sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Locus Sanguinário da Carnificina Neoliberal


O Estado deixa de existir nesta paisagem, protótipo neoliberal, ou se o Estado existe é para privatizar suas empresas estatais e intervir a favor do mercado de endividamento. Este é o locus que o neoliberalismo pós-moderno garante [tecnopólos, desintegração arquitetônica, não-lugares e natureza da guerra], se a política é a continuação da guerra por outros meios – o meio técnico-científico-informacional não deixa de ser o suporte de uma carnificina irrestrita, reproduzindo capital humano, empilhando-o, talvez, como numa ‘pirâmide’. Quem usufrui dessa paisagem? Uma elite rarefeita de executivos que viajam nos assépticos e linguísticos não-lugares, que se desfragmentam com essa arquitetura móbil e catódica. Quem financia essa paisagem? Uma faixa um pouco mais larga de especialistas [da classe média]: professores, engenheiros, jornalistas, médicos, advogados, etc., que optam pelo suicídio de sobreviver endividados, sob o status de manterem-se heróis – assinando seus cheques como os sobreviventes. Quem construiu esta paisagem? Certamente, estão mutilados ou mortos: por acidentes de trabalho, por doenças omissas [por falta de assistência médica] ou pela fome e falta de crédito, por estar assentados no ‘resto’ do país. Estes são, portanto, os corpos que se alistaram no front pós-industrial, nos meios políticos que favoreceram uma guerra cotidiana, aberta e generalizada – sob a carnificina, a antropofagia neoliberal.

Guerra Aero-orbital, Biotech e Imaterial


A crise atual não foi tão complexa como a que vivemos no período da economia neoliberal, com seu ápice na década de 1990, quando se instituiu tentativas de edificar os alicerces de uma sociedade ‘pós-industrial’. Na América Latina, mais especificamente, no México, Brasil, Chile e Argentina, onde o discurso neoliberal foi sustentado pelas práticas de reajustes financeiros, patrocinados pelas instituições de Bretton Woods [FMI, OMC, Banco Mundial], cujas reformas foram decisivas no controle dos custos da mão-de-obra; nos baixos níveis salariais; repercutindo sobre a produção e contribuindo para uma série de falência de fábricas. No começo da década de 1980, grandes somas da dívida das grandes corporações e bancos comerciais dos países desenvolvidos foram anuladas e transformadas em dívida pública, ou seja, o ônus dessas corporações foi transferido para o Estado, por meio da aquisição de empresas falidas, de acordo com Michel Chossudovsky em seu livro “A Globalização da Pobreza”, bem como se privatizavam, de praxe, aquelas empresas estatais dos setores mais estratégicos.

O endividamento e a pilhagem caracterizam, pois as sociedades pós-industriais, ao mesmo tempo em que compõem os fluxos suspeitos de capital no espaço financeiro local e global, traçando a sua economia de mercado. Trata-se, sobretudo da pertinência da limitação do poder público, eis o nexo da liberdade de mercado, onde se questiona o valor da utilidade do governo e de todas as suas ações, em uma sociedade em que a troca é que determina o verdadeiro valor das coisas.

Nesse mercado, vê-se a que preço os neoliberais reintroduzem o trabalho no campo da análise econômica. Theodor W. Schultz abriu o campo das pesquisas sobre o capital humano em seu artigo “The Emerging Economic Scene and its Relation to High School Education”; na mesma esteira, Gary Becker desenvolveu o seu artigo “Investment in Human Capital: a Theoretical Analysis”, no Journal of Political Economy; Jacob Mincer publicou “Schooling, Experience and Earnings”. O ponto de partida dessas pesquisas sobre o capital humano encontra-se mais nas proposições desenvolvidas por Karl Marx sobre o trabalho, do que no ideário liberal clássico ricardiano: a propósito da venda que o operário faz da sua força de trabalho, quando, para Marx, cria-se um valor, do qual uma parte é-lhe extorquida. Trata-se de um estudo sobre o trabalho como conduta econômica, mas uma conduta praticada e calculada ‘por quem trabalha’, pelo próprio trabalhador, assim as diferenças qualitativas de trabalho passam a possuir um efeito de tipo econômico.

Do ponto de vista do trabalhador, o trabalho comporta um capital, isto é, aptidões, competências, uma verdadeira máquina, mas também é uma renda, um fluxo de salários. Nota-se uma concepção do capital-competência que recebe uma renda-salário, de tal modo que o trabalhador aparece como uma espécie de ‘empresa para si mesmo’, assinalada por Michel Foucault em seu livro “Nascimento da Biopolítica”. A decifração do neoliberalismo está na programação de uma economia feita de ‘unidades-empresas’. Se no liberalismo clássico o Homo Oeconomicus é o homem das trocas, no neoliberalismo, ele é um empresário de si mesmo. Neste rumo, os elementos inatos do capital humano se dirigem aos bons equipamentos genéticos, em termos de constituição, de crescimento, de acumulação, onde se coloca o problema político da utilização da genética; os elementos adquiridos do capital humano se instalam na formação profissional, nos investimentos educacionais e numa análise ambiental da vida da criança, bem como na transmissão do capital humano, traduzida por pessoas que possuem alta renda, logo são pessoas que detêm um capital humano elevado, dessa maneira o seu problema é transmiti-lo aos filhos.

