domingo, 6 de setembro de 2009

Colapso dot.com [1999]


No âmbito da teoria neoliberal está a necessidade de se construir mercados coerentes para a terra, o trabalho e o dinheiro, mas não como mercadorias, afinal a sua descrição como mercadoria é inteiramente fictícia. O capitalismo não pode seguir sem semelhantes ficções, ou então como compreender os danos produzidos por meio das ‘inundações e secas’ do capital fictício no sistema global de crédito no México, no Chile, Argentina, Leste Asiático. Uma lógica do capital se faz premente, se existem num território excedentes de capital e de força de trabalho que não podem ser absorvidos internamente, torna-se imperativo enviá-los a outras regiões ou nações onde possam encontrar novos terrenos para a sua realização lucrativa, para evitar num só golpe que se desvalorizem. Se o território não possui divisas ou mercadorias para dar em troca, ele precisará encontrá-la, ou receber crédito, neste caso, um território estrangeiro recebe empréstimos com o qual pode comprar as mercadorias excedentes geradas internamente. Desse modo gerou-se certo ‘endividamento territorial’ que se tornou um problema na década de 1980, quando muitos países pobres viram-se impossibilitados de pagar suas dívidas, ameaçando entrar em moratória.

Primeiramente, como definir o ‘capital fictício’? São as instituições estatais e financeiras que detêm o poder de gerar e oferecer crédito, assim elas criam o que se denomina por ‘capital fictício’, ou seja, toda uma trama de ativos em títulos ou notas promissórias desprovidos de suporte real, mas que podem ser usados como dinheiro, de acordo com David Harvey em seu livro “O Novo Imperialismo”. Suponha-se que se crie ‘capital fictício’ num montante mais ou menos equivalente ao capital excedente empregado na produção de petróleo a fim de dirigi-lo a projetos orientados para o futuro, por exemplo, construção de estradas ou educação, desse modo a economia pode revigorar, na medida em que tende a aumentar a demanda por derivados de petróleo por professores e trabalhadores do setor de construção. Se o gasto em ambientes construídos ou melhorias sociais se revelarem produtivos, em outros termos, se facilitarem formas mais eficazes de acumulação do capital mais tarde, os ‘valores fictícios’ certamente serão resgatados. É preciso cuidado, entretanto, o sobreinvestimento em ambientes construídos ou em despesas sociais não está livre de desvalorizações.

A segurança dos Estados Unidos e seu domínio financeiro nos negócios no mundo estavam garantidos na década de 1990, com efeito, houve uma explosão dos valores dos ativos no interior do país. Combinado a ascensão de uma ‘nova economia’ erigida em torno de ganhos de produtividade em uma rede de empresas virtuais, não foi difícil manter a economia norte-americana com crescimento rápido o bastante para arrastar o resto do mundo na obtenção de taxas respeitáveis de acumulação de capital. Assim, o consumismo [moeda de ouro dos norte-americanos] expandia em níveis estonteantes. Entre 1997-98 não tardou o colapso dessa ‘nova economia’ numa amontoado de empresas ‘virtuais’ falidas nos Estados Unidos [uma infinidade de dot.com], com seus escândalos contábeis que revelaram que o ‘capital fictício’ poderia permanecer irresgatável, o que não só solapou Wall Street, mas pôs em xeque o relacionamento entre capital financeiro e produtivo. Acontece que se o mercado consumidor norte-americano entrar em colapso, as economias, que buscam nesse mercado a saída para a sua capacidade produtiva excedente, também entrarão. Não resta dúvida sobre a tenacidade em que os bancos centrais de países como a China, o Japão e Taiwan emprestaram para os Estados Unidos cobrirem os seus déficits, porque se agirem assim, eles fornecem fundos para o consumismo dos EUA.

