quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Máquina de Guerra do Sul [Chaco Petroleum]


A paranóica sede por petróleo de povos civilizados e insanos não provocou somente golpes de Estado na América Latina, desencadeou a guerra do Chaco [1932-35] entre os dois povos mais pobres da América do Sul. Reni Zavalte designou por ‘Guerra dos Soldados Nus’, a matança recíproca entre Bolívia e Paraguai, como assinalou Eduardo Galeano em seu livro “As Veias Abertas da América Latina”. O senador de Lousiana, Huey Long, em maio de 1934, denunciava a Standard Oil de New Jersey por provocar o conflito, além de financiar o Exército da Bolívia para que se apoderasse do Chaco paraguaio: espaço necessário para estender um oleoduto boliviano. Os paraguaios, em contrapartida, obtinham o apoio da Shell. Disputas de duas empresas sócias e inimigas em um mesmo complexo industrial, mesmo cartel. Acrescente-se os poços de petróleo e as jazidas de gás natural explorados pela Gulf Oil Co., próximos aos territórios mais longínquos dessa batalha. Duas empresas rivalizaram a exploração dos recursos naturais no subsolo do Terceiro Mundo e incitaram à guerra povos, primitivos, selvagens: de fato, não é um argumento novo, mas como essa situação ganhou terreno na América do Sul?

Nada incomum, considerando que a máquina de guerra é o próprio motor da máquina social primitiva, afinal a guerra impede, repele o Estado. A recusa do Estado é a recusa à exonomia [lei exterior], iso é, a recusa à submissão. A sociedade primitiva sul-americana assentou-se em uma multiplicidade de comunidades indivisas, sob uma lógica centrífuga, onde a guerra passa a ser, portanto, o mecanismo que garante essa dispersão territorial. Quanto mais guerra, menos unificação. O Estado é o inimigo da guerra. A guerra impede o Estado. Sociedades para a guerra e sociedades contra o Estado, eis, pois o que foi, para Pierre Clastres, até o século XIX na América do Sul: uma Máquina de Guerra Primitiva, destacado em seu livro intitulado “Arqueologia da Violência”. Enfim, a sociedade primitiva se expande num espaço de guerra permanente. Uma máquina de dispersão contra uma máquina de unificação – a guerra contra o Estado.

Ninguém se espanta com essa proposição, pois o continente americano [de sul a norte] sempre possuiu uma ampla amostragem de sociedades que levaram longe sua vocação guerreira, o que se prolongou intocado na paisagem selvagem do Terceiro Mundo até o século XIX, antes do rufar dos nativismos, nacionalismos do século XX. A institucionalização de espécies de confrarias de guerreiros é um vestígio natural dessas práticas. A guerra ocupava o centro da vida política e ritual no 'socius primitivo'. Reconhecimento social à forma quase a-social da guerra e aos homens que a conduz. Do outro lado, bem a oeste dos campos de engenhos [agrário, minerador] e das cidades modernas [comerciais, industriais] no litoral brasileiro pré-rebuplicano, ressalta-se uma América do Sul selvagem, belicosa, canibalesca, entre as suas numerosas tribos de ‘cultura guerreira’, por exemplo, na Grande Chaco, austera em vasta região tropical, entre os territórios do que se chama hoje Bolívia, Argentina e Paraguai, do século XVIII, em plena expulsão dos jesuítas, em 1768. Foi um fracasso integrar o Chaco, porque contra a evangelização concorria uma paixão guerreira de índios como os Abipones, Mocovi, Guayakuru-Mbyá. Na parte paraguaia do Chaco, perto do rio Pilcomato, que separa a Argentina ao sul, no curso médio desse rio, faz-se fronteira com o território dos índios Chulupi. As tribos e suas tradicionais práticas, livres, autônomas –, mas a guerra ocupava lugar central entre os Nivaké. Até o início de 1930 – o Chaco paraguaio era um território exclusivamente indígena: terra incógnita que até os paraguaios pouco conheciam.

Em 1932, o Estado boliviano tentou anexar essa região – a Guerra Mortífera – a guerra do Chaco que opuseram bolivianos e paraguaios, que acabou em 1935, com a derrota do exército da Bolívia. Não resta dúvida, mas é preciso ainda investigar o ethos guerreiro das sociedades sul-americanas e experimentar os ritos e as técnicas da ‘guerra índia’, com sua solidariedade tribal, que conservam em certa autonomia até o presente: armar emboscadas para os inimigos hereditários, como os Toba argentinos e os Chulupi. Como atravessar o ‘monopólio da violência organizada’, cuja capacidade militar se exerce contra os inimigos, traçada por guerreiros em fuga – prisioneiros da morte, mas num canibalismo quase banal: nus e a chacoalhar os seus escalpos.

Como imaginar a chuva de balas que se sucedeu após 1935, com o fim desse armistício até resultar, no final do século XX, no ‘nacionalismo militar andino’? Em termos etnopolíticos, a imperial submissão incaica entrava em choque, em suas franjas territoriais com um povo que esconjurava o poder, desobedientes, insurretos, florestanos. Em termos técnico-econômicos, uma cultura da guerra tribal se fundiu a uma cultura do petróleo. Máquina de Guerra Primitiva que engole os complexos industriais? As duas direções da máquina de guerra deleuze-guattariana convergem pela primeira vez, quando a Guerra do Chaco foi promovida na América do Sul? A colisão do Primeiro e do Terceiro mundo no locus da emergente exploração da natureza? Os complexos-industriais confrontam o ambiente selvagem e mobilizam bandos, tribos e toda uma espécie de nativos, ávidos por guerra? Que motor foi esse? Que propulsão foi essa movida por ‘guerras tribais’ e ‘complexos industriais’? Como decifrar a intercalação de paisagens paradisíacas [Andes, Pampas, Patagônia] em ‘ecossistemas maquínicos’? No Novo Mundo, seja na costa do Pacífico seja no litoral Atlântico, de leste a oeste em vasta paisagem selvagem, emergiram máquinas sociais ávidas por guerra, petróleo e justiça... o que seria mesmo o ethos guerreiro sul-americano?

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