Concebe-se essa análise sobre o capital humano, em sua forma co-extensiva do ‘empresário de si mesmo’, porque acaba correspondendo ao ‘trabalho imaterial’, que retalha a ‘carne’ e molda os corpos na sociedade pós-industrial. O trabalho é imaterial porque produz um bem também imaterial, como serviço, produto cultural, conhecimento ou comunicação; Maurizio Lazzarato definiu e analisou com preciosidade o trabalho imaterial em um artigo intitulado “Immaterial Labor”, Michel Hardt e Antonio Negri articularam o trabalho imaterial com a biopolítica e as sociedades de controle no seu livro “Império”. O uso cada vez mais acentuado dos computadores e o seu funcionamento são um lado reconhecido do trabalho imaterial, o que redefine as práticas e as relações de produção. As máquinas interativas e cibernéticas tornaram-se próteses integradas em nossos corpos e mentes, servindo-nos muitas vezes como lentes de redefinição, mas se ajustaram a produção sob encomenda, just in time, ao criar uma ‘raridade artificial’ dos produtos, ao contrário da produção serial industrial, ou seja, raridade que propulsiona certo alarmismo, em outras palavras, um ‘malthusianismo renovado dos neoliberais’, apontado por Antonio Negri e Giuseppe Cocco em seu livro “Glob(AL)”, a respeito do paradigma pós-industrial inalcançado por países periféricos, em especial, latino-americanos.

Com o auxílio de máquinas cibernéticas, o capital humano [o empresário de si mesmo] ganhou velocidade, instantaneidade, e tornou-se o vetor que pulsa e dá vitalidade às sociedades pós-industriais. Mas nessas sociedades informacionais, o homem acaba por definhar entre as senhas e as trocas flutuantes de capital, por fim ele padece endividado, conforme Gilles Deleuze em seu “Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle”. É a miséria que o capitalismo neoliberal lhe destinou, a despeito do abandono do sedentarismo fabril, que revela, em geral, a crise das instituições modernas que moldavam ou fabricavam as subjetividades nas escolas, prisões, hospitais etc. O ‘homem novo’ pós-industrial sonha em ser um ‘nômade pós-moderno’, um yuppie em turismo ou em viagens a negócio, mas em seu trabalho cada vez mais flexível, torna-se mais sedentário que nunca: com acesso delivery; entregas rápidas; consultas médicas em casa; educação à distância; prisão domiciliar; etc. Enfim, trabalha-se em casa, mais até do que se trabalharia na fábrica, sob rígido controle – à espera de mensagens via fax, em e-mails e nos celulares. Enquanto a informação navega à deriva entre pixels nos monitores, o ‘confinamento domiciliar’ é ao mesmo tempo o prejuízo e a promessa do trabalho imaterial. Percebe-se, portanto um confinamento generalizado, que redesenhou a geoeconomia planetária – a natureza do exército que recruta soldados e operários sempre se confundiu, mas esse foi um tempo em que se inauguravam as primeiras estratégias da guerra biotecnológica e aero-orbital.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Guerra Narcótica Andina [new biotech IV]


A War On Drug está acionada faz tempo, como uma guerra biotecnológica, como uma guerra surda, ela ecoa legítima pelas linhas dos jornais e pelos mass media em geral, guerra imperceptível por ser banalizada demais. Mas a picada tropical na Colômbia, com a implantação das bases militares norte-americanas e seu reforço no governo Barack Obama, tem desestabilizado o ordenamento territorial no sul das Américas, onde as FARC é o novo bode expiatório do terror. A codificação dessa guerra está também definida, e como todo código depende, assim definido por Gilles Deleuze em seu artigo “O Pensamento Nômade”, das leis, das instituições e dos contratos, basta avaliá-los. As leis [a Lei 11.343 de 2006 e o artigo 12 da Lei 6.368/76] fazem a triagem entre os usuários, dependentes de um caso médico, e os traficantes, prisioneiros de um caso criminológico; as instituições se dividem, logo, entre a penitenciária e o hospital psiquiátrico; os contratos se resumem no ‘Plano Colômbia’, um detalhe que atribui ainda visibilidade ao Consenso de Washington.

Mecanismo de terror que articula uma engrenagem jurídico-psiquiátrica ao ordenar os territórios nacionais e urbanos sul-americanos, em geral, do mundo, ao materializar uma ‘máquina de guerra’ do narcotráfico contra o Estado de Direito, moldura liberal. O narcoterrorismo, como produto de uma sujeição social, passa pelo mesmo ‘mecanismo de terror’ qualificado no século XIX, através do par discursivo jurídico-psiquiátrico: todo esse continuum, que tem seu pólo terapêutico e seu pólo judiciário responde a quê? Ao perigo, ou seja, vai ser para o indivíduo perigoso [nem exatamente doente nem propriamente criminoso] que esse conjunto institucional está voltado, segundo Michel Foucault em seu curso “Os Anormais”. A militarização do território será o produto dessa engrenagem discursiva que alia o saber biomédico à instituição penal. A aglutinação do narcoterrorismo corresponde à justaposição dos discursos legais, quanto ao crime, e das práticas médicas, referente ao uso da droga. Em termos estratégicos, o foco da pontaria desse arsenal bélico se ajusta horizontalmente, para os usuários de droga e a sua captura numa teia psiquiátrica, e verticalmente, para os as redes do narcotráfico e a arapuca criminológica. O par jurídico-psiquiátrico se aviva como um tipo novo de exame médico-legal, na praxe dessa guerra cega:

[1] Médico-psiquiátrico – O uso disciplinar de certo número de drogas, como um fenômeno médico, surgiu no século XVIII: o ópio, nitrito de amila, clorofórmio, éter, etc. Tratava-se de uma experiência específica dos efeitos da droga relacionada aos processos da doença mental em que se perceberam fases na intoxicação com haxixe, por exemplo. Experiências que davam ao médico a possibilidade de uma reprodução natural e artificial da loucura. O médico passa a se comunicar com a loucura não mais apenas pela observação, mas através da experiência direta com a droga, reconstituindo os acontecimentos e os processos característicos da loucura. A experiência psicotrópica de Moreau de Tours, do psiquiatra como indivíduo normal, faz o médico ditar leis à própria loucura, na medida em que a consumia e definia os liames de sua manifestação. Em suma, trata-se de uma prática da reprodução da loucura atestada na prática psiquiátrica do século XIX e praticada intensamente no século XX. Em 1967, altas dosagens de LSD (300-500g) foram utilizadas em mais de 3300 sessões psicodélicas na Europa e Estados Unidos, com o intuito de decifrar o comportamento dos indivíduos intoxicados, de acordo com Stanislav Grof em seu artigo intitulado “Variedades das Experiências Transpessoais: Observações da Psicoterapia com LSD”. Tudo isso para atestar a reprodução artificial da loucura sob os efeitos das drogas, sublinha-se: reprodução artificial da doença mental.

