domingo, 28 de junho de 2009

O Ethos Guerreiro Sul-americano


A dupla descoberta renascen- tista foi o retorno à cultura greco-romana e, sobretudo a irrupção do que não existia: o Novo Mundo – a América, onde muitos exploradores se aventuraram com o apoio das monarquias de Lisboa e Madri. Mas, talvez seja, ainda no século XXI, o território dos Yanomami, a última região inexplorada da América do Sul, que abriga a última sociedade primitiva livre, no extremo sul da Venezuela, numa parte da Amazônia que opõe obstáculos naturais a penetração. Toda sociedade primitiva é guerreira, isto é, a guerra pertence à essência da sociedade primitiva contra a ‘máquina de unificação’ que constitui o Estado. A guerra dos Yanomami é um ataque-surpresa: ao amanhecer, enquanto seus inimigos ainda dormiam, flechas eram disparadas por cima dos telhados.

Foi assim que Pierre Clastres afirmou, em seu livro “Arqueologia da Violência”, que não se pode pensar a sociedade primitiva sem se pensar ao mesmo tempo a guerra. Mas a ‘máquina de guerra’ é incapaz de engendrar a desigualdade na tribo, o líder guerreiro não tem condições de impor a sua vontade sobre um grupo. Se o chefe de guerra e os guerreiros permanecem iguais é porque quando um chefe busca impor seu próprio desejo de guerra à comunidade, ela o abandona ou o mata. Toda sociedade primitiva pode se transformar em sociedades guerreiras por circunstâncias locais externas [agressividade de grupos vizinhos] ou internas [exaltação de normas que regem a existência coletiva do ethos guerreiro]. No continente americano [de norte a sul] há uma amostragem ampla de sociedades que levaram longe sua vocação guerreira, onde a guerra ocupava o centro da vida política e de seus rituais, dentre os quais se destacam, o ‘butim de guerra’, os ‘escalpos’ e o ‘canibalismo’.

Primeiramente, o ‘butim de guerra’ se refere a uma espécie de pilhagem de instrumentos metálicos, de cavalos e de prisioneiros. A destinação do metal para aumentar seu rendimento técnico de armas [pontas de flechas, lanças, facas, etc.]; os cavalos eram capturados mais por ‘esporte’ do que por necessidade, tribos como os Abipones, Mocovi, Toba e Guayakuru não careciam de cavalos, eles possuíam milhares deles; os prisioneiros eram a parte mais prestigiosa do butim de guerra, tornavam-se servos ou escravos. O butim de guerra representa, portanto, o sinal de reconhecimento do guerreiro – fonte de prestígios. Em seguida, pelo menos entre as tribos do Chaco [Abipones, Chulupi e Guayakuru] respeitava-se o ato de se escalpar o inimigo abatido. O escalpo é o ponto de partida, não o coroamento do guerreiro: explica o desejo do jovem vencedor em ser admitido junto com os guerreiros. Os escalpos são cabeleiras retiradas de oficiais ou guerreiros inimigos, conservados pelos proprietários, dispostos em estojos de couro ou vime – quando os guerreiros morrem os seus escalpos são queimados juntos.

Enfim, a ‘antropofagia ritual’ pode ser exógena ou endógena. Entre os Yanoama, por exemplo, quando uma pessoa da tribo morre, suspende-se numa árvore o seu cadáver dentro de um cesto até desaparecer as carnes ou as queimam imediatamente. Os ossos são recolhidos e moídos [reduzidos a pó e conservados numa cabaça]: o pó é consumido misturado a um purê de banana. O ritual endocanibal entre os Guayaki [tribo nômade] se realiza ao assar a carne do parente morto e, ao comê-la, abandonam-se os ossos queimados. Os parentes são, enfim, devorados coletivamente em festas que consideram a ‘poeira dos ossos’ ou a ‘carne assada’. Os Tupi-guarani não praticavam o endocanibalismo, por não devorarem seus próprios parentes, mas exerciam o exocanibalismo, ou seja, devoravam prisioneiros de guerra.

