sábado, 19 de setembro de 2009

À Sombra dos Radares [Rafale II]


Os EUA adotaram, em setembro de 2009, uma ‘nova arquitetura de defesa’ contra o Irã, ao cancelar o 'escudo antimíssil' no Leste Europeu e substituí-lo por radares, sensores e interceptores. Assim, Clóvis Rossi indagou na F. São Paulo [18/09/2009] se não seria mais interessante que submarinos e aviões que o Brasil quer comprar [?]. A questão é o que se promete com o Rafale, que ele pode driblar, mais que os outros caças em licitação no Brasil, exatamente estes sensores e radares, ou seja, trata-se aparentemente de uma ‘aeronave-fantasma’, que precipita sua sombra e torna-se obscura nos radares, tal como o caça F117, usado pelos EUA na Guerra do Golfo por Bush-pai, Paul Virilio exemplificou essa tecnologia em "A Arte do Motor". Portanto, tecnologicamente o que se discute no Brasil é como driblar os radares, mas para Barack Obama o que está em questão é pura economia, poupar o 'luxo bélico', o que é óbvio após a crise dos papéis podres.

Desde 1976 o Brasil procura desenvolver essa tecnologia de radares, sensores e interceptores, como infra-estrutura básica no setor aeroespacial, com destaque para o pólo militar-industrial em São José dos Campos - SP. Por exemplo, o SISDACTA [Sistema Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo] foi estabelecido no país, com a primeira implantação em um polígono de 1.500.000 km2, entre Brasília-Rio de Janeiro-São Paulo-Belo Horizonte-Brasília, conforme João Baptista Peixoto em "Os Transportes no Atual Desenvolvimento do Brasil". Tratava-se de um sistema de detecção-radar através de unidades de detecção e de telecomunicações, estrategicamente localizadas para controlar aeronaves com ‘transponder’. De 1979 a 1973, entretanto, já se instalava um sistema nacional de telecomunicações por rede hertziana; de 1974 a 1984 incorporou-se ao sistema o satélite INTELSAT e, por fim, entre 1985 a 1988 desenvolveram-se dois satélites brasileiros, o Brasilsat I e II, histórico resumido, mas desenvolvido por Milton Santos e María Laura da Silveira em seu livro "O Brasil: Território e Sociedade no Início do Século XXI". O SIVAM [Sistema de Vigilância da Amazônia] realizou-se por meio de um convênio entre o Estado brasileiro e a empresa norte-americana Raytheon, em 2002, patrocinada e recomendada pelo governo dos Estados Unidos. Este acordo suscitou opiniões divergentes: cientistas nacionais identificaram o SIVAM como obra faraônica – uma "Transamazônica Eletrônica", além de criar relações de dependência desnecessária com os Estados Unidos.

Acontece que no âmbito do espaço hertziano, condutor dos sinais provenientes do espaço aéreo, explora-se a detecção multistática por meio de emissões não-cooperativas, mas o que isso quer dizer? Trata-se de um conceito soviético que põe o Radar obsoleto, uma vez que a televisão pode substituir os radares de vigilância ou de controle do tráfego aéreo e detectar em qualquer ponto do espaço atmosférico aviões em voo. A limitação só diz respeito ao alcance das estações transmissoras e retransmissoras de TV, segundo S. Brosselin, "Guerre des Ondes: le Radar Squatte la Telévision", em Le Monde de L'aviation, nº 12, maio de 1999. Observe! Como a Central Globo de Televisão, por exemplo, cobre todo o território brasileiro, o país inteiro está mergulhado no espaço hertziano da televisão. Nesse 'lençol eletromagnético' os sinais audiovisuais se comportam como os que são emitidos por radares contínuos. Quando um avião em voo é atingido por um sinal eletromagnético, ele retrodifunde uma parte deste mesmo sinal. Então, basta dispor de um receptor de televisão comum, mais duas antenas espinha-de-peixe simples e um sistema de tratamento e amplificação do sinal recebido, para detectar o aparelho. Esse 'ecossistema hertziano', de acordo com Paul Virilio em seu livro "Estratégias da Decepção", foi designado por "Silent Sentry", que a Lockheed-Martin revelou ao público no outono europeu de 1998. Quer mais? A vantagem desse sistema reside no caráter indestrutível desses detectores que cobrem o território inimigo, ou seja a 'arquitetura de detecção estratégica' se revela: com uma base de dados que engloba as milhares de antenas [de difusão das cadeias de TV e rádio] que varrem o globo e interconectando-as, o RADAR TV permitiria cobrir o conjunto dos espaços aéreos dos dois hemisférios. Portanto, Sr. Clóvis Rossi ainda tem dúvida que essa tecnologia já nos foi transferida, se não, já foi estabelecida e promovida em nosso território, tanto pelos militares da FAB quanto pela iniciativa privada.

A Guerra Fria acabou!? Mas fala-se em dissuasão no Brasil, como? Nunca se viu dissuasão sem 'bomba nuclear'. Energia nuclear é totalmente discriminada entre os ambientalistas, concorda-se, porém... É um escândalo o Brasil não ser considerado uma potência porque não possui ‘bomba nuclear’, ou melhor, enriquecimento de urânio, tecnologia nuclear, e ficar atrás da Índia, da África do Sul e da China. O que esse submarino com propulsão nuclear poderá justamente propiciar ao Brasil. Mas, isso não se discute entre os ecologicamente corretos, o que também não se discute é uma ‘economia antimíssil’ de Obama, barateada com sensores. Cá entre nós, o Brasil já emprestou dinheiro para o FMI demais nesses últimos anos e comprar essa aeronave da Boeing em fim de linha, ainda mais com possíveis embargos do congresso norte-americano seria uma loucura. Tudo isso ainda é suportável, porque em geral loucura não é crime, o que está sendo insuportável é a direita oposicionista na imprensa brasileira desejar de todas as formas que os EUA sejam beneficiados com essa licitação das Forças Armadas do Brasil. Portanto, enquanto Barack Obama se organiza com sensores, o Brasil busca uma forma de fugir deles!

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Caças Fantasmas: Stealth Fighter [Rafale I]


O que está em questão na compra de caças Rafale [Dassault] que favorecem os franceses na busca por defesa e transferência tecnológica pelo Brasil? Historicamente, a política de ‘antecipação da industrialização’ referiu-se à decisão de ultrapassar a etapa da ‘substituição de importações’, o que encorajou a manufatura de novos produtos e o interesse por ‘transferência de tecnologia’. Essa ambição dominou as Forças Armadas Brasileiras desde meado do século passado, como destacaram Bertha K. Becker e Claudio Egler em seu livro “Brasil: uma Nova Potência Regional na Economia-Mundo”, especialmente em quatro setores estratégicos: aeroespacial, indústria bélica, nuclear e da computação.