[2] Jurídico-criminológico – A produção e a comercialização de drogas é um crime patente em todas as sociedades do mundo, em todos os países, onde isto não é comum, em pouco tempo o será. O ineditismo sul-americano está na legitimação do ataque norte-americano à produção de drogas. Atacar a produção na fonte em países como Bolívia, Colômbia, Equador e Peru. Em 1989, a National Drug Control Strategy foi criada pela administração de Bush mantendo, com efeito, o lema Guerra ás Drogas: a mensagem da política estadunidense antidrogas soava cristalina, o tráfico de psicoativos ilegais passará a ser visto pelo governo dos EUA como um alvo primordial de sua segurança nacional, conforme Rafael Duarte Villa, em seu artigo “Os Países Andinos: tensões entre realidades domésticas e exigências externas”. Nos Chapare da Bolívia e no Alto Huallaga do Peru cultivavam mais de 80% das folhas de coca que alimentavam a produção de cocaína no mundo, o que justificou a política going to the source (“ir até a fonte”). A Estratégia Andina foi o resultado do eixo central da Guerra às Drogas, desde a década de 1990. Apontam-se, entretanto, três aspectos sobre essa estratégia: fortalecimento das instituições políticas dos países-chave na oferta de drogas ilícitas; assessoramento e operacionalização de unidades militares e policiais para o combate ao circuito da droga aos países andinos para desmantelar cartéis da droga.

A segurança do território sul-americano [dos Andes às favelas nas metrópoles brasileiras] tem sido ordenada, de um só golpe, juridicamente como ‘proteção social’ ao terror, ao medo e à violência, mas também como ‘higiene pública’, sob uma ordem médica, quando o narcótico e a droga estão em questão: a noção de perigo, de indivíduo perigoso, que permite justificar e fundar teoricamente, discursivamente, a existência de uma cadeia ininterrupta de instituições médico-legais. O delinqüente e o toxicômano aqui não obedecem a espaços diferentes, não se distinguem em absoluto, masse apresentam sob a imagem aglutinada do narcoterrorismo, pequenas subjetividades cotidianas se sucedem no dia-a-dia com os rostos sobrepostos dos ‘usuários’, dos ‘soldados’, dos ‘aviões’ e dos ‘gerentes’ do narcotráfico. Em uma dupla zona de perigo social, enfim, o território sul-americano se articula com a segurança tanto no sentido da ‘proteção social’ (discurso da norma, jurídico, político, criminológico) quanto na direção da ‘higiene pública’ (discurso patológico, médico, biológico, psiquiátrico). De um lado, em torno da infração ao plantio e ao beneficiamento da droga, como se verifica nos Andes, e de outro, do consumo dos narcóticos, isto é, da droga como produtora artificial de loucura, tal como se percebe no tráfico a varejo nas metrópoles brasileiras, impulsionado por quadrilhas como o CV e o PCC, do crime de sua distribuição à discrição psiquiátrica dos usuários. Assiste-se de “O Bicho de Sete Cabeças” dirigido por Laís Bodanzky à “Cidade de Deus”, roteiro escrito por Bráulio Mantovani: as mídias não se calam, enquanto o monstro cotidiano se rostifica. A propaganda liberaliza: o usuário financia o tráfico de drogas, mas o Real obscuro se inscreve no verdadeiro Terror - os países produtores de coca na América do Sul são os produtores de petróleo que fazem dos EUA menos dependentes do Oriente Médio [!?].

O Débil bio-juris-midiático [new biotech III]


Quem se surpreenderia ao se deparar com a proposição de que o terrorismo não teria efeito algum sem o pânico que produz, ou de que o crime e as mortes, que o terror causa, seriam apenas um detalhe se não fosse a difusão do medo no meio social. Daí a necessidade dos mass media na prática terrorista. O nosso dia-a-dia está repleto de mortes que se reduzem aos leitos hospitalares e às celas penitenciárias, mais pelo excesso que pela vacância. Essa morbidade poderia ser apenas dados estatísticos se caso não contribuísse para demonstrar à famigerada ‘ingovernabilidade’. A biomedicina alcança as células invisíveis de nossos corpos e os vírus e bactérias imperceptíveis que vagueiam em torno de populações inteiras; a criminologia se imiscui à psicologia, à genética e à biologia para tentar responder o que não tem resposta; os mass media aterrorizam o telespectador, que consome vacinas, cercas elétricas, em nome da proteção onde se produz por mais e mais medo. O discurso médico e o discurso criminológico acoplam-se à insegurança, um reles cientificismo no cerne de uma micro-geopolítica na trama urbana de todos os países, cujas objetivas da imprensa ampliam e difundem o medo, propagam o pânico e proliferam o terror. Eis, pois a tríplice engrenagem médica-jurídica-midiática em ampla vitalidade liberalizada em nosso país:

[1] Biomedicina – Sabe-se que a tecnologia de poder se bifurca para colonizar os corpos, de um lado, e regulamentar a população, de outro, ou seja, o que Michel Foucault [em sua obra, principalmente nos cursos “Em Defesa da Sociedade” e “Segurança, Território, População”] designou por Anatomopolítica e por Biopolítica, respectivamente. Em primeiro lugar, a acomodação os mecanismos de poder sobre os corpos individuais, com a vigilância e o treinamento – a disciplina – foi mais fácil de realizar e por isso ocorreu mais cedo, já no final do século XVII. Em segundo lugar, no final do século XVIII, houve uma acomodação sobre os fenômenos globais, de população, com processos biológicos ou bio-sociológicos das massas humanas. Este é o momento da preocupação dos homens, seres vivos, com o seu meio, e seus efeitos brutos, geográficos, climáticos, hidrográficos: os problemas dos ‘pântanos’ ligados a existência de epidemias, a partir das sucessivas práticas de exclusão da lepra, de quarentena na peste e de inoculação da varíola. Tratam-se então de duas séries: a série corpo – organismo – disciplina – instituições; e a série população – processos biológicos – mecanismos regulamentadores. Percebem-se as condições necessárias para se constituir um biopoder, quando a possibilidade é uma técnica e politicamente dada ao homem, não só de organizar a vida, mas de fazer a vida proliferar, de fabricar algo vivo, no limite, algo monstruoso, de fabricar vírus incontroláveis e universalmente destruidores.

