domingo, 28 de junho de 2009

Divinatio, Incipit Homo e Super-Homem


Toda forma é um composto de forças. Dado um composto de forças, questiona-se com que forças de fora elas entram em relação e, logo, qual a forma resultante. Trata-se de saber com quais outras forças, as forças no homem entram em relação, em cada formação histórica, e que forma resulta desse composto de forças. No homem, as forças não compõem uma forma-Homem necessariamente, mas podem se investir num outro composto ou numa outra forma.

O século XVIII não parou de se perder no infinito, onde as forças no homem entram em relação com forças de elevação ao infinito. Estas são forças de fora, pois o homem é limitado e não pode exercer uma potência tão perfeita qual essa que o atravessa. Esse composto de forças não é uma forma-Homem, mas a forma-Deus. O que define esse “solo clássico” é, ainda no século XVIII, a operação do desenvolvimento ao infinito e da formação de continuuns: o Divinatio.

A mutação histórica do século XIX consiste, então, no ato de forças no homem que entram em relação com novas forças de fora que são, ao contrário, forças de finitude. Essas forças são a Vida, o Trabalho e a Linguagem – “tripla raiz da finitude” que provoca o surgimento, de acordo com Michel Foucault em seu livro “As Palavras e as Coisas”, da biologia, da economia política e da linguística. Só quando as forças no homem entram em relação com forças de finitude vindas de fora que o conjunto das forças compõe a forma-Homem e não mais a forma-Deus: Incipit Homo.
Quando a forma-Homem aparece, necessariamente, já compreende a morte do homem. Com efeito, são as próprias forças de finitude que fazem com que o homem só exista através da disseminação dos planos de organização da vida, da dispersão das línguas, da disparidade dos modos de produção, ou seja, o conhecimento não deixa de ser uma ‘ontologia do aniquilamento dos seres’. Gilles Deleuze afirmou, em seu livro intitulado “Foucault”, que a colocação mais adequada do problema que Nietzsche chamava de ‘Super-Homem’ era esta: se as forças no homem só compõem uma forma ao entrar em relação com as forças do lado de fora, com quais novas forças elas correm o risco de entrar em relação agora? Que outra forma pode advir que não seja nem Deus nem o Homem?

A linguística no século XIX acabou por consistir em fazer valer um ‘ser da linguagem’ para além do que ele designa e significa, para além dos próprios sons; foi preciso que a biologia saltasse para a biologia molecular e fizesse a vida dispersa se reunir no código genético; foi preciso que o trabalho se reunisse nas máquinas de terceira geração [cibernéticas e informáticas]. O mecanismo operatório é uma ‘superdobra’ [a ‘dupla hélice’ talvez seja o mais conhecido deles] característica das cadeias de códigos genéticos, nas potencialidades do silício nas máquinas de terceira geração e nos contornos frasais da literatura moderna [o livro de Mallarmé, os ensaios de Péguy, os sopros de Artaud, Burroughs e seus cut-up e fold-in].

As forças no homem entram em relação com forças de fora: as do silício e não mais do carbono; as dos componentes genéticos e não mais do organismo; as dos agramaticais que se vingam do significante. O super-homem é, então, o composto formal das forças do homem com essas novas forças: carregado dos próprios animais, das próprias rochas ou do inorgânico; carregado do ser da linguagem em sua região informe e muda. É o homem que tende a liberar dentro de si a vida, o trabalho e a linguagem. Não se trata do desaparecimento dos homens existentes, mas do surgimento de uma nova forma, nem Deus, nem o homem. Espera-se que ele não seja pior que essas duas formas precedentes.

Nenhum comentário:

Postar um comentário