Dessa forma percebe-se que o capitalismo parece não ter limites exteriores, apenas um limite interior que é o capital em si, limite que não consegue encontrar, por isso o reproduz deslocando-o incessantemente. Como se um processo de desterritorialização fosse do centro para a periferia, dos países desenvolvidos para os subdesenvolvidos, mas não se tratam de exportações provenientes dos setores tradicionais. Destacam-se indústrias e plantações modernas que produzem uma enorme mais-valia nos países subdesenvolvidos, assim o capitalismo esquizofreniza cada vez mais na periferia, de acordo com Gilles Deleuze e Félix Guattari em seu livro “O Anti-Édipo”. Afinal, para eles, a esquizofrenia será o limite exterior do próprio capitalismo, mas ele só funciona se a inibir, substituindo-a pelos seus próprios limites, portanto, a esquizofrenia não é a identidade do capitalismo, mas, pelo contrário, a sua diferença, seu desvio e sua morte. Os fluxos monetários podem parecer perfeitamente realidades esquizofrênicas, contudo só existem e funcionam como tal na medida em que conjurar e repelir essa realidade. O esquizofrênico situa-se no limite do capitalismo, sua tendência desenvolvida, sobreproduto, proletário e anjo exterminador. Há pouco espaço para ficções, já que aqui o real flui, onde a cópia deixa de ser cópia para se transformar no Real e no seu artifício. Assim o esquizofrênico possuidor do capital mais pobre e mais comovente, não deixa de ser um ‘produtor universal’, que não sabe distinguir o produzir e o seu produto, cuja regra impera: a de produzir sempre um novo produzir, de inserir um produzir no produto.

Fraudes à la Ponzi


Quando um sistema histórico está em crise, move-se em duas direções, segundo parece para Immanuel Wallerstein: para preservar a estrutura hierárquica do sistema-mundo que existe ou para tentar reduzir, se não eliminar, as desigualdades. Quando o sistema mundo entra em uma espécie de ‘crise estrutural’ é porque se encontra no meio de um período caótico, onde correm bifurcações e que num período de tempo o sistema atual deixará de existir e um novo surgirá. Teoricamente, um sistema promove projeções lineares das suas tendências mais específicas, mas elas atingem limites, após os quais o sistema passa a se encontrar longe do equilíbrio, assim começa a bifurcar-se. Exatamente nesse ponto que se diz que um sistema está em crise, passando por um período caótico, no qual para se estabilizar procura uma ordem nova e diferente, ou seja, estabelecer a transição de um sistema para outro. Questiona-se também a produção de crises como meio de se retardar essa transição ou passagem. No ponto em que gerar crises significa não mais transitar nem mais bifurcar, mas conservar a ordem vigente. De que modo então compreender as incessantes manipulações de crises que tanto caracterizaram a orquestração da economia neoliberal?

Para além das bolhas especulativas e muitas vezes fraudulentas que caracterizam boa parte da manipulação financeira neoliberal, há um processe que consiste em lançar ‘a rede da dívida’ como recurso de acumulação por espoliação. Diz-se que a criação, administração e manipulação de crises evoluíram para uma arte da redistribuição de riquezas dos países pobres para os países ricos. Os Estados Unidos assumiram os trilhos da acumulação global de capital e abriram o caminho à pilhagem das economias periféricas, quando o complexo Tesouro dos Estados Unidos-Wall Street-FMI se especializava nessa prática. As crises da dívida ocorriam em países isolados na década de 1960, tornaram-se mais frequentes nas de 1980 e 1990, quando raros eram os países que não foram atingidos. Essas crises chegaram a assumir um caráter endêmico em regiões como a América Latina. Mas percebe-se que são crises, mas crises orquestradas, administradas e controladas para racionalizar o sistema e para redistribuir ativos.

Trata-se, por exemplo, daquilo que os neoliberais costumam chamar de ‘deflação confiscatória’, quando as crises financeiras causam transferência de propriedade e de poder a quem mantém intactos seus ativos e tem condições de criar crédito, de acordo com David Harvey em seu livro “O Liberalismo: História e Implicações”. Mas acrescente um sem número de operações fraudulentas com ações; esquemas de Ponzi [tipo ‘pirâmides’, em que se pagam rendimentos altíssimos (lucro) a alguns investidores a partir do dinheiro pago por investidores subsequentes, sem envolver receita gerada por algum negócio real, Charles Ponzi, fraudador italiano, inventou um desses esquemas nos EUA]; destruição planejada de ativos por meio da inflação; a dilapidação de ativos por meio de fusões e aquisições agressivas; promoção de níveis de endividamento que reduziram populações inteiras à escravidão; assalto aos fundos de pensão; manipulação de créditos, títulos e ações. Paisagem fraudulenta, pois essa é a natureza do atual sistema financeiro capitalista. Há o perigo, entretanto de as crises saírem do controle ou de se generalizarem, até mesmo de que surjam revoltas contra o próprio sistema que as cria. A crise acaba por gerar uma dissimetria entre possíveis revoltas e as fraudes do capital.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