[2] Criminologia – Se a lei se arma contra os que a transgridem, respondendo sempre com ameaças, agora ela vai funcionar como norma, integrando o aparelho judiciário aos aparelhos médicos e administrativos. Por isso as especulações acerca da analítica do poder não podem passar sem considerar o elemento pelo qual incide a preocupação mais salutar da modernidade e que conjuga estas duas séries de aplicação do poder. Quais foram as práticas e conceitos biomédicos e psicológicos que suplementaram o poder de punir? Para se compreender a origem da criminalidade as categorias psicológicas do autor do delito já eram estudadas, o que passou a considerar menos o crime (o ato) do que a compreensão do próprio infrator. O surgimento do “criminosos nato”, categoria do positivismo-naturalista de Cesare Lombroso, que empreendeu o estudo científico do delinqüente e da gênese do delito sob o aspecto da antropologia criminal, considerando os fatores bio-sociais, ou seja, fatores endógenos (biológicos) e exógenos (sociais). O Serviço de Biopsicologia na rede carcerária buscava preencher uma lacuna deixada aberta pela criminologia, o verdadeiro estado da alma do delinqüente, enfatizado por Luiz Ângelo Dourado. Este serviço biopsicológico subdividia-se em alguns setores: da identificação e coordenação ao exame da personalidade; elaboração e síntese dos resultados.

[3] Mass media – A guerra psicológica e terrorista põe em circulação este quarto poder, domínio sobre as mídias, assim analisado por Paul Virilio em “Máquina de Visão”: transformado na última forma da guerra psicológica, o terrorismo impõem aos diversos antagonistas um novo domínio dos mídias. Militares e serviços secretos ampliam seu controle. Os próprios terroristas, invertendo os papéis, se entregam a um documentarismo selvagem, oferecendo à imprensa e à televisão as fotos aviltantes de suas vítimas, freqüentemente repórteres ou fotógrafos – ou ainda, fazendo o levantamento em vídeo dos locais, o local de seus futuros crimes. As imagens fotográficas, videográficas e também a televisão, como meios de comunicação assumem a dupla função de comunicar e guerrear. Fala-se sobre um “arsenal de armas de comunicação. Mas a relação entre guerrear e comunicar é recíproca, entendendo-se por isto tanto comunicar guerreando quanto guerrear comunicando.

A respeito da pauta midiática sobre os crimes [passionais, milicianos, do narcotráfico, dos furtos] e as pragas [epidemias, pandemias, doenças incuráveis, caos hospitalares] não resta dúvida do terror e da insegurança que propagam, pelo desserviço à ingovernança. Mas por que o mesmo discurso de poder que é eficaz em demarcar a origem do mal é sempre tão impotente em saná-lo? As “Paisagens do Medo”, descrita por Yi-Fu Tuan, geógrafo chinês, ou da “Fobópole”, enunciada por Marcelo Lopes de Souza, não estão tangentes a esses problemas, circulam no centro dessas questões, cada um a seu modo, mas nenhum dos dois com tanto assombro como em “O Jardineiro Fiel” de Fernando Meirelles, em seu drama-biotech na África. Neste levante liberal [após a crise econômica mundial e o emblemático 11 de setembro] que redesenha por todos os lados o campo da guerra midiática, psicológica e bacteriológica, resta saber qual a estratégia articular para minar o que é apenas medo e detectar quais são os verdadeiros monstros.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Patologia e Catástrofe [new biotech II]


Analisar a política como a continuação da guerra talvez seja tão cruel quanto reconhecer o seu inverso, ou seja, a guerra como a continuação da política por outros meios, decerto nem mesmo as ‘trincheiras’ mudem, mas provavelmente, de Carl von Clausewitz a Michel Foucault, modifiquem as paisagens, os recontros, porque os soldados são facilmente reconhecidos. Não só no Brasil, mas no mundo, sabe-se que há dois campos de confronto: em termos políticos, o liberal e o desenvolvimentista, ou econômicos, o agro-exportador e o urbano-industrial. Há indústria e mercado financeiro em ambos os casos, mas a lógica se inverte, quando a indústria financia o mercado de valores [urbano-industrial] e quando a especulação endivida a indústria [agro-exportador]. Esclarece-se que os ‘fundamentalistas’ deixam de ser um campo específico, porque eles se imbricam ora num ora noutro campo. O teatro de operações da guerra é binário, portanto, não ternário, sendo assim apenas sob uma ilusão de óptica.