As associações entre Estado e multinacionais se apresentaram de modo complexo no Brasil, o que se verificou com o desenvolvimento dos setores da computação e da indústria bélica. Com a criação da IMBEL [Indústria de Material Bélico], em 1975, e a concentração no seu interior de três grandes empresas [Avibrás, Embraer e Engesa] reforçou-se o processo de industrialização brasileira de bens de capitais. A participação do Estado brasileiro na produção industrial resultou na criação de uma holding como a IMBEL, colocando o país na lógica do capitalismo mundial, sob uma diversificação da produção e na internacionalização dos mercados.

A participação da IMBEL no setor da informática criou alguns problemas, por exemplo, com a criação da SEI [Secretaria Especial de Informática] responsável pela regulamentação de reserva de mercado para esse setor, o que gerou uma série de polêmicas internacionais, obtendo a IBM do Brasil como pivô, de acordo com Francisco Capuano Scarlato em ser artigo “O Espaço Industrial Brasileiro”. As regulamentações da SEI dificultaram a entrada de componentes para a fabricação de computadores pela IBM, assim os EUA foram motivados a retaliar e reagir à entrada de produtos brasileiros no mercado norte-americano. Com a liberalização da economia brasileira na década de 1990, entretanto as ações da SEI foram esvaziadas.

Acrescente-se a isso outro dado, em 1976 estava prevista a exportação de 76 aeronaves Bandeirantes para os Estados Unidos, mas houve uma reação da empresa Cessna que, junto ao governo norte-americano, tentou criar dificuldades para a compra desses equipamentos brasileiros, segundo João Baptista Peixoto em seu livro “Os Transportes no Atual Desenvolvimento do Brasil”. Neste mesmo ano, contudo a Embraer assinou um acordo com a Companhia Geral de Aeronáutica [empresa francesa] que possibilitaria a venda de aviões brasileiros para os mercados do Oriente Médio e da Europa. Percebe-se que as relações fortuitas entre Brasil e França não aconteceram recentemente, como por exemplo, entre a Embraer e a empresa aérea francesa [Air France], que são absolutamente diferentes das relações político-diplomáticas com governos norte-americanos, como o veto de W. Bush às vendas de super tucanos para Venezuela e Irã. Portanto, o posicionamento político do atual governo brasileiro em proveito da compra de caças fabricados na França em nada nos assustaria, como antecipou o presidente Lula no dia 07 de setembro de 2009. Saem perdendo a empresa Boeing e a sueca Saab em disputa com a Dassault uma operação que chega a 10 bilhões de dólares que envolve a aquisição de 36 aviões de combate Rafale.

Em uma análise fria e sob um cálculo de forças preciso, nem o F-18 Super Hornet [Boeing-EUA] muito menos o Gripen NG [Saab-Suécia] e tampouco o Rafale [Dassault-França] corresponderiam a um grande investimento de alta tecnologia? Por quê? Porque nenhum destes caças de combate possuem a propriedade de serem objetos voadores não detectáveis por radar, aeronaves de combate analisadas por Paul Virilio em seu livro “Estratégias da Decepção”, a partir das experiências norte-americanas no deserto do Golfo Pérsico, nas emboscadas da década de 1990 guiadas por Bush-pai. A tecnologia aeroespacial pressupõe atualmente esse tipo de dispositivo, portanto, as aquisições brasileiras não se referem a aviões furtivos [Stealth], como a invenção do F117, com força de penetração que desafia os raios de ondas radioelétricas dos radares, ao ponto de cegar as telas de controle – ‘aviões fantasmas’ que antecipam o desaparecimento de sua própria imagem. Deste modo, uma unidade do F117 poderia derrotar dezenas de qualquer um desses caças oferecidos em licitação para a Força Aérea Brasileira, mas depois dessa crise econômica mundial, esse caça furtivo deve estar enferrujando num dos galpões da força aérea norte-americana. Sem recursos financeiros para levantar alguns voos e sem frustrar sua tecnologia fantasma, realmente ele desapareceu das telas dos radares?

Neste caso, exigir a transferência de tecnologia é o mínimo que esses 10 bilhões são capazes de comprar, afinal são caças, em geral, em fim de linha. Em outras palavras, o Super Hornet está no limite de sua evolução, não tem mais potencial de desenvolvimento; o Gripen NG é um protótipo ainda, com apenas um motor, é o mais lento dentre eles e o mais barato, vende-se dois por um; o Rafale é o mais caro, com altos custos para manutenção e treinamento, por isso especula-se que se o Brasil não efetivar essa compra a empresa francesa não o produzirá mais. Mas foi a Dassault que desenvolveu a melhor tecnologia de invisibilidade, entre todos os outros caças em disputa pela FAB, isto é, os radares inimigos demoram mais tempo para perceber o Rafale, assim, com pilotos bem treinados, pode-se driblar as ondas radioelétricas tal como o F117. Sem dúvida, enfim, a opção francesa é de longe a melhor, principalmente por ser a mais segura em termos de transferência tecnológica e historicamente a mais produtiva como parceira econômica. Em termos diplomático-militares, de defesa do território, esses caças Rafale colocariam o Brasil numa posição mais confortável. Mas, certamente, aliando-se a uma frota de submarinos de ataque com propulsão nuclear, as Forças Armadas do Brasil será soberana no Atlântico Sul e na América Latina inteira, chegando até forçar nossos vizinhos a rever suas posições geoestratégicas.

sábado, 12 de setembro de 2009

Law and Order: Trump Tower, Suburb


As maneiras de vigiar e policiar se multiplicam, por exemplo, nos Estados Unidos, onde a prisão tornou-se uma estratégia-chave para resolver problemas que surgem entre trabalhadores descartados e populações marginalizadas. Mas essencialmente o aspecto coercitivo do estado neoliberal fortalece-se para proteger interesses corporativos, reprimir a dissensão. O Estado neoliberal deve favorecer direitos individuais à propriedade privada, ao regime de direito e as instituições de mercados de livre funcionamento e do livre comércio, trata-se de uma trama institucional essencial à garantia das liberdades individuais. O Estado tem, por isso, de usar seu monopólio dos meios de violência para preservar a todo custo essas liberdades. O aumento da vigilância e do policiamento, no caso norte-americano, do encarceramento de elementos recalcitrantes da população indica uma tendência mais intensa do controle social, conforme David Harvey em seu livro “O Neoliberalismo: História e Implicações”. O complexo prisional-industrial ainda é um setor florescente na economia estadunidense. O papel do Estado neoliberal assume rapidamente o da repressão ativa, que chega a uma guerra limitada a movimentos de oposição, como os do terrorismo ou do tráfico de drogas.