‘NeoCONS’: Militarismo, Maioria Moral


O Partido Republicano norte-americano, no final da década de 1970, precisava de uma sólida base eleitoral para colonizar de fato o poder, foi assim que buscaram uma aliança com a ‘direita cristã’. Embora os integrantes mais antigos dessa ‘direita cristã’ não tenham sido politicamente ativos no passado, o partido político fundado em 1978, a ‘Maioria Moral’ de Jerry Falwey, mudou o quadro sócio-político por completo nos Estados Unidos, apelando ao nacionalismo cultural da classe trabalhadora branca e ao seu ‘ressentido senso de virtude moral’. Reconhece-se uma ‘base política’ mobilizada pela religião, mas também pelo nacionalismo cultural, mediante o racismo, a homofobia, ao antifeminismo disfarçado e nem por isso ostensivo. Há muitas provas de que os cristãos evangélicos [que não ultrapassam 20% população dos EUA], constituintes do núcleo da ‘maioria moral’, aceitaram a aliança com os grandes negócios e o Partido Republicano como meio de promoção do seu programa evangélico-moral. Percebeu-se um movimento intelectual neoconservador bem financiado, congregados em torno de Irving Kristol e Norman Podhoretz, além da revista Commentary, que conferiam credibilidade as teses que esposaram a moralidade e os valores tradicionais.

Os neoliberais, assim como os ‘neocons’ [neoconservadores] que os promoveram, foram ambos favoráveis ao poder corporativo, à iniciativa privada e à restauração do poder de classe. O neoconservadorismo foi compatível com o programa neoliberal de governança pela elite, desconfiança à democracia e manutenção das liberdades de mercado. Os ‘neocons’ remodelaram práticas neoliberais em dois sentidos: [a] na preocupação com a ordem como resposta aos caos de interesses individuais e [b] na preocupação com uma moralidade inflexível como cimento social necessário à manutenção da segurança do corpo político. O caos dos interesses individuais pode se sobrepor à ordem, ou seja, a anarquia do mercado, da competição e do individualismo sem peias gera uma situação cada vez mais ingovernáveis. Diante disso, algum grau de coerção parece ser necessário à restauração da ordem. Os neoconservadores são aqueles que enfatizam assim a militarização como remédio para o caos dos interesses individuais. Nos Estados Unidos, isso desencadeou ‘o estilo paranóico da política americana’, no qual a nação se descreve como sitiada e ameaça constantemente por inimigos internos e externos.

O neoconservadorismo, portanto não é algo novo, e desde a Segunda Guerra Mundial tem sua residência particular num poderoso complexo industrial-militar que tem seus interesses escusos na permanente militarização, afirmou David Harvey em seu livro “O Neoliberalismo: História e Implicações”. O fim da Guerra Fria evocou a origem da ameaça à segurança norte-americana, mas o islamismo e a China surgiram como os dois candidatos concorrentes externos. Internamente, o Ramo de Dravidiano incinerado em Waco, os movimentos de milicianos que deram apoio ao bombardeio de Oklahoma, as revoltas populares que se seguiram ao espancamento de Rodney King em Los Angeles e, por fim, os distúrbios que estouraram em Seattle em 1999, todos se tornaram alvos de uma vigilância e um policiamento mais intenso. Não resta dúvida de que o neoconservadorismo existe como um movimento não declarado contra a ‘permissividade moral’ que o individualismo costuma gerar. Assim, ele procura restaurar um sentido de propósito moral, alguns ‘valores de ordem superior’ que constituam o centro estável do ‘corpo político’. Esses ‘valores morais’ traduzem-se na coalizão específica construída na década de 1970 nos EUA, entre os interesses dos negócios que se dispunham a restaurar o poder de classe da elite em contraposição a uma base eleitoral de certa ‘maioria moral’, branca, de trabalhadores, ressentida.