As tropas se dividem no campo político da guerra, de um lado, os profissionais liberais se estendem, majoritariamente, no continuum jurídico-biológico-informacional, de outro, a prole de operários. Definem-se, pois, as estratégias dos liberais [tucano-democratas] nessa escalada às eleições de 2010, ao mesmo tempo discutem-se as posições de seus ‘recrutas' em seu continuum. O gênio da guerra liberal – a biomedicina, especificamente, e a biologia, em geral, apelam para o discurso científico e alcança um duplo alvo: o corpo e o ambiente, a patologia e a catástrofe, enquanto a engenharia genética fica em latência e perde para a epidemiologia e para a ecologia. Questiona-se por objetividade, então, o que está por trás dos pobres obesos que não estava sob a fome endêmica? O que está por trás das enchentes e das catástrofes que não estava por trás da seca? Óbvio, a industrialização. A vilã clássica do meio ambiente sempre foi a indústria, desde os mais remotos desequilíbrios às insistentes emissões de carbono. Do mesmo modo, a obesidade é um efeito perverso da ingestão de comida industrializada. Não há remédio, não há manejo, há desindustrialização. A partir deste discurso biológico genial, pautado nas ciências ‘duras’, os advogados, juristas, legislarão e punirão na medida em que os meios de comunicação legitimarão os atos jurídicos diante as massas.

Os recentes episódios ambientais [legislação amazônica, enchentes de sul a nordeste do país] e epidemiológicos, biomédicos [da gripe A ao antitabagismo em São Paulo] que aterrorizam o Brasil são as táticas mais evidentes dessa estratégia liberal ‘ubuesca e grotesca’, para usar termos foucaultianos, que se auxiliam dos mass media, como elemento relativamente novo e diferencial desse ‘arsenal arcaico’ da direita global, para as eleições brasileiras.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

O Terror Grotesco Liberal [new biotech I]


Liberalismo ou neoliberalismo caracterizam-se por alguns elementos fundamentais, dentre os quais o Estado de Direito [a forma da lei]; o enforcement of law [o enforço, o reforço da lei]; o homem econômico e seu anverso homo penalis; o capital-humano; a espoliação financeira; e, em último caso, a própria colonização da vida. O projeto ainda frustrado da biogenética e suas manipulações e clonagens, chegou a ser a quintessência da última varredura do neoliberalismo no globo terrestre. A biotecnologia e a bomba informacional foram a maquinaria desenvolvida no período de maior abrangência do neoliberalismo, entre as décadas de 1970 a 1990. Paul Virilio foi quem analisou, em sua obra e em detalhes, a articulação tecnológica da bomba informacional e da bomba genética, cuja estratégia previa um mundo de teleatores [radares, satélites, informações, cibernética, telemática, etc.] articulados a clones [seres dessubjetivados, protótipos genéticos] – a composição da paisagem ideal dos neoliberais.

Em termos políticos, Michel Foucault decifrou as estratégias políticas neoliberais e denunciou a biopolítica como a nova forma liberal de governar os vivos: a própria vida como o campo abrangente da política neoliberal; a obra de Giorgio Agamben segue essa mesma esteira: a relação entre a política e a vida nua. Não nos assusta, contudo, perceber como os neoliberais no Brasil, ainda resistem com seu discurso de poder-saber envolvendo os dramas ecológicos e de saúde. As questões ecológicas e de saúde pública propostas pelos tucanos e democratas [os representantes neoliberais brasileiros mais ortodoxos] não circulam em outro ambiente senão o do nascimento da biopolítica.

Neste caso, afora os problemas ambientais ou ecológicos, discute-se a trama estratégica da articulação entre medicina e criminologia, perceptível nesse levante dos tucanos pró-Serra em sua campanha política. Certamente, sabe-se que uma das manifestações geopolíticas mais frequentes ou o estopim mais evidente de uma guerra, é a tomada do poder de uma nação: guerras aconteceram por causa da tomada de um poder ou por causa da retirada de um presidente eleito do seu posto, o paradoxo da democracia à la USA, quando se torna autoritária. Imaginem que desordem mundial aconteceria se o governo brasileiro voltasse às mãos dos tucanos? Que desalinhamento ocorreria entre as nações, nos blocos regionais de poder? Reconhecer uma eleição cotidiana como um ‘mote’ para a guerra ainda não é um evento muito divulgado, mas essencialmente conhecido. Os neoliberais perdem as eleições como quem perde uma guerra, fazem piquetes, se matam nas ruas. Politicamente, travestidos pelo Estado de Direito criam leis e, inevitavelmente, as articulam com a vida, por exemplo, tal quando um juiz impõe aos indivíduos uma série de medidas corretivas, de readaptação, de reinserção – o duro ofício de punir vê-se alterado para o belo ofício de curar. Do sem-número de profissionais liberais que se conhece, médicos e advogados são os que exercem um poder cada vez mais emaranhado, que se traduz: ali, onde havia de se curar, há punição; lá onde havia de ter punição, há cura, ou melhor, um objeto que não é legalmente uma infração nem patologicamente uma doença.

Trata-se de duas estratégias eleitorais [de guerra] dos neoliberais, de alcance local e global, que envolvem as práticas médicas e as práticas jurídicas: o antitabagismo de Serra e o terrorismo da gripe A [influenza]. [1] Estratégia local: O antitabagismo em São Paulo é a reprodução do processo de exclusão da lepra no século XVI e da loucura a partir do século XVIII. Eliminar uma doença simplesmente pela exclusão. Excluir simplesmente através de uma lei, os médicos não se preocupam em reconhecer o tabagismo como doença, não se levanta a hipótese de curá-lo, apenas são coniventes com a lei que incide sobre a exclusão do doente, afinal o tabagismo é uma doença, infelizmente, um bode expiatório de uma política de saúde, em São Paulo, que não teria efeito, sem essa panacéia arcaica de simplesmente tirar a visibilidade da doença, como fizeram contra os leprosos e os lunáticos das 'cidades ideais' européias desde o Renascimento; [2] Estratégia global: a gripe A [H1N1] é uma pandemia que resulta do objetivo último da política neoliberal, ou biopolítica, cujas artimanhas se concretizam na medida em que se controlam os fluxos, a circulação de pessoas, bens, vírus, transportes, etc. com o auxílio dos bufões da OMS. Trata-se de uma gripe qualquer? Que mata tanto ou pouco mais que qualquer outra mutação do vírus da gripe, que ainda precisa da morosidade do processo de desenvolvimento das vacinas; e se realmente fosse uma doença grave?