A teoria neoliberal articula a lei ao crime, assim codifica a penalização. Parte-se do princípio que um sistema penal para funcionar bem é necessário uma boa lei. A lei não deixa de ser a solução mais econômica para punir devidamente as pessoas e para que essa punição seja eficaz. Trata-se, de um lado, do crime como uma infração a uma lei, e, de outro, não há crime nem é possível incriminar um ato enquanto não houver uma lei. A lei só se tornou um mecanismo efetivamente adotado no poder penal europeu no fim do século XVIII. O homo penalis é o homem que é penalizável, que se expõe a lei e pode ser punido por ela, de acordo com Michel Foucault em seu livro “Nascimento da Biopolítica”. Assim, ‘Law and Order’ tem, pois, originalmente um sentido preciso que pode ser verificado além do liberalismo: o Estado não intervirá na ordem econômica anão ser na forma da lei, e somente no interior dessa lei que vai aparecer algo como uma ordem econômica, como efeito e princípio da sua própria regulação.

Atualmente, os muros, as cercas eletrificadas e os aparelhos de vigilância, o medo, a segregação, contribuem para a fundação de uma espécie de cidade carcerária, que complementa um processo de favelização praticamente em todas as cidades brasileiras. No Brasil urbano houve um processo de segregação dos pobres para espaços desprezados pela elite, deste modo, eles ocuparam as encostas de morros, as beiras de rios e canais, ou amontoaram-se em favelas nos interstícios dos bairros de classe média ou espalharam-se por loteamentos irregulares na periferia. Nos Estados Unidos, os guetos não evitam que seus moradores levem uma vida, em geral, excluídos das atividades econômicas da cidade à sua volta. O gueto se renova numa acepção de unidade sócio-espacial voltada sobre si mesma, onde os residentes encontram suas ocupações, subempregos legais ou ilegais, com destaque para o tráfico de drogas. Os suburbs da classe média norte-americana não deixam de ser enclaves excludentes, com uma vida econômica e social também apartada da vida urbana. Os antigos suburbs eram inteiramente residenciais, mas agora são amplamente auto-suficientes em matéria de comércio e serviços. Beverly Hills, na Califórnia, ilustra esse tipo de enclave excludente, assim como as torres de luxo nova-iorquinas, Trump Tower, é um dos exemplos de fortified citadels, que não se localizam nos arredores das cidades, mas nas áreas centrais.

Se o neoliberalismo implica as liberdades individuais, por mais paradoxo que pareça, a população chega a viver cotidianamente, às vezes inconscientemente, o ápice da própria privação da liberdade, seja nas prisões e nos guetos, seja nos condomínios fechados ou fortified citadels. Trata-se de uma cidade carcerária imposta pelo neoliberalismo, essencialmente biopolítico, ou seja, trata-se do paradoxo de uma cidade como prisão, que acondiciona a auto-segregação escapista dos ricos e que impõe a segregação induzida dos pobres.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Militarização, 'Drug-Cities' & Lawman


As prisões não servem efetivamente para reinserir na sociedade, punir ou neutralizar desviantes, mas têm servido para o controle social dos pobres. Como nos Estados Unidos o confinamento desproporcional dos pobres e das minorias étnicas tem servido menos para tirar de circulação ‘predadores violentos’ que para tirar de circulação parte da massa desempregada? Em estudos de Loïc Wacquant, como “As Prisões da Miséria”, percebe-se que a grande maioria dos quase dois milhões encarcerados, em 1994 nos EUA, não estava presa por terem cometido homicídio, roubo ou estupro, mas por razões de desordem na vida pública, em especial, pela infração da legislação de drogas. O crime não deve valer a pena para o criminoso, mas o que ocorre na ‘cultura da impunidade’ em um ambiente da ineficiência policial, acontece o inverso: o crime compensa. No Far West do sistema mundial capitalista, quem não reivindicou por um Wyatt Earp, um lawman, homem da lei que explorava a jogatina e abusava da violência da para impor ordem na casa, mesmo conciliando seu lema de ‘lay down the law immediately!’ com seus lucrativos interesses privados, como manager ou segurança de saloon. Meio bandido, valentão e violento, reza a lenda que Wyatt Earp ‘salvou’ Dodge City, trouxe-lhe a ordem e imortalizou-se nas telas de cinema. Afora essa alegoria cinematográfica, nas nossas Dodge Cities contemporâneas, não vai ser a ajuda providencial de um deus ex machina à la Wyatt Earp, mas sim que se gerem novas articulações sociopolíticas. Afinal, no Rio, em São Paulo e em tantas outras cidades no mundo, as forças que deveriam cuidar da segurança pública, muitas vezes, contribuem para realimentar insegurança aos cidadãos amedrontados.

Reconhece-se que o problema central da racionalidade governamental moderna girava em torno da conservação de uma dinâmica das forças e, para isso, no Ocidente, criou-se um duplo conjunto que se esboça, de um lado, como dispositivo diplomático-militar, e, de outro, um dispositivo de polícia, o que mais tarde irá se chamar ‘dispositivo de segurança’, conforme Michel Foucault em seu livro “Segurança, Território, População”. Desde o século XIX, um estabelecimento de um dispositivo militar permanente passou a supor a profissionalização dos homens de guerra; a constituição de uma carreira das armas; uma estrutura armada permanente, para enquadrar as tropas recrutadas excepcionalmente em tempo de guerra; um equipamento de fortaleza e de transportes; um saber, uma reflexão tática, tipos de manobras, esquemas de ataques e de defesa, em suma, toda uma reflexão própria sobre a objetividade militar e as guerras possíveis. Não se trata de um dispositivo militar que vai ser a presença da paz na guerra, mas a inclusão da diplomacia na economia política. Assim como a polícia vai se ocupar com o número de homens, em primeiro lugar, tanto no que concerne à atividade dos homens quanto à sua integração numa utilidade estatal, saber quantos são e fazer que haja o número adequado possível, afinal a força de um Estado nunca deixou de estar ligada ao número de seus habitantes, em tese, a polícia deveria zelar para que as pessoas possam manter efetivamente a vida que o nascimento lhes deu.