Trata-se de ‘valores morais’ centrados no nacionalismo cultural, na retidão moral, no cristianismo [em geral de orientação evangélica] nos valores familiares e em questões relativas ao ‘direito à vida’, bem como no antagonismo a novos movimentos sociais pautados pelo feminismo, direitos homossexuais, a ação afirmativa e ao ambientalismo. Nos Estados Unidos, essa afirmação de ‘valores morais’ tem se apoiado fortemente em apelos aos ideais de nação, religião, tradição cultural e coisas do tipo. Recobre-se um dos mais perturbadores aspectos da neoliberalização – a curiosa relação entre Estado e nação. Decerto que o Estado neoliberal precise de algum tipo de ‘nacionalismo’ para sobreviver. O Estado mobilizara o nacionalismo em seu esforço de sobrevivência, ao operar com agente competitivo no mercado mundial e estabelecendo climas favoráveis para os negócios. Grosso modo, a competição inevitavelmente produz vencedor e vencidos por uma posição na luta global, o que em si torna-se uma fonte de orgulho nacional.

‘Neocons’ se distinguem do ‘fundamentalismo’ apenas porque, geralmente, como aparece na mídia, esse termo se reduz a variedade de formações sociais que se referem exclusivamente ao ‘fundamentalismo islâmico’. De todo modo, os neoconservadores não deixam de ser uma espécie de ‘fundamentalismo norte-americano’, pois tanto se apresentam como movimentos contra a modernização social quanto estimulam a recriação do que imaginam ser uma formação social do passado, com base em textos sacros, de acordo com Michael Hardt e Antonio Negri em seu livro “Império”. A agenda social cristã nos EUA tem centrado esforços na recriação do núcleo familiar estável e hierárquico, voltando-se contra o aborto e o homossexualismo, sobretudo orientada por um projeto de supremacia branca e pureza racial. É verdade, pureza racial e integridade familiar nuclear [heterossexual] nunca existiram nos Estados Unidos. A ‘família tradicional’ que lhes serve de fundamento ideológico é simplesmente um ‘pastiche de valores e práticas’ que derivam mais de programas de televisão do que de qualquer experiência histórica real.

Ao interrogar a evolução cultural norte-americana desvelam-se dois princípios norteadores: a concepção puritana da vida e o sucesso da sociedade capitalista, até porque as grandes inovações nos EUA, até a década de 1940, foram o jazz e o cinema totalmente integrados a indústria de massa. A ‘modernização’ da cultura americana ocorreu ao pós-guerra, quando houve o colapso das pequenas cidades, a emergência de um novo urbanismo, a explosiva expansão universitária, a emergência dos intelectuais de Nova York como árbitros culturais, o aumento de uma audiência de classe média e, sobretudo com o predomínio protestante no modo de vida norte-americano.

Retrata-se a passagem do Western – misterioso, melodramático, mas repleto de aventuras, numa narrativa que equilibra os personagens, a ação, o enredo, os ambientes aos interesses comerciais –, aos formatos dramatúrgicos articulando o gosto popular à narrativa, assim a audiência encontrou satisfação e segurança emocional numa ‘forma familiar’, familiaridade que decorre da repetição sempre de um novo exemplo de uma experiência passada, mas com um sentido a se esperar, segundo John Cawelti em seu livro “Adventure, Mystery and Romance”. Resulta daí um casal de ‘classe média baixa’ assistindo televisão. Ele, um funcionário qualquer, e ela, dona-de-casa. Malvestidos, ela parece mais velha do que ele, mas todos os dois são reprimidos, mas a TV os transporta para fora de casa, conversam sobre o trivial. Evidentemente pessoas como essas só poderiam possuir uma vida medíocre. Casal ‘careta’ e ‘conservador’. Eles estão assistindo a um telejornal.

