quarta-feira, 10 de junho de 2009

Teleatores & Mercenários


É conhecida a lógica capitalista que articula em um só golpe o capital e o trabalhador nu. Miríades de condutas econômicas são contrapostas ao sistema de leis. Ethos é, antes de tudo, morada, que resulta das normas da casa, economia, no grego oikos-nomos. Não é necessária uma digressão filológica sobre a expressão ethos, pois o comportamento animal é o escopo da etologia, cujo radical é o mesmo de ética. Descreve-se, pois, a organização do trabalho no sistema capitalista, quando se estão em questão o ambiente ético e o comportamento dos indivíduos, como um campo de forças que cinde o espaço político. Busca-se compreender, de acordo com Michel Foucault em seu livro intitulado “Nascimento da Biopolítica”, a invenção neoliberal do ‘capital humano’ para que se possa destacar o comportamento de ‘teleatores’ nos meios de comunicação de massa, conforme sugeriu Paul Virilio em seu livro “Bomba Informática”, e as condutas de ‘mercenários’ que tendem a se corromper, segundo Michael Hardt e Antonio Negri em seu livro “Multidão”, no complexo militar-industrial. Analítica do ethos, em sentido amplo, ou ética, em sentido estrito, de soldados desconhecidos em uma guerra informática, onde é preciso evitar a perda de intelectuais de intensivo investimento humano.

Hostil às proposições de Keynes, Lionel C. Robbins aplicou uma definição de objeto econômico, no começo da década de 1930, onde a economia tornou-se a ciência do comportamento. Deste modo, a economia é a análise da racionalidade interna, da programação estratégica da atividade dos indivíduos. Estuda-se, então, o trabalho como conduta econômica praticada, aplicada e calculada por quem trabalha. Pensar a economia como ciência do comportamento é o mesmo que especular sobre a utilização e a disposição dos recursos pelos trabalhadores. Compreender o trabalhador como um sujeito econômico ativo que comporta um capital, uma aptidão, uma competência: diz-se, uma máquina[1]. Essa concepção de “capital-competência” se refere a certa renda, uma renda-salário, como se o trabalhador aparecesse como uma espécie de empresa para si mesmo. Uma economia, então, uma sociedade feita de ‘unidades-empresa’. O neoliberalismo retornou com o homo economicus, que na versão liberal clássica mercantilista era o homem das trocas, baseando-se na teoria utilitarista a partir do problema da necessidade. No neoliberalismo, entretanto, o homo economicus é um empresário de si mesmo, sendo para ele próprio seu capital e sua fonte de renda. O capital humano é essa renda que não pode ser dissociada do indivíduo, o seu portador. Os neoliberais analisaram a constituição e o acúmulo desse capital humano, composto por elementos inatos e adquiridos. O apanágio dos recursos humanos se assentou sempre nos investimentos em educação e treinamento profissional como fator chave do desenvolvimento, assim o capital humano expressou-se nas estratégias da Carta de Puenta del Leste, em 1961, assinada no governo J. F. Kennedy. O capital humano mistura saúde, conhecimento e atitudes, comportamentos, hábitos, disciplina, isto é, um conjunto de elementos que produzidos e uma vez adquiridos ampliam a capacidade de trabalho, a produtividade. Interroga-se, então, a ética através de um ethos pautado tanto no comportamento quanto no ambiente onde o capital humano e suas unidades-empresa se confrontam. Como detalhamento do capital humano que oscila dos teleatores [no espaço das redes multimidiáticas que estabelecem o ‘mercado do visível’] aos mercenários [condottieri, engenheiro] vinculados aos sistemas de comunicação e ao complexo industrial-militar.