No final do século XX, o ex-presidente do Brasil foi forçado pelas circunstâncias a se pronunciar sobre problemas como criminalidade violenta e crime organizado, de acordo com Marcelo Lopes de Souza em seu livro “Fobópole”. O então presidente da República Fernando Henrique Cardoso, em discurso proferido em 1996 a bordo de um navio-escola da Marinha de Guerra, expressou a opinião de que o tráfico internacional de drogas e armas constituía uma ameaça à soberania nacional: ‘eles [os traficantes] não só desafiam a nossa soberania nas fronteiras, no espaço aéreo e nos rios da Bacia Amazônia, como também influenciam no risco de esgarçamento do tecido social brasileiro’ [Jornal do Brasil, 6/3/1996]. Em torno de um mês depois, falando para uma plateia de 25 novos generais, na presença dos seus ministros militares, Fernando Henrique considerou o tráfico de drogas o novo inimigo da segurança nacional, a ser combatido pelas Forças Armadas [O Globo, 17/4/1996]. Simultaneamente, considerando as articulações internacionais envolvidas no tráfico de drogas e armas, redes do crime organizado, esquemas de lavagem de dinheiro, pressões diplomáticas e ‘cooperação militar’ foram desdobradas na esteira da ‘war on drugs’ proclamada pelo governo norte-americano, assim violência urbana e insegurança pública deixavam de ser apenas uma expressão política e alcançavam uma magnitude geopolítica. Se a opinião pública brasileira clamava por ações das instituições militares no combate à criminalidade, as Forças Armadas resistiram, pois percebiam que o seu papel não era substituir policiais a trocar tiros em favelas.

Anda-se, enquanto isso, pelas favelas e pela violência que incendeia os morros do Rio. A polícia corre atrás de telefonemas, quase sempre anônimos, anunciando a descoberta dos corpos da guerra de quadrilhas. Ao mesmo tempo, sob enorme pressão da imprensa e da opinião pública, prepara ‘operações de limpeza’ nos labirintos do tráfico de drogas. Algumas vezes, centenas de policiais ocupam um morro, durante quatro ou cinco horas, e voltam sem resultados. Outras vezes são ataques-relâmpagos de pequenos grupos de policiais. Desfilam uniformizados, camuflados, fuzis militares, granadas, helicópteros e cães farejadores.

Discute-se, entretanto, mais no investimento do tratamento terapêutico de usuários de drogas e menos no combate armado a traficantes é o que determina a atual política de segurança da Inglaterra. O viciado que se submete a tratamento tem a pena reduzida e o traficante que não usa a violência não será importunado, segundo Mike Trace, ex-Czar das Drogas do Reino Unido, que esteve presente na primeira reunião da Comissão Brasileira sobre Drogas e democracia (CBDD), em 21 de agosto de 2009, uma iniciativa do Movimento Viva Rio: discutem-se aspectos relevantes e referentes às drogas nos campos da Farmacologia, História recente e políticas humanas, mais eficazes.

Miséria, Loucura: o Atenuante Psiquiátrico


Pautado na ancestralidade do Código Penal francês, de 1810, a partir do célebre artigo 64, segundo o qual não haveria crime nem delito se o indivíduo estivesse em estado de demência no momento no crime, um exame médico-legal deveria permitir estabelecer uma demarcação dicotômica entre doença e responsabilidade, terapêutica e punição, medicina e penalidade, hospital e prisão. Trata-se de um enunciado que se repetia: ‘a loucura apaga o crime’, de acordo com Michel Foucault em seu curso “Os Anormais”. Em outros termos, quando o patológico entrava em cena, a criminalidade, baseada na lei, deveria desaparecer. A seguir, pelo menos na França, uma nova regulamentação administrativa cristalizou-se essencialmente na célebre lei de 1838, do ponto de vista extramanicomial, referia-se a internação ex officio: um alienado internava-se num hospital psiquiátrico por ordem da administração municipal, mas essa internação tinha que ser motivada por um estado de alienação capaz de comprometer a ordem e a segurança públicas. Deste modo, quando o psiquiatra recebia um doente internado ex officio, ele precisava responder, de um lado, em termos médicos, patológicos, de outro, em termos de perigo, desordem.

Destaca-se certa ‘ordem psiquiátrica’, que procedia do exterior e mostrava de que modo o hospital como instituição só poderia ser compreendido a partir de algo exterior e geral, na medida em que essa ordem se articulava a um projeto absolutamente global, que visava toda a sociedade, em geral, denominado por ‘higiene pública’. Essa ordem psiquiátrica coordenava por si mesma todo um conjunto de técnicas variadas relativas à educação das crianças, à assistência dos pobres, à instituição do patronato operário, passando por trás das instituições tentava-se encontrar globalmente o que foi chamado de ‘tecnologia de poder’, por Michel Foucault em seu livro “Segurança, Território e População”. Assim, ao examinar as relações de poder entre razão e loucura no Ocidente moderno, procurava-se interrogar os procedimentos gerais de internamento e segregação, passando por trás do asilo, do hospital, das terapias e sintomatologias, para se encontrar uma economia geral de poder.

As técnicas de higiene coletiva (que tendem a prolongar a vida humana) ou os hábitos de negligência (que têm como resultado abreviá-la) dependiam do valor atribuído à vida em determinada sociedade, ou seja, a ocidental, a partir do século XIX, porque se tratava de um julgamento de valor que se exprimia nesse número abstrato que sempre foi a duração média da vida humana. Por isso, um traço humano não pode ser normal por ser frequente, mas pode ser frequente por ser normal, isto é, normativo em um determinado gênero de vida, no sentido que lhe foi atribuído pela escola de Vidal de La Blache, conforme Georges Canguilhem em seu livro “O Normal e o Patológico”. Se o homem normal poderia ser caracterizado pelos fisiologistas é porque existem homens normativos – homens para quem ser normal é romper normas e criar novas normas, normas coletivas de vida. Se o europeu pôde servir de norma, isto ocorreu apenas na medida em que seu gênero de vida foi considerado como normativo. Assim, o homem é um animal que consegue variar, por meio da cultura e da técnica, o ambiente de sua atividade. Portanto, a doença não deixa de ser uma norma de vida, mas uma norma inferior, porque não tolera nenhum desvio das condições que a valida, por ser incapaz de se transformar em outra norma. O ‘ser vivo doente’ suporta condições bem definidas e perdeu a capacidade normativa, ou seja, de instituir novas normas diferentes em condições diferentes.