Não há cura, não há vacina, proliferam-se as mortes, então o que a medicina reproduz? O discurso médico reproduzido não se redunda apenas numa tática de abandono e exclusão, mas, por não curar ou se ver impotente, prolifera-se uma espécie de terror, o que Michel Foucault denominou, em seu livro "Os Anormais", por ‘terror ubuesco’ ou ‘soberania grotesca’: trata-se de uma engrenagem arcaica visível nas estruturas políticas de nossas sociedades ocidentais, desde Nero, Heliogabalo até as disciplinas modernas, que se define pela ‘maximização do poder a partir da desqualificação de quem os produz’. Os médicos são acionados para lidar com uma patologia ao mesmo tempo que se vêem desqualificados para curá-la, não tendo outra opção deixam morrer ou, no caso do tabaco, excluem, escondem mais do que desenvolvem terapias; eles são capazes de até definir a nosografia, representam os gráficos e as formas dos vírus, mas não curam. Terror grotesco, portanto, que articula a maquinaria dos profissionais liberais, cujo passo da medicina é redesenhado pelas ordens legais – o jurídico a serviço da biomedicina. Essa estratégia política, datada, reconhecida há séculos continua a proliferar as suas pragas, acelerando-se com a desinformação [cada médico prolifera um discurso distinto, embaraçoso, desconexo, enquanto os juristas incidem leis certeiras]. Meios de comunicação, médicos e advogados colocaram a sua máquina liberal para funcionar, em suas estratégias revelam a arcaica forma de poder do liberalismo, não tendo onde se apegar – tomam para si a própria vida.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

'Ilhas' no Pearl e no Yangtzé


Na tradição revolucionária marxista-leninista, julgava-se necessário organizar a acumulação primitiva como premissa dos programas de modernização de países que ainda não passaram pela iniciação ao desenvolvimento capitalista, o que foi perceptível nas acumulações oriundas da coletivização forçada da agricultura soviética e chinesa. Essa acumulação primitiva na China procurou inseri-la no capitalismo global, como participante ativa, ao desencadear uma taxa de crescimento econômico [9,1% em 2003] e de desenvolvimento público capaz de absorver grande parcela de excedentes de capital do mundo. Essa drenagem de capitais excedentes para a China vai ser catastrófica para a economia norte-americana. As exportações e importações asiáticas para a China têm tido um espantoso crescimento, ao mesmo tempo em que o mercado de consumo chinês cresce a um ritmo acelerado, além de ser o segundo maior importador de petróleo, atrás apenas dos Estados Unidos.

A situação da China encontra-se, entretanto, repleta de perigos: [1] uma perda líquida de empregos na produção desde 1995, devido à falência de empresas em cidades e lugarejos nos ‘cinturões de ferrugem’, que circundam Beijing e Xangai; [2] a falta de energia elétrica e a instabilidade das relações de trabalho; [3] as desigualdades regionais e de classe aumentam, mesmo com as políticas oficiais destinadas a combatê-las, enumerou David Harvey em seu livro “O Novo Imperialismo”. Não resta dúvida de que os investimentos realizados no país estão puxando boa parte da economia global, segundo proposições econômicas vastamente documentadas, investimentos desse tipo são bem mais eficazes em estimular o crescimento agregado do que o consumismo. A transição do poder para a China e para a Ásia, de modo geral, está antes, portanto, em aceleração do que em redução de velocidade. Assim, a China se tornou um recipiente de investimentos externos, o valor líquido passou de 5 milhões de dólares em 1991 a cerca de 50 bilhões de dólares em 2002.

Desde, 1998, os chineses procuram absorver seus vastos excedentes de trabalho mediante investimentos financiados por dívidas em megaprojetos, como a represa para desviar a água do Yangtzé para o rio Amarelo; novos sistemas de trens subterrâneos e vias expressas construídas em cidades importantes; propõe-se implantar 13 mil quilômetros de novas ferrovias; desenvolve-se um entroncamento de alta velocidade entre Xangai e Beijing, e um que vai para o Tibete; infra-estruturas urbanas estão sendo reformadas em toda parte. Trata-se de investimentos estruturais que conectam diversos pontos do território chinês, com a finalidade de redimir as ‘ilhas’ de desenvolvimento no país, tal como nos mapas das cidades européias medievais que criavam ‘ilhas’ de direitos burgueses no meio das relações de produção feudais, outro exemplo disso, são os postos comerciais das companhias das Índias Orientais ou da bacia do rio Hudson. As zonas de empreendimento [destinadas a investimentos estrangeiros] atualmente estabelecidas na China, não deixam de ser esse tipo de pequenas ‘ilhas’, capazes de gerar impulsos que chegariam a engolfar toda a nação: o delta do rio Pearl e o baixo Yangtzé [Xangai] contêm dinâmicos centros de poder na China, que dominam em termos econômicos, não necessariamente político, todo o resto do país.

O Kuomintang e a Longa Marcha


O comunismo chinês nunca foi uma subvarieda-de do comunismo soviético nem parte do sistema satélite russo. O comunismo chinês era social e nacional. Por um lado, o aspecto social que alimentou a revolução comunista foi a pobreza e a opressão em que se encontrava o povo chinês, inicialmente dos trabalhadores nas grandes cidades costeiras do centro e do sul da China [Xangai, Hong Kong, Cantão], e, depois, do campesinato, que formava 90% da vasta população do país. Por outro lado, o elemento nacional no comunismo chinês se realizou por meio dos intelectuais de origem das classes alta e média, que lideraram a maior parte dos movimentos políticos chineses do século XX, mas principalmente através do sentimento, generalizado entre as massas chinesas, de que os ‘bárbaros estrangeiros’ não representavam efeito positivo nem para os chineses nem para a China como um todo. Sabe-se que a China foi atacada, dividida e explorada por ‘estados estrangeiros’ até meados do século XX. Dentre essas invasões, a resistência à conquista japonesa foi a que mais promoveu os comunistas chineses, de agitadores sociais a líderes e representantes de toda a China. O Partido Comunista teve essa vantagem sobre seus rivais, principalmente o Partido do Kuomintang.