Crisis, Delirium, NY

As batalhas urbanas surgidas na década de 1970 corresponderam à crise do poder de classe capitalista, neste caso, a ‘crise fiscal’ de Nova York foi paradigma. Havia anos que a reestruturação capitalista, a desindustrialização e a rápida suburbanização vinha corroendo a base econômica da cidade, deixando boa parte do centro da cidade empobrecida. Daí resultou uma insatisfação social explosiva de grande parte de populações marginalizadas na década de 1960, esboço do que viria a ser designado por ‘crise urbana’, algo semelhante que ocorria em muitas cidades norte-americanas. Uma solução ocorreu com generosos recursos federais, facilitando a expansão do emprego público e dos serviços públicos. Mas no começo da década de 1970, Richard Nixon simplesmente declarou que a crise urbana havia acabado. Assim ele pôde assinalar, com efeito, a redução da ajuda federal.

Desde então, uma acelerada recessão ampliou a distância entre receitas e despesas no orçamento da cidade de Nova York, cada vez maior devido aos descontrolados empréstimos tomados durante anos. No começo, as instituições financeiras supriram essa carência, mas a partir de 1975, um grupo de banqueiros, liderado por Walter Wriston do Citybank, recusou-se a rolar a dívida e acabou levando a cidade à bancarrota técnica. O resgate que se seguiu envolveu a construção de novas instituições que assumiram a administração do orçamento da cidade e tinham total liberdade de gestão, privilegiando em primeiro lugar o pagamento dos acionistas, enquanto o resto empregava-se me serviços essenciais. O efeito disso foi derrubar as aspirações dos sindicados, congelar salário, cortar emprego público, manter alguns serviços sociais básicos [educação, saúde] e impor cobranças de taxas aos usuários: o sistema universitário da CUNY – City University of New York – passou a cobrar a partir de então. Felix Rohatyn, o banqueiro que negociou o acordo entre a cidade, o Estado e as instituições financeiras talvez não tivesse em mente a restauração do poder de classe, mas a única maneira que ele pôde ‘salvar’ a cidade foi satisfazer os banqueiros e reduzir o padrão de vida da maioria da população de Nova York. Mas, lamentavelmente, foi exatamente a restauração do poder de classe que isso tudo acarretou.

O desemprego alcançou a faixa de 10% em meado da década de 1980, tornou-se propício o momento de atacar todas as formas de trabalho organizado e retirar todos os seus privilégios. A transferência da atividade industrial das regiões Nordeste [a de Nova York] e Meio-Oeste para os estados não-sindicalizados e ‘bons para o trabalho’ do Sul, quando não para o México e o Sudeste Asiático, foi se tornando uma prática padrão dos neoliberais. A desindustrialização das regiões industriais centrais antes sindicalizadas [como no ‘cinturão da ferrugem’] minou o poder do trabalho, de acordo com David Harvey em seu livro “O Neoliberalismo: História e Implicações”. As corporações podiam ameaçar com o fechamento as fábricas, mesmo com o risco de greves. O controle do trabalho e a manutenção de um grau elevado de exploração não deixavam de ser componentes essenciais da neoliberalização, acrescente-se a isso o papel do Estado, que tende a reduzir o financiamento em áreas de assistência à saúde, ensino e assistência social, deixando segmentos crescentes da população ao empobrecimento.

Nesta esteira neoliberal dissiparam muitas conquistas da classe trabalhadora em Nova York, boa parte da infra-estrutura social e física da cidade começou a deteriorar por falta de investimento e de manutenção, como por exemplo, o sistema de transporte subterrâneo, assim a atmosfera de Nova York começava a ficar tenebrosa e opressiva. O governo da cidade, o movimento trabalhista municipal, a classe trabalhadora do município, em geral, todos foram privados de grande parte do poder que detinha. Assim a classe trabalhadora de Nova York aceitou a nova realidade, mesmo com relutância. Buscava-se na realidade criar um clima favorável aos negócios como prioridade em Nova York. Dessa forma, recursos públicos passaram a estimular a criação de infra-estruturas adequadas aos negócios, em particular no setor de telecomunicações. Paulatinamente, instituições de elite da cidade se mobilizaram para vender uma nova imagem de Nova York, mas agora como centro cultural e turístico, sob o famoso logotipo que se inscreve ‘I Love New York’.