Ainda no século XIX, uma enorme prática da droga ocorria no interior dos hospitais psiquiátricos franceses, por exemplo, o ópio, o clorofórmio e o éter. Moreau de Tours, em 1845, publicou “Du Haschisch et de L’aliénation Mentale”, ele mesmo experimentou o haxixe e pode perceber em sua intoxicação certas fases: passado o momento do sentimento de felicidade, da dissociação de ideias, do erro sobre o tempo e espaço, está-se na ordem da doença mental. Em todo caso, essa utilização da droga e essa assimilação dos seus efeitos com a doença mental deram aos médicos a possibilidade da reprodução da loucura, artificial [por causa da dose de intoxicação por haxixe] e naturalmente [porque nenhum dos sintomas enumerados Moreau de Tour são alheios à loucura]. Enfim, sob o efeito da intoxicação de haxixe, o médico terá a possibilidade de se comunicar diretamente com a loucura por meio da experiência subjetiva e não pela observação exterior dos sintomas visíveis. Até Moreau de Tours, portanto, o psiquiatra ditava a lei à loucura, como indivíduo normal por meio da exclusão: ‘você é louco uma vez que não pensa como eu’. A partir da experiência com o haxixe, o psiquiatra vai poder dizer: ‘sei qual é a lei da loucura, eu a reconheço porque posso reconstruí-la em mim mesmo’.

Foi entre os muros do internamento, onde Pinel e a psiquiatria do século XIX encontraram os loucos; lá os deixaram, por antes vangloriar-se por terem-nos libertado. A partir da metade do século XVII, a loucura esteve ligada a essa terra de internamentos, gesto que designava sua terra quase natural. Até que as reformas antipsiquiátricas, antimanicomiais, revelarem sua força no final do século XX. A prática do internamento foi uma reação à miséria, ao miserável e ao pobre, o homem que não poderia responder por sua própria existência.

Sem-Teto, Poliscar, Wodiczko [NY]


O pobre urbano ocupa as partes menos desejáveis das cidades, incluindo em suas fileiras a família favelada ou quase favelada. A favela urbana é um lugar humilde onde o imigrante recém-chegado geralmente finca o pé e com parcos recursos inicia vida nova. Ela é também o lugar pungente, difícil, lento, de gradativo ajustamento, que caracteriza a aceitação por uma sociedade branca, como a norte-americana, de elementos de diferentes costumes. Seus habitantes se constituem de famílias antigas na favela étnica e recentes migrantes de outras culturas que, por causa de atributos físicos facilmente reconhecidos, acham mais fácil do que seus predecessores acharam construir a sua vida sobre o desajustamento. Afinal, as muralhas do gueto tornam-se mais altas do que nunca.

O fenômeno da favela nos Estados Unidos ainda não tinha sido mapeado ainda na década de 1960, por causa do grande número de cidades com áreas de favelas, a situação precisa dos limites, o extraordinário problema dos dados estatísticos, tudo isso desafiava o geógrafo norte-americano a mapear esse fenômeno sócio-espacial, segundo Gordon E. Reckord em seu artigo “A Geografia do Pauperismo nos Estados Unidos”. Mas para a aplicação de programas federais norte-americanos, inclusive o de combate ao pauperismo, da antiga Lei de Desenvolvimento Econômico, exigia-se identificar especificamente as áreas, regiões atingidas. O pobre urbano, o grau de pobreza nos Estados Unidos circula em torno de uma renda familiar de 3.000 dólares, assim, mais de 54% das famílias que ganhavam menos de 3.000 dólares moravam em zonas urbanas até a década de 1970. Sempre houve uma correlação íntima entre a incidência de pauperismo individual e os aspectos da paisagem citadina, entretanto houve um padrão distinto para a incidência de pauperismo não-urbano nos Estados Unidos a partir década de 1960: [1] várias regiões extensas de baixa renda e grande desemprego separadas umas das outras e afastadas das terras baixas litorâneas [Apalaches, Grandes Lagos, Ozarka, Área Indígena dos Quatro Cantos, Nova Inglaterra setentrional, parte das Montanhas Rochosas]; [2] áreas isoladas menores, dispersas [partes das Grandes Planícies, áreas esparsas do Oeste e do Pacífico Noroeste, áreas vastas de planícies litorâneas e baixadas junto a encostas no Sudeste].

No Greenwich Village de Nova York, a Rivington Street do final do século XX, com suas construções abandonadas, que se tornavam esconderijos de viciados, praticando suas roletas-russas. Ocasionalmente, jovens assistentes sociais passavam pelo local, batendo nas portas ou nos batentes das janelas, oferecendo de graça seringas descartáveis. Se o problema das drogas não sensibilizou os moradores do Village, menos estranheza causou os sem-tetos. Estimou-se que, no centro de Nova York, para cada duzentas pessoas existia uma sem moradia,índice superior ao de Calcutá e abaixo do Cairo, segundo Richard Sennett em seu livro “Carne e Pedra”, embora reconheça que estatísticas sobre desabrigados sejam mutantes, Manhattan somou cerca de trinta mil nos verões, caindo para dez ou doze mil durante o inverno.

Deste modo, o ‘veículo do sem-teto’ tornou uma intervenção distorcida na paisagem urbana, quando Krysztof Wodiczko, artista de Nova York, o exibiu pela primeira vez em 1988, foi testado nas ruas do Lower East Side de Nova York e na Filadélfia, até que criou o ‘Poliscar’ em 1991, com maior precisão na segurança e privacidade, equipado com rádio, câmera externa, monitor de televisão, descrito por Neil Smith em seu artigo “Contornos de uma Política Espacializada”. Trata-se mais do que uma simples obra de arte crítica e de ironia simbólica, o veículo é funcional. O veículo do sem-teto baseia-se numa arquitetura vernacular do carrinho de supermercado e proporciona a o espaço e os meios para facilitar algumas necessidades básicas: transportar, sentar, dormir, abrigar-se e lavar-se. O veículo do sem-teto não é um lar, mas um bem imobiliário ilegal, uma arquitetura provocada pela pobreza, um míssil, a indicação de fuga, recuo, ataque. Sem um lar ou outro lugar para guardar suas posses, afinal para quem foi expulso do espaço privado pelo mercado imobiliário, fica difícil carregar suas posses, então muitos sem-tetos usavam carrinhos de supermercado ou carros de lona do correio para carregar suas coisas, latas e garrafas que poderiam ser trocadas por um níquel. No final da década de 1980, na cidade de Nova York, estimava-se que 70.000 ou 100.000 pessoas eram sem-teto.