Os dois partidos obtinham sua base política nas cidades mais avançadas do sul do China e os seus líderes provinham do mesmo tipo de elite intelectuais, entre os comunistas, de camponeses e operários, e, no Kuomintang, entre os comerciantes. Ambos os partidos derivaram de movimentos antiimperialistas da década de 1900, reforçados pelo ‘Movimento de Maio’: levante nacional de estudantes e professores em Pequim após 1919. Sun Yat-sen, o líder do Kuomintang, era um patriota, democrata e socialista, que contava como apoio soviético e achava o modelo bolchevista, de partido único, o mais adequado para seus anseios; mas, após a sua morte, em 1925, os comunistas se tornaram uma grande força, graças a ligação soviética, e, em parte, por partilhar do grande avanço pelo qual a República estendeu sua influência à metade da China, que Sun não conseguia controlar. Chiang Kai-chek, sucessor de Sun Yat-sen, jamais estabeleceu um controle completo sobre o país, embora, em 1927, rompesse com os russos e buscasse eliminar os comunistas chineses, que voltaram sua atenção para o campo e, assim, travaram uma ‘guerra de guerrilha’ contra o Kuomintang.

A ‘guerra de guerrilha’ define-se como uma forma de atividade de resistência essencialmente rural – ‘guerrilha’ é uma expressão que não fazia parte do vocabulário marxista, pelo menos até a Revolução Cubana, em 1959. Os bolcheviques usavam o termo partisan, como padrão regular dos movimentos inspirados pelos soviéticos durante a Segunda Guerra Mundial, salientou Eric Hobsbawm em seu livro “Era dos Extremos”. Na China, essa nova estratégia – ‘guerra de guerrilha’ – foi pioneira e usada por alguns comunistas, depois que o Kuomintang, sob a liderança de Chang Kai-chek, se voltou contra seus ex-aliados comunistas em 1927. O principal defensor dessa estratégia foi Mao Tsé-tung, que acabou tornando-se líder da China comunista, porque reconheceu tanto as regiões da China que estavam fora do controle de qualquer administração central quanto o uso de táticas de guerrilhas como parte tradicional do conflito social chinês. Trata-se da estratégia de Mao para triunfar a revolução pela imobilização de incontáveis milhões de habitantes da zona rural contra os bastiões do status quo. Os exércitos maoístas recuaram para o extremo noroeste, na Longa Marcha, que compôs a estratégia rural de Mao Tsé-tung e se estendeu até ao seu exílio em Yenan. Enquanto o Kuomintang controlava o país até a invasão japonesa em 1937, a longa marcha de Mao Tsé-tung, em meados da década de 1930, punha em jogo pelo menos duas relações, de acordo com Hardt e Negri, em seu livro "Multidão": a conjugação de bandidos e rebeldes dispersos, para formar algo semelhante a um exército nacional [força centrípeta], e a instalação de grupos revolucionários, do Sul ao norte da China, para propagar a revolução [força centrífuga].

O exército do Kuomintang não conseguiu impedir a invasão japonesa nas cidades costeiras, em contrapartida os comunistas mobilizaram uma resistência de massa nas áreas ocupadas. Quando tomaram a China, em 1949, ao varrer as forças do Kuomintang numa breve guerra civil, os comunistas se tornaram o governo legítimo para todos os chineses, assim forjaram uma organização nacional que levou a política central do governo até as aldeias mais remotas do país.

Um Camponês de Mao


Define-se o camponês como aquele que trabalha a terra e, em geral, produz primordial-mente para o seu próprio consumo, mas ele é proprietário ou tem acesso às terras e aos equipamentos necessários e, ao mesmo tempo, está parcialmente integrado ou subordinado a um sistema econômico mais amplo.

Mao Tsé-tung reconheceu que era preciso, para a categoria ‘campesinato’ ter sentido, dividi-la em três tipos, todas em função da propriedade da terra: os camponeses ricos [donos de amplas extensões de terra e de bons equipamentos, além de contratar o trabalho de outros]; os camponeses intermediários [donos de terras e equipamentos suficientes, contam apenas com o trabalho de sua própria família]; os camponeses pobres [arrendam terras ou são meeiros, em geral, vendem o seu trabalho a outros]. Essa divisão criaria, para Mao, uma tendência centrífuga em cada extremidade: no topo, os camponeses ricos possuem propriedades suficientes para empregar outros e, na base, os camponeses pobres pouco diferem dos trabalhadores agrícolas, pois possuem propriedades em quantidade insuficiente. Os camponeses intermediários por serem mais discretos e independentes, nesse processo, praticamente desapareceriam, sendo levados para um ou outro lado da clivagem: uns poucos ricos se apropriariam de mais terras, enquanto a maioria dos camponeses pobres tenderia a ser excluídos das formas tradicionais de posse da terra. Para Mao Tsé-tung o campesinato é fundamentalmente passivo, por isso deve se aliar ao ‘sujeito revolucionário’ político – o proletariado industrial, e por ele ser liderado.

A revolução chinesa foi na realidade uma revolução conduzida com o campesinato: o foco político de Mao voltou-se para o campesinato não como ele era, mas como ele poderia ser. O projeto maoísta buscava transformar politicamente os camponeses. Superaram sua passividade e, ao longo do processo revolucionário, os camponeses tornaram-se comunicativos, cooperativos e articulados como sujeito coletivo ativo. O sentido primordial das guerrilhas e das lutas camponesas do projeto maoísta, em suma, não se orientou para a defesa da terra, em vez disso, transformou essas lutas na própria vida social chinesa, como afirmaram Michael Hardt e Antonio Negri em seu livro “Multidão”. Paradoxalmente, a vitória da revolução camponesa coincidiria com o fim do próprio campesinato, como categoria política distinta, ou seja, o objetivo político final do campesinato era, aos poucos, destruir-se como classe. Enfim, a figura do camponês tenderia a desaparecer, assim como a figura do operário industrial, do trabalhador do setor de serviços e de todas as demais categorias separadas, assim as lutas de cada setor tenderiam a se transformar na luta de todos.