Pensa-se na cibernética como um sistema técnico de comunicação estratégica que traz consigo o risco sistêmico de uma reação em cadeia dos estragos. Percebe-se, dessa forma, uma espécie de ‘delação sistemática’ que provoca fenômenos de pânico, boatos e suspeitas que estão prestes a minar as bases da ‘verdade’ e, logo, da liberdade de imprensa. Dúvidas sobre a veracidade dos fatos, a manipulação descontrolada das fontes e da própria opinião pública demonstram que a revolução da informação real é igual a da desinformação virtual. Raros por natureza, os acidentes tornam-se cotidianos, não sendo uma distração das elites, com o cinema, a destruição tornou-se a verdadeira arte popular do século XX. Os teleatores da revolução cibernética das comunicações agem e interagem em tempo real num ritmo [tempo técnico] que se sobrepõe ao tempo local, propriamente histórico das sociedades e dos países. Trata-se tanto de um adestramento dos comportamentos individuais quanto de um fenômeno de contaminação ideológico sem precedentes, em suma, traduzidos na promoção da web e de serviços on line como uma vasta empresa de transmutação da opinião, que faz pouco uso da inteligência coletiva, da cultura das nações. Os teleatores ou atores promovem atos que são antes entreatos ou inter-atos, porque desaparece a diferença entre o ator e o telespectador: fusão/confusão dos papéis ou uma percepção simultânea da ficção teatral e do instante sem passado e futuro da realidade virtual. Arte de um feedback, interatividade do ator e de seus espectadores como se, tela contra tela, o computador doméstico e o monitor da TV disputassem o ‘mercado da percepção global’, cujo controle abre-se em uma era estética e ética. Até que se instaura a ‘transparência’ das aparências instantaneamente transmitidas à distância no ‘comércio do visível’, publicidade ou divulgação global semelhante à exploração militar de informação, assim como a propaganda política e seus abusos. A revolução da ‘delação generalizada’ se expressa na frase de Joseph Paul Goebbels: “aquele que sabe de tudo não tem medo de nada”. Atualmente, o mercado único exige uma concorrência global, a comparação torna-se um fenômeno também global e necessita de superexposição integral dos lugares, das pessoas, de seus comportamentos, de suas ações e reações íntimas. A publicidade comparativa denuncia o concorrente comercial, desarma a resistência dos consumidores, condena sua posição e atitude. As agências publicitárias satisfazem a curiosidade dos compradores de suas mercadorias e assassinam simbolicamente seus concorrentes. A tentação terrorista é permanente na internet, é fácil causar danos com impunidade, os piores internautas não são os militantes, mas empresários [ciberterroristas] prontos para qualquer baixeza para arruinar um concorrente, em um mercado que utiliza procedimentos de espionagem totalitária. Trata-se de empresas da aparência disposta à ótica cibernética que nos mostra o mundo inteiro, graças a transparência das aparências transmitidas imediatamente à distância. Democracia live midiatizada em uma ciber-ótica mergulhada na estética moderna européia e na ética das democracias ocidentais.