Cavalo de Tróia Neoliberal [ONG, OTS]


O saldo geral das consequências ambientais da neoliberalização é quase sempre negativo. Esforços sérios de criar índices de bem-estar humano que incluam o custo das degradações ambientais sugerem uma tendência negativa em aceleração a partir de mais ou menos 1970. A contribuição humana para o aquecimento global disparou e acelerou a destruição das florestas tropicais desde então, o que resultou em graves implicações para a mudança climática e a perda da biodiversidade. Destaca-se que os dois principais culpados pelo aumento das emissões de dióxido de carbono nos últimos anos têm sido as locomotivas da economia global, os Estados Unidos e a China [que aumentaram suas emissões em 45% na última década]. De um lado, a crescente dependência norte-americana de petróleo importado tem óbvias ramificações geopolíticas, de outro lado, a China passou da auto-suficiência na produção de petróleo no final dos anos 1980 para a posição de segundo importador global, atrás dos Estados Unidos. Neste caso, se entramos na zona de perigo, ao ponto de transformar o ambiente global, em particular o clima, impróprio para a vida humana, então uma maior adoção da ética neoliberal seria nada mais nada menos que uma opção mortal.

A insistência neoliberal na privatização dificulta estabelecer acordos globais sobre princípios de gerenciamento de florestas para proteger hábitats valiosos e a biodiversidade, particularmente nas florestas tropicais. Em países mais pobres com substanciais recursos florestais, a pressão para aumentar as exportações e permitir a posse e as concessões a estrangeiros significa que até as proteções mínimas das florestas são retiradas. Com os ajustes estruturais do FMI, por exemplo, cria-se um impacto ainda pior, a austeridade imposta implica aos países pobres ficar com menos dinheiro para administrar suas florestas. Assim, esses países são pressionados a privatizar as florestas e a abrir sua exploração a madeireiras estrangeiras com base em contratos de curto prazo, ultra-exploração de recursos florestais tal como se verificou no Chile pós-privatização. Em geral, quando a austeridade imposta pelo FMI e o desemprego se abater sobre os países, populações excluídas podem ocasionalmente buscar o sustento na terra e promovem certa dilapidação indiscriminada das florestas. O método favorecido são as queimadas, assim as populações sem posses podem juntas com as madeireiras destruir imensos recursos florestais num curto espaço de tempo, o que ocorreu em grande medida no Brasil.

Sabe-se que a trajetória do neoliberalismo está fundamentada no indivíduo e no ativismo dos direitos individuais. Como as pessoas mais necessitadas não possuem recursos financeiros para defender seus próprios direitos, a única maneira de esse ideal poder se articular é com a formação de ‘grupos de advocacia’. A ascensão desses grupos e de ONGs, o chamado Terceiro Setor, acompanhou os discursos sobre direitos, a partir da década de 1980, quando começou a multiplicar esse tipo de discurso. As ONGs em muitos casos vieram preencher o vácuo de benefícios sociais deixado pela saída do Estado dessas atividades, ou seja, trata-se de uma ‘privatização via ONG’, deste modo, conforme David Harvey em seu livro “O Neoliberalismo: História e Implicações”, as ONGs funcionam como ‘cavalos de Tróia do neoliberalismo global’.

A fronteira entre o Estado e o poder corporativo tornou-se cada vez mais porosa. O que resta da democracia representativa é sufocado ou, como nos Estados Unidos, que é legalmente corrompido pelo poder monetário. Como o acesso à justiça é nominalmente igualitário, mas na prática extremamente caro, o resultado é bastante favorável a quem possui o poder do dinheiro. Defendem-se vários direitos como a proteção ao consumidor, os direitos civis ou os direitos dos deficientes, que obtiveram ganhos substanciais mediante esses recursos financeiros, proveniente de um ‘vício de classe’ em decisões judiciais. Deste modo, as organizações não-governamentais e do terceiro setor [ONGs, OTSs] proliferaram-se de maneira notável sob o neoliberalismo, através da crença de que a oposição mobilizada fora dos aparelhos estatais e no interior de uma entidade distinta designada por ‘sociedade civil’, ou seja, a ilusão de uma casa de força política oposicional e de transformação social.

As organizações não-governamentais são, portanto as mais novas forças da ‘sociedade civil’, que operam em diversos níveis, local, nacional e supranacional. As ONGs reúnem um enorme e heterogêneo conjunto de organizações, no começo da década de 1990, constava a existência de mais de 18 mil ONGs no mundo, algumas delas tentavam preencher a função tradicional dos sindicatos, outras davam prosseguimento à vocação missionária de seitas religiosas, em geral, todas procuravam agir em nome de populações não representadas por Estados-Nação. As ONGs são caracterizadas como organizações humanitárias, em cujo mandato que consiste em representar diretamente os direitos humanos globais e universais. Assim, organizações de direitos humanos [como a Anistia Internacional e Americas Watch], grupos pacifistas [como Testemunhas da Paz e Shanti Sena], e as agencias de socorro que combatem a fome e as doenças [como Oxfam e Médicos sem Fronteiras] defendem a vida humana contra a tortura, a inanição, o massacre, a prisão e o assassinato político.

O termo ONG pode ser definido, segundo Michael Hardt e Antonio Negri em seu livro “Império”, como qualquer organização que pretenda representar o povo e trabalhar em seu interesse. As ONGs são, então, algum tipo de sinônimo de ‘organizações do povo’ porque o interesse do povo é distinto do interesse do Estado? É claro por isso que as ONGs, por estarem fora do poder do Estado e geralmente em conflito com ele, são compatíveis com o projeto neoliberal de capital global e o auxiliam. Essas ONGs, enfim se estendem largamente no húmus do biopoder neoliberal, como se fossem os próprios capilares extremos da rede contemporânea de poder. Aqui, neste vasto e universal nível das atividades dessas ONGs, as ações imperiais dos EUA coincidem, num terreno ‘além da política’, ao satisfazer as necessidades da colonização da própria vida.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

TRIPS & Copyright ©


Pressupõe-se que todos os agentes que operam no mercado neoliberal tenham acesso às mesmas informações, assim como se presume que não haja assimetrias de poder ou de informações que interfiram na capacidade dos indivíduos de tomar decisões econômicas racionais em seu próprio benefício. Afinal, agentes melhor informados podem com demasiada facilidade tornar-se ainda mais fortes. Acrescente-se a isso o estabelecimento de propriedade intelectual [patentes], que estimula a ‘busca de renda’. Quem detém os direitos de patente geralmente usa seu poder de monopólio para estabelecer preços de monopólio e evitar transferências de tecnologia exceto se pagarem altos preços. Os capitalistas tiveram de descobrir outras maneiras de criar e preservar seus tão cobiçados poderes monopolistas, portanto as duas principais manobras foram: centralização do capital [busca o domínio por meio do poder financeiro, economias de escala e posição de mercado] e a ávida proteção das vantagens tecnológicas, que substituem as vantagens locais [por meio de direitos de patentes, leis de licenciamento e direitos de propriedade intelectual]. Não por acaso, mas os direitos de patente tem sido alvo de intensas negociações no âmbito da OMC, a partir do acordo chamado TRIPS [Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights Agreement – Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio].