Os camponeses elevaram a sua produção de grãos em mais de 70%, entre 1949 e 1956, em cuja ‘Revolução Popular’ Mao Tsé-tung assinalou as três metas principais: a coletivização da agricultura camponesa [1955-7]; o ‘grande salto avante’ da indústria [1958]; os dez anos de Revolução Cultural, que se alastrou até a morte de Mao [1976]. A ‘Crença Maoísta’ residia na capacidade de transformação pela vontade do povo, quando ele está disposto a ser transformado e, portanto, a participar, criativamente, com toda a engenhosidade tradicional chinesa.

Han e Confucionismo


Reconhece-se a existência de uma única e distinta civilização chinesa, desde 1500 a.C., ou de duas civilizações chinesas, uma sucedendo a outra, nos primeiros séculos da era cristã. Trata-se de uma civilização ‘sínica’, denominada por alguns estudiosos, que tem no Confucionismo um dos seus principais componentes, o que descreve uma cultura comum da China e das comunidades chinesas do Sudeste Asiático, bem como as culturas com ela relacionadas do Vietnã e da Coréia. A ‘ética confuciana’ ressalta os valores de autoridade, hierarquia, subordinação dos direitos e interesses individuais, importância do consenso, evitar ‘confrontação’, ‘salvar a face’ e, de modo geral, a supremacia do Estado sobre a sociedade e da sociedade sobre o indivíduo.

No início do século XX, alguns intelectuais chineses identificaram o Confucionismo como a fonte do atraso chinês, em contrapartida, no final do século XX, líderes políticos e cientistas sociais chineses louvaram o Confucionismo como a fonte do progresso chinês. Na década de 1980, o governo chinês começou a promover interesse pelo Confucionismo, proclamando-o ‘a’ corrente principal da cultura chinesa, conforme Benjamin L. Self em seu artigo “Changing Role for Confucianism in China”, no New York Times, agosto de 1991. Assim, as atitudes tomadas pelo Confucionismo contrastam com a primazia da liberdade, igualdade, democracia e individualismo, concebidos pelos norte-americanos, além de sua propensão para desconfiar de governos e opor-se à autoridade. Desse modo, mesmo quando os líderes chineses queriam justificar a democracia ou o autoritarismo, procuravam legitimá-los em sua própria cultura e não em concepções ocidentais importadas. Um nacionalismo foi promovido através deste regime, o Han, que contribuiu para a neutralização das diferenças lingüísticas, regionais e econômicas em 90 % da população chinesa e, com efeito, não deixou de sinalizar as diferenças étnicas não-chinesas, constituídas por 10 % da população da China, mas ocupam 60 % de seu território.

O nacionalismo Han fornece as bases de oposição ao cristianismo, às organizações cristãs e ao seu proselitismo, que atrai talvez 5 % da população chinesa, como alternativa após o colapso maoísmo-leninismo. Percebe-se, dessa forma, que a China é um país dividido por ‘linhas de fratura’, termo cunhado por Samuel Huntington em seu livro “O Choque de Civilizações”. Linhas de fratura entre os chineses Han, budistas tibetanos, turcos muçulmanos. A China abrangeu, ao longo de sua história, uma ‘Zona Sínica’, que incluía a Coréia, o Vietnã, as ilhas de Liu Chiu e, às vezes o Japão; uma ‘Zona Asiática Interior’, de não-chineses [manchus, mongóis, uigures, turcos e tibetanos] controlados por motivos de segurança; e, uma ‘Zona Exterior’ de bárbaros, que pagariam impostos e reconheciam a superioridade da China.

A civilização sínica contemporânea estrutura-se de modo semelhante: o núcleo central da China Han; as províncias periféricas que fazem parte da China, mas que detêm considerável autonomia; províncias que legalmente fazem parte da China, mas com grande parte da população chinesa [Tibete, Xinxiang]; sociedades chinesas que têm probabilidade de vir a ser parte da China, segundo determinadas condições [Hong Kong, Taiwan]; um Estado predominantemente chinês [Singapura]; populações chinesas influentes na Tailândia, Vietnã, Malásia, Indonésia e Filipinas; e sociedades não-chinesas [Coréia do Norte e do Sul] que, mesmo assim, compartilham muito da cultura confuciana chinesa. Durante a década de 1950, a China se definir como aliada da União Soviética, após a ruptura sino-soviética, ela passou a se ver como líder do Terceiro Mundo, ou melhor, contra ambas as superpotências. De um modo oscilante, a China se alinhou com os Estados Unidos durante a década de 1970 e, depois, passou para uma posição equidistante na década de 1980. Com o fim da competição das superpotências, a China redefiniu o seu papel nas questões mundiais e fixou duas metas: tornar-se a defensora de sua cultura e retomar sua posição histórica como potência hegemônica na Ásia Oriental.
A partir da década de 1990, a ‘Grande China’ tornou-se uma realidade cultural, econômica e política, que tem crescido rapidamente. Os chineses foram responsáveis pelo espetacular desenvolvimento econômico das décadas de 1980 e 1990 –, na China continental, nos Tigres [dos quatro, três eram chineses] e nos países do Sudeste Asiático, cujas economias estavam dominadas pelos chineses. Um aumento de poder é visível entre as civilizações asiáticas, com a China se apresentado como a sociedade com maior probabilidade de desafiar o Ocidente [EUA e Europa] pela influência mundial.