Louis-Ferdinand Céline captou a transformação do corpo moderno na estreita ligação entre o corpo de infantaria na guerra e o corpo do operário na fábrica. A guerra moderna transformou a sociedade num certo tipo de fábrica da guerra – acumulam-se corpos nos campos de batalha assim como nas fábricas. Na fase imperialista de acumulação do capital, o complexo industrial-militar designa uma confluência de interesses, entre empreendimentos industriais e o aparato militar-policial do Estado: empresa de seguros Lloyds e os projetos imperialistas britânicos; o fabricante Dassault e as políticas gaullistas; a Boeing e o Pentágono. O corpo anônimo do operário massificado corresponde ao do soldado na guerra, ilustra-se o Unknown Soldier. Se os dirigentes americanos pensam uma guerra sem corpos ou sem soldados, trata-se apenas de soldados americanos. Os corpos inimigos existem, entretanto, para morrer. A maioria dos soldados que correm risco na linha de frente não são americanos, mas uma ‘força aliada’ [grupo de soldados migrantes europeus, canadenses, australianos e até paquistaneses e afegãos] toda comandada por americanos – um exército terceirizado. Para não comprometer o êxito das missões militares, sem por em risco tropas terrestres americanas, faz-se uso cada vez maior de fornecedores militares particulares, isto é, empresas que recrutam, treinam e dão apoio operacional dentro e fora do campo de batalha. Soldados de aluguel, ou seja, mercenários. Na guerra pós-moderna como na Roma antiga, os exércitos de mercenários tendem a se tornar as principais forças de combate. Revolução nos assuntos militares e corrupção da arte da guerra. Os mercenários armados são um exército da corrupção: corrupção como destruição da ética pública. Quando o exército deixa de ser o povo em armas, o império rui. Atualmente, as forças armadas tendem a se tornar exército de mercenários liderados, como no Renascimento, por condottieri. A figura do condottieri é facilmente preenchida por um engenheiro: alguém vinculado a uma série de indústrias que desenvolvem novas armas, sistemas de comunicação e de controle. Hoje, então, ao rigor do capital humano, os mercenários devem dominar capacitações técnicas, jurídicas, culturais e políticas. Assim mercenários e aristocracia ora se aproximam ora se afastam. O que se teme é que um condottieri se volte contra a aristocracia imperial, na medida em que a conquista do poder mercenário assinala o fim da República, onde o comando mercenário e a corrupção tornam-se sinônimos. Devem-se aguardar a insurreição dos mercenários contra o Império global atual? No poder mercenário, a corrupção é apenas um dos caminhos possíveis.
Entre mercenários e teleatores, a corrupção e os acidentes, o homo penalis[2], homem penalizável que se expõe a lei e pode ser punido por ela é, estritamente, um homo economicus, onde a lei articula a penalidade e a economia. A lei é uma solução econômica de punir as pessoas eficazmente, cujo crime é somente uma infração à lei, o que quer dizer que enquanto não há lei, não há crime nem possibilidade de incriminar um ato. Se todo sujeito é um homem econômico, então o criminoso é tratado como qualquer pessoa que investiu uma ação, que espera lucrar com ela e também corre o risco de uma perda. Mobilidade do trabalhador, a migração deve ser observada como um custo e um investimento, em outras palavras, um número de despesas são feitas para obter certa melhoria de vida. O sistema penal se ocupa, pois de uma série de condutas que produzem ações, cujos atores esperam um lucro, mas que são afetados por um risco de perda econômica infligida. Os neoliberais anteciparam-se, portanto, em definir o crime como toda ação que faz um indivíduo correr o risco de ser condenado a uma pena. Antecipação, afinal, porque os neoliberais se colocaram no ponto de vista de quem vai cometer o crime: para o sujeito de uma ação, conduta ou comportamento, o crime é aquilo que ele corre o risco de ser punido. O cegamento ético dos contornos dessas batalhas produz uma ignorância da lei, onde o ‘herói-trágico’[3] se traveste num misto de culpado e inocente, como em Édipo-rei. Caso irônico, em que Albert Camus mostrava outro indício, “quando formos todos culpados, teremos assim a verdadeira democracia”. Na fronteira ética dos delitos orientados pela superexposição midiática e governados pela corrupção generalizada, espera-se a carne enfileirada dos corpos sujeitados e produzidos de teleatores, de um lado, e mercenários, de outro, mas ambos embriagados de paixão pelo poder.
Notas:
[1] A perspectiva maquínica da conjugação dos fluxos de capital e de trabalho nu foram analisadas por Gilles Deleuze e Félix Guattari em “O Anti-Édipo”.
[2] As concepções de homo penalis e de homo criminalis foram desenvolvidas em “Nascimento da Biopolítica” por Michel Foucault.
[3] Encontrada no livro “O que resta de Auschwitz”, Herói-trágico é a noção que Giorgio Agamben criou para designar os atos criminosos que são realizados sem a consciência de quem os pratica.

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