quarta-feira, 26 de agosto de 2009

El Chapare, Campesino Cocaleiro



Os primeiros europeus que chegaram ao Novo Mundo operaram uma divisão abstrata que agrupava diferenças étnicas muito específicas: de um lado, as sociedades dos Andes [submetidos ao poder imaterial da eficiente máquina de Estado Inca], de outro, as tribos que povoavam o resto do continente [índios das florestas, savanas e pampas – ‘gente sem fé, sem lei, sem rei’, segundo cronistas do século XVI]. Acontece que o ponto de vista europeu correspondia à opinião professada pelos Incas, de acordo com Pierre Clastres em seu livro “Arqueologia da Violência”, para eles, os selvagens eram desprezíveis e só seriam reconhecidos bons selvagens caso fossem reduzidos a pagar impostos ao rei, ao déspota. Esta é exatamente a linha que separa os povos indígenas da América do Sul: os andinos e os outros; os civilizados e os selvagens, as altas culturas e as civilizações florestais. Em seu “Discurso sobre a Servidão Voluntária”, La Boétie descobriu que a sociedade na qual o povo quer servir ao tirano é histórica, que ela não é eterna nem existiu sempre, algo aconteceu para que os homens caíssem da liberdade para a servidão. O nascimento do Estado se realiza quando há a divisão da sociedade entre os que mandam e aqueles que obedecem. Assim a sociedade decai em submissão voluntária de todos a um só. Data daí a operação que distingue as ‘sociedades de liberdade’, conforme a natureza do homem, e as ‘sociedades sem liberdade’, onde um comanda os outros. Dessa forma os homens obedecem não por medo da morte ou por efeito do terror, mas voluntariamente, porque sentem vontade de obedecer, ou seja, tudo por servir a um tirano.

Na América do Sul, ao longo desses séculos que sucederam ao fim do Império Inca, tribos das florestas se singularizaram, em geral, sob um processo constante de assimilação e transculturação, sem deixar de lado seus ritos, mitos e línguas nativas. Os problemas políticos que assolam a América do Sul, nos primeiros anos do século XXI, não deixam de se posicionar nos mesmos termos de ‘servidão voluntária’ e ‘recusa de obediência’, que se redimensionavam no passado, através do Império do Sol e das tribos florestanas, o que está ainda invariante na postura subserviente colombiana e na conjuração do imperialismo norte-americano por parte de bolivianos. Trata-se, numa genealogia das práticas de poder, do conflito entre sociedades com Estado e sociedades contra o Estado, de maneira tal que seja possível compreender uma nova mutação dessas práticas de poder na Amazônia Andina, em cujo governo de Álvaro Uribe na Colômbia destaca-se uma tendência à submissão aos imperialistas, aos interesses militares e econômicos norte-americanos? Em contrapartida, de que modo o governo rebelado de Evo Morales ecoa um discurso de desobediência a esse mesmo imperialismo, que se propôs erradicar o plantio de coca sul-americano? Mais do que entre a oposição de Venezuela e Colômbia, que em termos de ‘máquinas de sujeição’, nesta análise, garantem a permanência de máquinas despóticas semelhantes em seu funcionamento, embora embaladas pelo combustível norte-americanizado de uma e pelo motor anti-USA da outra. Desde que os EUA instalaram o terror no narcotráfico sul-americano, trata-se de opor Bolívia e Colômbia, em termos de ‘recusa da obediência’ e de ‘servidão voluntária’. A ‘servidão voluntária’ do governo Uribe é histórica, desde que os colombianos viveram um flagelo nacional com a violência dos chefes do tráfico de cocaína, nas décadas de 80 e 90.

Antes que a Colômbia se jogasse numa autodestruição, voluntariamente assinaram um programa com os EUA, o ‘Plano Colômbia’, onde os americanos financiariam a militarização colombiana contra o narcotráfico: dinheiro, armas, treinamento e Inteligência, para que os seus policiais e militares combatessem os plantadores de coca e os guerrilheiros que lhes dão proteção. Acordo servil, que ostenta a incontestável repressão ao narcotráfico por colombianos, mas que, em matéria recente, faz dos bolivianos um ambiente propício para a recusa à obediência, já que os plantios significativos de coca não estão cultivados na Venezuela, ou seja, as ‘fontes’ de drogas perseguidas pelos EUA estavam no Peru, de Sendero Luminoso, e na Colômbia até a era-Uribe. Então, resta voltar a atenção para Chapare na Bolívia. Recusa explícita do governo de Evo Morales e do ministro Felipe Cárceres, ex-cocaleiros, que não obedecem ou reconhecem às intervenções da ONU ou da UNODC, quando apontam que 66% da produção de coca boliviana é desviada para o narcotráfico. Não há saída para os bolivianos. O discurso da ‘recusa a obediência’ é reflexa. Como aderir a essas afirmações? Ou não recusam, e os bolivianos vão assumir o novo fardo do narcoterrorismo sul-americano sozinhos?

Essas instituições transnacionais, em consonância com os norte-americanos, afirmam que houve um crescimento enorme da coca na economia boliviana de 2008 em relação a 1998, de 0,37% para 3%. Nessa paisagem de densa atmosfera, acusam Hugo Chávez por fazer uma ‘guerra imaginária’, que realmente é irreal de fato. Enquanto a real guerra andina está nos atos de coação à Bolívia e, com efeito, a sua insubordinação – cuja militarização colombiana endivida-se e se confunde com as franjas da própria máquina militar norte-americana que criou bases físicas no Andes para combater o narcotráfico. Em “Mil Platôs”, Gilles Deleuze e Félix Guattari apontaram o complexo-industrial como uma metamorfose da máquina de guerra, no entanto os neoprimitivismos seguem outra direção dessas metamorfoses. De que nos serve associar a máquina de guerra aos bandos que envolvem o narcotráfico andino? De que maneira a cartografia das máquinas de guerras sul-americanas, em suas duas direções [bandos e complexos tecnológicos], será capaz de antecipar táticas para conjurar os mecanismos estratégicos que definem o narcoterrorismo como objeto de sujeição bélica norte-americana?

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