As elites dirigentes apoiaram a abertura do campo cultural a toda modalidade de diferentes correntes cosmopolitas, a partir da exploração narcisista do ego, da sexualidade, da identidade, como leitmotiv da cultura burguesa urbana. A ‘Nova York Delirante’, da frase de Rem Koolhaas, apagou a memória coletiva da Nova York democrática, onde as elites até aceitaram a diversificação dos estilos de vida e o aumento de nichos de consumidores, mas para tornar-se o epicentro da experimentação cultural e intelectual pós-moderna. Com isso, os banqueiros reconstruíram a economia municipal em torno de atividades financeiras, serviços auxiliares como assistência jurídica e meios de comunicação, mas principalmente da expulsão dos moradores pobres, que se tornou proeminente e lucrativa, através dos empreendimentos imobiliários destinados à classe média [‘gentrificação’] e a ‘restauração de bairros decadentes’.

A administração da cidade passou a ser concebida cada vez mais como entidade empreendedora, em vez de social ou democrática. A Nova York de classe trabalhadora e étnico-imigrante foi lançada às sombras e foi afetada pelo racismo e por uma epidemia de crack na década de 1980. Ela deixou muitos jovens mortos, encarcerados ou sem teto, e os sobreviventes foram mais tarde assolados pela epidemia de AIDS surgida na década de 1990.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Wall Street Chaos


O surgimento de um complexo Wall Street-Tesouro nos Estados Unidos, capaz de controlar instituições como o FMI e projetar um vasto campo de forças financeiro pelo mundo, mediante uma rede de instituições financeiras e governamentais, teve enorme influência sobre a dinâmica do capitalismo global em anos recentes. Esse poder central só pôde agir como agiu porque o resto do mundo formava uma rede e estava integrado num arcabouço estruturado de instituições financeiras e governamentais. O quadro geral que surgiu daí foi de um mundo entrelaçado por fluxos de capital excedente com conglomerados de poder político e econômico em pontos-chave [Nova York, Londres, Tóquio] que buscavam desembolsar ou absorver os excedentes de modo produtivo ou usar o poder especulativo para livrar o sistema da sobreacumulação mediante a promoção de crises de desvalorização em territórios vulneráveis, conforme David Harvey em seu livro “O Novo Imperialismo”. Foram os pobres das regiões rurais do México, da Tailândia e do Brasil que mais sofreram com as depreciações causadas pelas crises financeiras das décadas de 1980-90.

Os Estados Unidos se constituíram numa economia rentista em relação ao mundo e numa economia de serviços no plano doméstico. Internacionalmente, o capital financeiro mostrou-se cada vez mais volátil e predatório. Surtos de desvalorização e destruição de capitais ocorriam, em geral pela imposição dos programas estruturais do FMI, como antídoto para a incapacidade de manter a fluidez da acumulação do capital por meio da espoliação. As lutas de classes começaram a se concentrar ao redor desses ajustes estruturais, das atividades predatórias do capital e da perda de direitos gerada pela privatização. Mas as crises da dívida em diversos países foram úteis para reorganizar as relações sociais de produção internas em cada país, o que foi favorecendo a penetração dos capitais externos. Regimes, mercados de produtos e empresas domésticos floresceriam obrigados à absorção por empresas norte-americanas, japonesas e européias. Evidenciou-se em toda parte resistências em relação ao poder complexo Wall Street-Tesouro-FMI. Entretanto emergiu um movimento mundial ‘antiglobalização’, metamorfose de um movimento de ‘globalização alternativa’, com forte apoio de base. ‘Movimentos populistas’ contra a hegemonia norte-americana partem de potências, antes docilmente subordinadas, na Ásia e América Latina: quando se ameaça transformar uma resistência de base numa série de resistências lideradas pelo Estado à hegemonia norte-americana.

