sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Miséria, Loucura: o Atenuante Psiquiátrico


Pautado na ancestralidade do Código Penal francês, de 1810, a partir do célebre artigo 64, segundo o qual não haveria crime nem delito se o indivíduo estivesse em estado de demência no momento no crime, um exame médico-legal deveria permitir estabelecer uma demarcação dicotômica entre doença e responsabilidade, terapêutica e punição, medicina e penalidade, hospital e prisão. Trata-se de um enunciado que se repetia: ‘a loucura apaga o crime’, de acordo com Michel Foucault em seu curso “Os Anormais”. Em outros termos, quando o patológico entrava em cena, a criminalidade, baseada na lei, deveria desaparecer. A seguir, pelo menos na França, uma nova regulamentação administrativa cristalizou-se essencialmente na célebre lei de 1838, do ponto de vista extramanicomial, referia-se a internação ex officio: um alienado internava-se num hospital psiquiátrico por ordem da administração municipal, mas essa internação tinha que ser motivada por um estado de alienação capaz de comprometer a ordem e a segurança públicas. Deste modo, quando o psiquiatra recebia um doente internado ex officio, ele precisava responder, de um lado, em termos médicos, patológicos, de outro, em termos de perigo, desordem.

Destaca-se certa ‘ordem psiquiátrica’, que procedia do exterior e mostrava de que modo o hospital como instituição só poderia ser compreendido a partir de algo exterior e geral, na medida em que essa ordem se articulava a um projeto absolutamente global, que visava toda a sociedade, em geral, denominado por ‘higiene pública’. Essa ordem psiquiátrica coordenava por si mesma todo um conjunto de técnicas variadas relativas à educação das crianças, à assistência dos pobres, à instituição do patronato operário, passando por trás das instituições tentava-se encontrar globalmente o que foi chamado de ‘tecnologia de poder’, por Michel Foucault em seu livro “Segurança, Território e População”. Assim, ao examinar as relações de poder entre razão e loucura no Ocidente moderno, procurava-se interrogar os procedimentos gerais de internamento e segregação, passando por trás do asilo, do hospital, das terapias e sintomatologias, para se encontrar uma economia geral de poder.

As técnicas de higiene coletiva (que tendem a prolongar a vida humana) ou os hábitos de negligência (que têm como resultado abreviá-la) dependiam do valor atribuído à vida em determinada sociedade, ou seja, a ocidental, a partir do século XIX, porque se tratava de um julgamento de valor que se exprimia nesse número abstrato que sempre foi a duração média da vida humana. Por isso, um traço humano não pode ser normal por ser frequente, mas pode ser frequente por ser normal, isto é, normativo em um determinado gênero de vida, no sentido que lhe foi atribuído pela escola de Vidal de La Blache, conforme Georges Canguilhem em seu livro “O Normal e o Patológico”. Se o homem normal poderia ser caracterizado pelos fisiologistas é porque existem homens normativos – homens para quem ser normal é romper normas e criar novas normas, normas coletivas de vida. Se o europeu pôde servir de norma, isto ocorreu apenas na medida em que seu gênero de vida foi considerado como normativo. Assim, o homem é um animal que consegue variar, por meio da cultura e da técnica, o ambiente de sua atividade. Portanto, a doença não deixa de ser uma norma de vida, mas uma norma inferior, porque não tolera nenhum desvio das condições que a valida, por ser incapaz de se transformar em outra norma. O ‘ser vivo doente’ suporta condições bem definidas e perdeu a capacidade normativa, ou seja, de instituir novas normas diferentes em condições diferentes.

Ainda no século XIX, uma enorme prática da droga ocorria no interior dos hospitais psiquiátricos franceses, por exemplo, o ópio, o clorofórmio e o éter. Moreau de Tours, em 1845, publicou “Du Haschisch et de L’aliénation Mentale”, ele mesmo experimentou o haxixe e pode perceber em sua intoxicação certas fases: passado o momento do sentimento de felicidade, da dissociação de ideias, do erro sobre o tempo e espaço, está-se na ordem da doença mental. Em todo caso, essa utilização da droga e essa assimilação dos seus efeitos com a doença mental deram aos médicos a possibilidade da reprodução da loucura, artificial [por causa da dose de intoxicação por haxixe] e naturalmente [porque nenhum dos sintomas enumerados Moreau de Tour são alheios à loucura]. Enfim, sob o efeito da intoxicação de haxixe, o médico terá a possibilidade de se comunicar diretamente com a loucura por meio da experiência subjetiva e não pela observação exterior dos sintomas visíveis. Até Moreau de Tours, portanto, o psiquiatra ditava a lei à loucura, como indivíduo normal por meio da exclusão: ‘você é louco uma vez que não pensa como eu’. A partir da experiência com o haxixe, o psiquiatra vai poder dizer: ‘sei qual é a lei da loucura, eu a reconheço porque posso reconstruí-la em mim mesmo’.

Foi entre os muros do internamento, onde Pinel e a psiquiatria do século XIX encontraram os loucos; lá os deixaram, por antes vangloriar-se por terem-nos libertado. A partir da metade do século XVII, a loucura esteve ligada a essa terra de internamentos, gesto que designava sua terra quase natural. Até que as reformas antipsiquiátricas, antimanicomiais, revelarem sua força no final do século XX. A prática do internamento foi uma reação à miséria, ao miserável e ao pobre, o homem que não poderia responder por sua própria existência.

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