Desde a introdução do TRIP em 1994, previa-se que a aplicação das leis de patentes teria exceções por razões de saúde pública, neste caso, seria permitido emitir licenças obrigatórias para fabricação nacional de remédios e realizar importações paralelas [comprar um produto com patente válida de outro país onde se vende mais barato]. Na Declaração de Doha emitida na reunião de OMC, realizada em 2001, foram ratificadas as exceções existentes. Os países sedes das transnacionais farmacêuticas, Estados Unidos e União Européia, buscam reduzir as aplicações das exceções, reduzindo o número de enfermidades aplicáveis [somente malária, tuberculose e AIDS] e declarando que a Sars, a pneumonia asiática, por ser uma pneumonia atípica, não poderia entrar nessas exceções. Assim, abre-se espaço para avaliação de ocasião, segundo Carlos Walter Porto-Gonçalves em seu livro “A Globalização da Natureza e a Natureza da Globalização”, na medida em que se manipula o termo ‘razões de saúde pública’ que consta no documento TRIPS para que só seja válido em situações de ‘extrema urgência’.

Até pouco tempo atrás os Estados Unidos declararam que somente os 48 países extremamente pobres do mundo, segundo as Nações Unidas, poderia fazer uso do direito às exceções por razões de saúde pública. Sobre a discussão sobre genéricos e patentes, resta o direito dos países do Terceiro Mundo de usar e produzir os remédios que suas populações necessitam, sem depender nem submeter-se às multinacionais tampouco aceitar o sistema de patentes vigente, que não param de saquear recursos e conhecimentos indígenas e camponeses. Os conflitos derivados de diferentes modos de apropriação da natureza têm sido cada vez mais frequentes. A propriedade intelectual do material genético por meio de empresas, dotadas de poder jurídico, que ficam à vontade para reivindicar direitos de propriedade sobre conhecimentos ancestrais de outros povos e culturas. A Organização Mundial sobre Propriedade Intelectual – OMPI – avaliou, em 1995, em nada mais nada menos que 45 bilhões de dólares, o valor dos produtos farmacêuticos derivados da medicina tradicional comercializados no mercado internacional.

Trata-se de uma divisão territorial de poder que põe em jogo as relações desiguais estabelecidas entre um pólo hegemônico [detentor de tecnologia] e um pólo biocultural na Ásia, África e América Latina, ou seja, a busca sistemática do complexo químico-farmacêutico-alimentar para controlar os recursos genéticos, energéticos e da água. O International Cooperative Biodiversity Group [ICBG] coordenado pelo Technical Assessment Group [TAG] é um programa norte-americano que articula decisões militares e projetos de investigação da natureza, além de promover cruzamentos entre universidades e agências de investigação, assim como a composição dos diretórios ou conselhos de administração de organismos aparentemente não governamentais e/ou agências governamentais.

Mas como afirmava Karl Marx em seu livro “Capital”: ‘entre dois direitos, quem decide é a força’. Toda a trama jurídica do neoliberalismo quer garantir os direitos inalienáveis dos indivíduos, ou seja, o direito à propriedade privada e à taxa de lucros, neste sentido, o direito de propriedade tornou-se co-extensivo à apropriação do material genético e se justifica com a patente, com os seus lucros monopolistas exorbitantes. Segue a lista das ‘virtude burguesas’ que David Harvey elencou em seu livro “O Neoliberalismo: História e Implicações”: responsabilidade e obrigações individuais; independência da interferência do Estado; igualdade de oportunidades no mercado e perante a lei; recompensa à atividade empreendedora; cuidado de si mesmo e dos outros; mercado aberto com ampla liberdade de escolhas em termos de contrato como de troca. O sistema de direitos norte-americano, pautado na lógica neoliberal de acumulação do capital, estende-se do direito da propriedade privada do próprio corpo à liberdade de pensamento, de expressão e de manifestação. Aos brados ecológicos, mas adversos, foi exatamente isso que Bush quis dizer quando afirmou que os Estados Unidos dedicaram a estender a esfera da liberdade a todo o globo.

domingo, 6 de setembro de 2009

Tecnologia da Informação [TI] e Sweatshops


A ascensão do capitalismo financeiro pressupôs as chamadas ‘cidades globais’, Manhattan, Tóquio, Londres, Paris, Frankfurt, Hong Kong, que se tornaram ‘ilhas de riqueza e privilégios’, ‘guetos dourados’, como abrigo das finanças e das funções de comando, com imponentes arranha-céus e milhões de metros quadrados de escritórios para essas operações. Entre essas torres, o comércio cria um vasto campo de riqueza fictícia, enquanto os mercados especulativos de imóveis urbanos tornaram-se os principais mecanismos de acumulação. Houve ao lado disso, é inegável, uma extraordinária expansão das tecnologias da informação [TIs]. Na década de 1970 o investimento nesse campo não passava de 20%, mas em 2000 as TIs absorviam 45% dos investimentos. Foi assim que na década de 1990 anunciava-se ascensão de uma ‘nova economia da informação’, conforme David Harvey em seu livro “O Neoliberalismo: História e Implicações”. As tecnologias da informação são muito úteis ao neoliberalismo mais por desempenham atividades especulativas e maximizar o número de contratos no mercado de curto prazo do que para melhorar a produção. As indústrias culturais emergente ganharam também com isso, por usarem as TIs como base da inovação e do marketing de novos produtos, filmes, vídeos, videogames, música, publicidade, exposição.

Essas tecnologias da informação [TIs] foram amplamente estudadas, em termos político-militares, Paul Virilio analisou a ‘bomba informática’ e as ‘estratégias da decepção’ que suscita, sem deixar de redimensionar o ciberespaço como um ponto na trajetória de toda uma máquina de visão que surge como elemento policial na sociedade moderna, no mesmo meio em que se desencadeou a datiloscopia, a fotografia, o cinema e as tecnologias aeroespaciais; em termos histórico-sociais Manuel Castells pesquisou uma espécie de ‘genealogia da informação, desde a invenção do transistor em 1947, com a redefinição dos semicondutores através de velocidades cada vez mais rápidas, isto é, os chips como são usualmente denominados, até que se inventou o microprocessador, um computador com um único chip, em 1971, considerado o pai de todas as tecnologias depois da Segunda Guerra Mundial, auxiliando o impulso da microeletrônica, da optoeletrônica e das telecomunicações; em termos geoeconômicos, em “A Natureza do Espaço”, Milton Santos conceituou o ‘meio técnico-científico-informacional’, estabelecido por uma rede de fluxos que verticalizam as ações com suporte em objetos fixos, verdadeiras próteses nos territórios, capazes de conectar e interceptar ações provenientes de territórios distantes ou até mesmo comandos que partem dos centros de decisão e que precisam chegar aos capilares mais finos do aparelho produtivo, muitas vezes, do outro lado do mundo.