Como foi impressionante o intenso apoio aos Estados Unidos, que chegou a 2,3 bilhões de dólares por dia no começo de 2003. Qualquer outro país do mundo que apresentasse semelhante condição macroeconômica estaria a essa altura submetido à austeridade e aos procedimentos estruturais do FMI. Mas o FMI são os Estados Unidos. Acontece que a guerra no Iraque não custou muito mais que 200 bilhões de dólares. O petróleo iraquiano poderia ser expropriado para pelo menos financiar os custos de uma guerra. Tudo indica, entretanto que seria preciso vários anos para que a produção petrolífera do Iraque voltasse ao nível capaz de financiar, ao menos teoricamente, tanto o custa da guerra como o redesenvolvimento do país. A única opção dos EUA foi aprofundar suas dívidas para financiar a guerra. Esses déficits com propósitos militares lançaram a sua economia numa recessão sem precedentes. A perda de empregos e de proteções sociais [como os seguro-saúde e mesmo os fundos de pensão] reverbera em todos os setores da economia norte-americana. A economia da cidade de Nova York, por exemplo, acha-se hoje em situação bem pior do que no período da crise de 1973-5, e seu déficit orçamentário parece caminhar para lançá-la em falência técnica dentro de bem poucos anos.

Bolhas, Papéis, Títulos... Capital Fictício


Para que um fenômeno fosse capaz de fortalecer o poder financeiro dos Estados Unidos, no sentido de forçar a abertura de mercados para fluxos de capital, financeiros, e impor outras práticas neoliberais, Richard Nixon acionou uma dupla estratégia, durante o período da crise de 1973: aumentar o preço do petróleo e desregulamentação financeira. Quando se concedeu aos bancos norte-americanos o direito exclusivo de reciclar petrodólares, acumulados na região do Oriente Médio, com efeito, recentrou a atividade financeira global nos EUA e subsidiou as reformas internas do sistema financeiro naquele país para que tentar salvar Nova York de sua crise econômica local. Resta um forte regime financeiro governado por Wall Street/Tesouro dos Estados Unidos, que chegaram a deter poderes de controle sobre instituições financeiras globais, como o FMI, e desfazia e refazia muitas economias estrangeiras mais fracas por meio de manipulação de crédito e práticas de gerenciamento de dívida.

Não resta dúvida de que o poder financeiro tenha trazido muitos benefícios diretos aos Estados Unidos, mas os efeitos em sua estrutura industrial foram nada menos que catastróficos. As ondas de desindustrialização que ocorreram no interior dos EUA afetavam, no começo, a produção de bens de baixo valor, como os têxteis, mas passo a passo atingiram a escala do valor adicionado em setores como o aço e os estaleiros e alcançaram as importações de alta tecnologia, especialmente vindas de regiões do leste e sudeste asiático. Enfim, os Estados Unidos foram cúmplices do aniquilamento de suas manufaturas ao desencadear os poderes financeiros por todo o globo. Por volta de 1980, ficou claro que os Estados Unidos tornaram-se uma complexa economia que expunha sua produção num ambiente global e competitivo. A única maneira de os norte-americanos sobreviver era alcançar a superioridade na produtividade e no desenvolvimento dos problemas, em suma, os Estados Unidos já não eram hegemônicos.

O neoliberalismo como doutrina político-econômica, em linhas gerais, data do final da década de 1930, e se iniciou como um conjunto de pensamento ativo, ainda que inicialmente ignorado nos Estados Unidos, desenvolvido por pesquisadores como Friedriech von Hayek, Ludwig von Mises, Milton Friedman. Somente após a crise [1929] ter-se tornado mais aguda é que o movimento neoliberal foi levado mais a sério, como alternativa ao arcabouço keynesiano e de outras estruturas mais centradas no Estado. Talvez tenha sido Margaret Thatcher, em união com Ronald Reagan, quem transformou toda a orientação da atividade do Estado, que abandonou a busca do bem-estar social e passou a apoiar ativamente as condições do ‘lado da oferta’ da acumulação do capital. Daí em diante, o FMI e o Banco Mundial mudaram seus parâmetros de política da noite para o dia, em poucos anos a doutrina liberal fez sua curta e vitoriosa marcha sobre as instituições e passou a dominá-las. Como a privatização e a liberalização do mercado foram o mote do movimento neoliberal, a ‘expropriação das terras comuns’ transformou-se numa política do Estado, segundo David Harvey em seu livro “O Novo Imperialismo”. Ativos de propriedade do Estado ou destinados ao uso partilhado com a população foram, em geral, entregues ao mercado para que o capital sobreacumulado pudesse investir, valorizar e especular com eles. Na Inglaterra, a subsequente privatização dos serviços, a liquidação de empresas públicas e a moldagem de muitas outras instituições públicas de acordo com uma lógica comercial levaram à radical redistribuição de ativos que favoreceu cada vez mais as classes altas do que as baixas.