Butim, escalpo e canibalismo são rituais ou técnicas de guerra ou de violência comuns na ‘América do Sul primitiva’ que requerem, acima de tudo, uma ascese física complexa, em que o aprendiz pode chegar ao esgotamento: jejuns prolongados, privação contínua do sono, isolamento nas florestas, por meio de absorção intensa de drogas alucinógenas. Ethos guerreiro daqueles que só são chamados de líderes porque são desprovidos de todo o poder – a chefia institui-se no exterior do exercício do poder, onde a guerra impede o Estado. O lugar do poder é realmente no corpo social, que o detém e o exerce como ‘unidade indivisa’, poder que impede que a desigualdade se instale entre os homens. Sob vigilância, o chefe pode ser abandonado por sua tribo, caso o seu desejo de poder tornar-se mais evidente que o do coletivo social. O ‘Descobrimento da América’ forneceu ao Ocidente o seu primeiro contato com os ‘selvagens’, num confronto com um tipo de sociedade radicalmente diferente – o ‘mundo dos selvagens’ e suas guerras incessantes eram impensáveis para o pensamento europeu.

Um comentário:

João Paulo disse...

Fala Junim - que bom que ainda desacortina o fim do fake!

Bom, o seu texto me fez pensar em algumas coisas... não sei o número, mas se não encomodar, vou relatando espontaneamente daqui pra frente:

É interessante a variação antropofágica dos povos primiivos da América, tao logo pensei em um roteiro de qaudrinhos ou mesmo romance de "época". Penso que é muito importante a sociedade poder apreender estas narrativas, não consigo me desgrudar da algorítimica foucaultiana "saber é poder". Acho que a antropologia e a sociologia diviam habitar mais os meios de comunicação. Sei que hoje vemos mais inserções educativas que em nossa infância e também vejo as mídias sociais, tanto da Web, como este blog, quanto das ruas - intervenções, representações urbanas, graffiti, nordeste etc, como um alento para um momento mais a favor da cultura e do amadurecimento espiritual. As mídias de massa tão logo se servirão de programas mais úteis e contemporâneos. É só questão de tempo. É hora da estrela!
Sobre o conteúdo do texto, me intriguei com o fato dos nativos roubarem cavalos. Isso me confundiu, pois não sei o que realmente procede sobre a entrada de cavalos na América. Ai fiquei com uma dúvida se o envolvimento dos ínidios eram só entre eles ou esse "roubar" cavalos também o era dos "civilizadores"? Ou seja, esse comportamento "fazer por esporte" continuou ou se iniciou ou se modificou com a chegada dos europeus?
Interessantíssima a questão da descoberta do novo mundo como uma esperança para os desesperançosos, não? é como se comprassem um HD maior para organizar os dados e os programas... hehe, nós homens do renascimento, os bits, beats, ficamos em polvorosa com a perspectivas de coisas novas que possam sacudir tudo e fazer repensar, tal como os bits nos sistemas eletrônicos, nós, orgânicos, híbridos, ficamos satisfeitos com as novas possibilidades que se abrem, mesmo que o desconhecido seja temeroso, caos. talvez seja esse o tal do revirão, será?
é possível conseguir enxergar comportamentos contemporâneos a partir desta leitura primitiva do Brasil? Talvez ropendo a barreira da modernidade e acreditando que a antropofagia se tornou metáfora cruel do comportamento de grupos políticos e associações das mais diversas?
Um homem sensato uma vez me contou que há um tese mística de que o comportamento da violência carioca tem suas raizes espirituais nos confrontos ocorridos entre os tamoios, franceses, portugueses e demais envolvidos. Sei lá, mas às vezes nem sei bem, alguas danças do funk são bem parecias mesmo com passos indígenas (e claro, africanos)... de qualquer forma, é possível ter estudos dessa natureza, sobre a cultura carioca nos morros, sua relação com o asfalto, suas expressões como dança, música, hábitos linguísticos, de lazer etc? E tudo isso comparando aquele momento com este?

Um forte abraço!
O barco ainda continua o mesmo
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a gente se vê!

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