Deste modo, as habilidades informacionais se desenvolveram ao mesmo tempo em que se erigiu um paradoxo na economia neoliberal: a ‘economia informal’ expandiu em todo o mundo, na América Latina estima-se que tenha passado de 29% na década de 1980 chegando a 44% da população economicamente ativa na década de 1990. Desde a década de 1960 quase todos os indicadores globais de saúde, expectativa de vida, moralidade infantil mostram perdas em bem-estar. Foi nesse âmbito, do capitalismo neoliberal, que emergiu a figura prototípica do ‘trabalhador descartável’ ou uma forma moderna do trabalhador semi-escravo, os operários chamados ‘sweatshops’, que se complementa com os riscos à saúde, a exposição a uma ampla gama de substâncias tóxicas, a ausência de fiscalização ou regulamentação das condições de trabalho, imersos na flexibilidade dos mercados. Afinal, o capital é trabalho morto, vampiro que se anima ao sugar trabalho vivo e sua vida se alegra quanto mais trabalho vivo aspirar.

Colapso dot.com [1999]


No âmbito da teoria neoliberal está a necessidade de se construir mercados coerentes para a terra, o trabalho e o dinheiro, mas não como mercadorias, afinal a sua descrição como mercadoria é inteiramente fictícia. O capitalismo não pode seguir sem semelhantes ficções, ou então como compreender os danos produzidos por meio das ‘inundações e secas’ do capital fictício no sistema global de crédito no México, no Chile, Argentina, Leste Asiático. Uma lógica do capital se faz premente, se existem num território excedentes de capital e de força de trabalho que não podem ser absorvidos internamente, torna-se imperativo enviá-los a outras regiões ou nações onde possam encontrar novos terrenos para a sua realização lucrativa, para evitar num só golpe que se desvalorizem. Se o território não possui divisas ou mercadorias para dar em troca, ele precisará encontrá-la, ou receber crédito, neste caso, um território estrangeiro recebe empréstimos com o qual pode comprar as mercadorias excedentes geradas internamente. Desse modo gerou-se certo ‘endividamento territorial’ que se tornou um problema na década de 1980, quando muitos países pobres viram-se impossibilitados de pagar suas dívidas, ameaçando entrar em moratória.

Primeiramente, como definir o ‘capital fictício’? São as instituições estatais e financeiras que detêm o poder de gerar e oferecer crédito, assim elas criam o que se denomina por ‘capital fictício’, ou seja, toda uma trama de ativos em títulos ou notas promissórias desprovidos de suporte real, mas que podem ser usados como dinheiro, de acordo com David Harvey em seu livro “O Novo Imperialismo”. Suponha-se que se crie ‘capital fictício’ num montante mais ou menos equivalente ao capital excedente empregado na produção de petróleo a fim de dirigi-lo a projetos orientados para o futuro, por exemplo, construção de estradas ou educação, desse modo a economia pode revigorar, na medida em que tende a aumentar a demanda por derivados de petróleo por professores e trabalhadores do setor de construção. Se o gasto em ambientes construídos ou melhorias sociais se revelarem produtivos, em outros termos, se facilitarem formas mais eficazes de acumulação do capital mais tarde, os ‘valores fictícios’ certamente serão resgatados. É preciso cuidado, entretanto, o sobreinvestimento em ambientes construídos ou em despesas sociais não está livre de desvalorizações.

A segurança dos Estados Unidos e seu domínio financeiro nos negócios no mundo estavam garantidos na década de 1990, com efeito, houve uma explosão dos valores dos ativos no interior do país. Combinado a ascensão de uma ‘nova economia’ erigida em torno de ganhos de produtividade em uma rede de empresas virtuais, não foi difícil manter a economia norte-americana com crescimento rápido o bastante para arrastar o resto do mundo na obtenção de taxas respeitáveis de acumulação de capital. Assim, o consumismo [moeda de ouro dos norte-americanos] expandia em níveis estonteantes. Entre 1997-98 não tardou o colapso dessa ‘nova economia’ numa amontoado de empresas ‘virtuais’ falidas nos Estados Unidos [uma infinidade de dot.com], com seus escândalos contábeis que revelaram que o ‘capital fictício’ poderia permanecer irresgatável, o que não só solapou Wall Street, mas pôs em xeque o relacionamento entre capital financeiro e produtivo. Acontece que se o mercado consumidor norte-americano entrar em colapso, as economias, que buscam nesse mercado a saída para a sua capacidade produtiva excedente, também entrarão. Não resta dúvida sobre a tenacidade em que os bancos centrais de países como a China, o Japão e Taiwan emprestaram para os Estados Unidos cobrirem os seus déficits, porque se agirem assim, eles fornecem fundos para o consumismo dos EUA.

Dessa forma percebe-se que o capitalismo parece não ter limites exteriores, apenas um limite interior que é o capital em si, limite que não consegue encontrar, por isso o reproduz deslocando-o incessantemente. Como se um processo de desterritorialização fosse do centro para a periferia, dos países desenvolvidos para os subdesenvolvidos, mas não se tratam de exportações provenientes dos setores tradicionais. Destacam-se indústrias e plantações modernas que produzem uma enorme mais-valia nos países subdesenvolvidos, assim o capitalismo esquizofreniza cada vez mais na periferia, de acordo com Gilles Deleuze e Félix Guattari em seu livro “O Anti-Édipo”. Afinal, para eles, a esquizofrenia será o limite exterior do próprio capitalismo, mas ele só funciona se a inibir, substituindo-a pelos seus próprios limites, portanto, a esquizofrenia não é a identidade do capitalismo, mas, pelo contrário, a sua diferença, seu desvio e sua morte. Os fluxos monetários podem parecer perfeitamente realidades esquizofrênicas, contudo só existem e funcionam como tal na medida em que conjurar e repelir essa realidade. O esquizofrênico situa-se no limite do capitalismo, sua tendência desenvolvida, sobreproduto, proletário e anjo exterminador. Há pouco espaço para ficções, já que aqui o real flui, onde a cópia deixa de ser cópia para se transformar no Real e no seu artifício. Assim o esquizofrênico possuidor do capital mais pobre e mais comovente, não deixa de ser um ‘produtor universal’, que não sabe distinguir o produzir e o seu produto, cuja regra impera: a de produzir sempre um novo produzir, de inserir um produzir no produto.