segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Lex Mercatoria & Guerra da Água


A disputa pela apropriação e controle da água vem se acentuando desde a segunda metade da década de 1990. A água não se apresenta mais como um problema localizado, manipulado por oligarquias latifundiárias regionais ou por partidos políticos. Com o ‘discurso da escassez’ e a invocação do ‘uso racional dos recursos’, por meio de gestão técnica, percebem-se verdadeiros indícios de os gestores com formação técnico-científica são novos atores protagonistas. O ‘discurso da escassez’ enuncia que embora o planeta tenha três de suas quatro partes de água, 97% dessa área está coberta por oceanos e mares, isto é, por água salgada, não disponível para o consumo. Discurso que diz que dos 3% restantes, cerca de 2/3 estão em estado sólido nas geleiras polares, logo, indisponíveis para consumo, portanto, menos de 1% da água total do planeta seria potável. Avalia-se que 119.000 km3 de chuvas caem sobre os continentes e 72.000 km3 se evaporam, assim 47.000 km3 escoam anualmente das terras para o mar, das quais mais da metade ocorrem na Ásia e na América do Sul, e uma grande porção em um só rio, o Amazonas, que leva mais de 6.000 km3 de água/ano aos oceanos.

A água é fluxo, movimento, por isso, por ela e com ela flui a vida e, assim o ser vivo não se relaciona com ela, ele é água. Por fim, os cerca de 8 milhões de quilômetros quadrados relativamente contínuos de floresta ombrófila, em geral, fechada, no Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guianas, Peru, Suriname e Venezuela, com suas 460 toneladas de biomassa por hectare em média é, em 70%, água e, assim, se constitui num verdadeiro ‘oceano verde’ de cuja evapotranspiração depende o clima, a vida e os povos de extensas áreas da América Central, Caribe e do Sul, do mundo inteiro, segundo Carlos Walter Porto-Gonçalves em seu livro “A Globalização da Natureza e a Natureza da Globalização”. A Amazônia, como uma área de florestas tropicais, cumpre um papel importantíssimo para o equilíbrio climático do globo, pela umidade que detém contribui para que as amplitudes térmicas [diferença entre as temperaturas máximas e mínimas, diárias e anuais] não aumentem ainda mais. Mas a água não circula apenas pelos rios, pelo ar, pelos mares e correntes marinhas, mas sob a forma [social] de mercadorias – tecidos, automóveis, matérias-primas agrícolas e minerais – enfim, sob a forma de mercadoria tangível. Se, por exemplo, para a produção de qualquer grão, seja de milho ou de soja, se demanda, com as atuais técnicas agrícolas, 1.000 litros de água, para um quilo de frango consome-se 2.000 litros de água. Lex mercatoria, ou seja, racionalidade econômica mercantil em que se basta multiplicar por mil as milhões de toneladas de grãos [milho, girassol, soja] para se saber a quantidade de água que está sendo exportada para onde se dirige esse fluxo de matérias-mercadorias.

As indústrias e plantações altamente consumidoras de água, ou que nela lançam muitos rejeitos, como as indústrias de papel e celulose ou de bauxita-alumínio, desde os anos de 1970, que transferem para os ‘países ricos’ – energia, minerais, solos, sol e água – exportando o proveito e deixando no país os rejeitos. A separação do minério de cobre numa jazida implica, por exemplo, abandonar cerca de 99,5% da matéria revolvida como rejeito, afinal trabalha-se com minerais ‘raros’, cuja proporção do material usado é bem menor que a dos rejeitos. Separar, portanto os minerais raros exige água e energia em proporções enormes, logo, a água é um meio amplamente usado e, diferentemente de qualquer commoditty, é insubstituível.

Se através da vida e da história transcorre que, hoje, uma quantidade maior de água doce se apresenta em estado líquido em virtude do efeito estufa e, com efeito, do aumento do aquecimento global, entretanto, apesar desse incremento da água doce disponível, percebe-se um aumento da escassez da água em certas regiões com a ampliação de áreas submetidas a processos de desertificação. Identifica-se que o crescimento exponencial de populações com o nível de vida europeu e norte-americano que está aumentando a pressão sobre esse e outros recursos naturais de modo insustentável. Erige-se um ‘mundo da água privatizada’ como um novo modelo de regulação em escala global, dominado amplamente por grandes corporações. Destacam-se as muitas propostas de privatização da água, em geral, pautadas numa ampla desregulamentação dos mercados e supressão dos monopólios públicos, sob a pressão de técnicos do FMI e do Banco Mundial: [1] privatização em sentido estrito, com a venda total dos ativos e transferência para o setor privado; [2] transformação de um organismo público em empresa pública autônoma, como a Agência Nacional da Água [ANA], no Brasil; [3] a PPP – Parceria Público-Privada – modelo preferido pelo Banco Mundial. Essa liberalização e mercantilização da água ensejam uma nova dinâmica à ‘conquista da água’.

As resistências à mercantilização e à privatização da água vêm se tornando cada vez mais frequente em todo o mundo, em vários casos os processos foram interrompidos: Cochabamba e La Paz [Bolívia]; Montreal, Vancouver e Moncton [Canadá]; em Nova Orleans, na Costa Rica, na África do Sul, em várias regiões da Índia, da Bélgica e em alguns municípios franceses, onde os serviços públicos de água administrados pelo Estado ou por meio de autogestão voltaram a se desenvolver. As denúncias em relação à privatização de água referem-se às consequências socioambientais decorrentes da integração de economias locais a um mercado que se quer nacional e mundialmente unificado, orientado na denúncia da produção para exportação e da exploração dos recursos naturais.

Sobre o argumento de que a água será a razão de guerras futuras - imersos numa guerra mundial envolvendo por todos os lados a água, ou seja, uma guerra pelo controle e gestão da água que vem sendo disputado nas reuniões da Organização Mundial do Comércio, discutido no Fórum Mundial de Davos, nas reuniões do Banco Mundial e do FMI, onde se decide um novo ‘código das águas’, ao torná-la mercadoria e, para isso, é preciso privar os homens e mulheres de acesso a ela. Sem privatização não há mercantilização? Pelo menos no sentido tradicional capitalista. Como essa guerra é um caso que não se ganha com bombardeios, mas com terror, pânico, diretamente nos territórios onde a água se faz presente, na medida em que ela atravessa toda a sociedade e seus lugares. Daí o porquê de todo lugar em que houve tentativa de se apropriar da água houve e haverá resistência.

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