-de-obra; nos baixos níveis salariais; repercutindo sobre a produção e contribuindo para uma série de falência de fábricas. No começo da década de 1980, grandes somas da dívida das grandes corporações e bancos comerciais dos países desenvolvidos foram anuladas e transformadas em dívida pública, ou seja, o ônus dessas corporações foi transferido para o Estado, por meio da aquisição de empresas falidas, de acordo com Michel Chossudovsky em seu livro “A Globalização da Pobreza”, bem como se privatizavam, de praxe, aquelas empresas estatais dos setores mais estratégicos.

O endividamento e a pilhagem caracterizam, pois as sociedades pós-industriais, ao mesmo tempo em que compõem os fluxos suspeitos de capital no espaço financeiro local e global, traçando a sua economia de mercado. Trata-se, sobretudo da pertinência da limitação do poder público, eis o nexo da liberdade de mercado, onde se questiona o valor da utilidade do governo e de todas as suas ações, em uma sociedade em que a troca é que determina o verdadeiro valor das coisas.

Nesse mercado, vê-se a que preço os neoliberais reintroduzem o trabalho no campo da análise econômica. Theodor W. Schultz abriu o campo das pesquisas sobre o capital humano em seu artigo “The Emerging Economic Scene and its Relation to High School Education”; na mesma esteira, Gary Becker desenvolveu o seu artigo “Investment in Human Capital: a Theoretical Analysis”, no Journal of Political Economy; Jacob Mincer publicou “Schooling, Experience and Earnings”. O ponto de partida dessas pesquisas sobre o capital humano encontra-se mais nas proposições desenvolvidas por Karl Marx sobre o trabalho, do que no ideário liberal clássico ricardiano: a propósito da venda que o operário faz da sua força de trabalho, quando, para Marx, cria-se um valor, do qual uma parte é-lhe extorquida. Trata-se de um estudo sobre o trabalho como conduta econômica, mas uma conduta praticada e calculada ‘por quem trabalha’, pelo próprio trabalhador, assim as diferenças qualitativas de trabalho passam a possuir um efeito de tipo econômico.

Do ponto de vista do trabalhador, o trabalho comporta um capital, isto é, aptidões, competências, uma verdadeira máquina, mas também é uma renda, um fluxo de salários. Nota-se uma concepção do capital-competência que recebe uma renda-salário, de tal modo que o trabalhador aparece como uma espécie de ‘empresa para si mesmo’, assinalada por Michel Foucault em seu livro “Nascimento da Biopolítica”. A decifração do neoliberalismo está na programação de uma economia feita de ‘unidades-empresas’. Se no liberalismo clássico o Homo Oeconomicus é o homem das trocas, no neoliberalismo, ele é um empresário de si mesmo. Neste rumo, os elementos inatos do capital humano se dirigem aos bons equipamentos genéticos, em termos de constituição, de crescimento, de acumulação, onde se coloca o problema político da utilização da genética; os elementos adquiridos do capital humano se instalam na formação profissional, nos investimentos educacionais e numa análise ambiental da vida da criança, bem como na transmissão do capital humano, traduzida por pessoas que possuem alta renda, logo são pessoas que detêm um capital humano elevado, dessa maneira o seu problema é transmiti-lo aos filhos.

Concebe-se essa análise sobre o capital humano, em sua forma co-extensiva do ‘empresário de si mesmo’, porque acaba correspondendo ao ‘trabalho imaterial’, que retalha a ‘carne’ e molda os corpos na sociedade pós-industrial. O trabalho é imaterial porque produz um bem também imaterial, como serviço, produto cultural, conhecimento ou comunicação; Maurizio Lazzarato definiu e analisou com preciosidade o trabalho imaterial em um artigo intitulado “Immaterial Labor”, Michel Hardt e Antonio Negri articularam o trabalho imaterial com a biopolítica e as sociedades de controle no seu livro “Império”. O uso cada vez mais acentuado dos computadores e o seu funcionamento são um lado reconhecido do trabalho imaterial, o que redefine as práticas e as relações de produção. As máquinas interativas e cibernéticas tornaram-se próteses integradas em nossos corpos e mentes, servindo-nos muitas vezes como lentes de redefinição, mas se ajustaram a produção sob encomenda, just in time, ao criar uma ‘raridade artificial’ dos produtos, ao contrário da produção serial industrial, ou seja, raridade que propulsiona certo alarmismo, em outras palavras, um ‘malthusianismo renovado dos neoliberais’, apontado por Antonio Negri e Giuseppe Cocco em seu livro “Glob(AL)”, a respeito do paradigma pós-industrial inalcançado por países periféricos, em especial, latino-americanos.

Com o auxílio de máquinas cibernéticas, o capital humano [o empresário de si mesmo] ganhou velocidade, instantaneidade, e tornou-se o vetor que pulsa e dá vitalidade às sociedades pós-industriais. Mas nessas sociedades informacionais, o homem acaba por definhar entre as senhas e as trocas flutuantes de capital, por fim ele padece endividado, conforme Gilles Deleuze em seu “Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle”. É a miséria que o capitalismo neoliberal lhe destinou, a despeito do abandono do sedentarismo fabril, que revela, em geral, a crise das instituições modernas que moldavam ou fabricavam as subjetividades nas escolas, prisões, hospitais etc. O ‘homem novo’ pós-industrial sonha em ser um ‘nômade pós-moderno’, um yuppie em turismo ou em viagens a negócio, mas em seu trabalho cada vez mais flexível, torna-se mais sedentário que nunca: com acesso delivery; entregas rápidas; consultas médicas em casa; educação à distância; prisão domiciliar; etc. Enfim, trabalha-se em casa, mais até do que se trabalharia na fábrica, sob rígido controle – à espera de mensagens via fax, em e-mails e nos celulares. Enquanto a informação navega à deriva entre pixels nos monitores, o ‘confinamento domiciliar’ é ao mesmo tempo o prejuízo e a promessa do trabalho imaterial. Percebe-se, portanto um confinamento generalizado, que redesenhou a geoeconomia planetária – a natureza do exército que recruta soldados e operários sempre se confundiu, mas esse foi um tempo em que se inauguravam as primeiras estratégias da guerra biotecnológica e aero-orbital.

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