A corporativização e privatização de bens até agora públicos [como as universidades], acrescente-se a isso a privatização [da água e de utilidades públicas] que tem varrido o mundo indicam uma nova era de ‘expropriação das terras comuns’. Percebe-se que a transformação de formas culturais, históricas e de criatividade intelectual em mercadoria envolve espoliações em larga escala. A biopirataria campeia e a pilhagem do estaque mundial de recursos genéticos beneficiam poucas grandes companhias farmacêuticas. A ênfase nos direitos de propriedade intelectual nas negociações da OMC [o designado Acordo TRIPS] aponta para maneiras pelas quais o patenteamento e o licenciamento de material genético, do plasma de sementes de todo tipo de outros produtos podem ser usados agora contra populações inteiras cujas práticas tiveram um papel vital no desenvolvimento desses materiais. A privatização é essencialmente, portanto uma transferência de ativos públicos produtivos do Estado para empresas privadas. Figuram entre os ativos produtivos os recursos naturais: terra, florestas, água, ar. O Estado neoliberal buscou tipicamente expropriar as propriedades coletivas, privatizar e instaurar uma estrutura de mercados abertos de mercadorias e de capitais, em cujos lucros são fabricados capitais fictícios, antecipações de créditos, juros exorbitantes que encharcaram as vias, os dutos financeiros de guetos dourados como Hong Kong, São Paulo, mas inundavam megalópoles como Tóquio e Londres, em especial, os bancos de Nova York, até explodirem-se como uma ‘bolha fictícia’ assentada em ‘papéis podres’: o limite de algumas instituições financeiras – um colapso financeiro no fim da ‘era W. Bush’.

Greenwich Village, New Law Tenements


Fluxo do êxodo e solo de comunidade multicultural, o Greenwich Village, em Nova York, tornou-se a quintessência do centro urbano, misturando grupos e estimulando indivíduos a diversidade. Os habitantes do Greenwich Village foram considerados quase fundidos, de tão próximos, por Jane Jacobs em seu livro “The Dark and Life of Great American Cities”. Na MacDougal Street, os turistas limitavam-se aos olhares dos italianos, que conversavam entre si, das lojas de andar térreo para as janelas dos edifícios em frente, sem se importar com os transeuntes. Hispânicos, judeus e coreanos zanzavam na Segunda Avenida, mas além dela cada grupo se guardava em seu próprio território, encerrando-se numa ‘comunidade étnica’. O individualismo moderno sedimentou o silêncio dos cidadãos na cidade. A rua, o café, os magazines, o trem, o ônibus e o metrô são lugares para se passar a vista, mais do que cenários destinados a conversações. A dificuldade dos estrangeiros manterem um diálogo entre si acentua a transitoriedade dos impulsos individuais de simpatia pela paisagem ao redor. Por curiosidade, uma ordem de comando idêntica àquela de Veneza para encerrar os judeus determinou que, em Nova York, eles fossem proibidos de emprestar dinheiro aos negros. Mas, no século XIX, os guetos da grande metrópole não tinham caráter nem identidade próprios. O Lower East Side era pobre, mas muito misturado etnicamente; Little Italy, nos anos 20, abrigava irlandeses, eslavos, e até hoje contém tanto asiáticos quanto italianos; no auge da ‘Renascença do Harlem’, ali residiam mais gregos e judeus do que negros.

Porém, no extremo leste, onde Greenwich Village se espraia à grande pobreza de Lower East Side, a história é outra, lá se concentram viciados de ambos os sexos, que contraíram a doença devido à partilha de agulhas, e mulheres que se infectaram na prostituição. AIDS e drogas confundiram-se na Rivington Street, por exemplo, cujas construções abandonadas serviam de esconderijo aos viciados. Se o problema da droga não sensibiliza os moradores, menos ainda causam os sem-teto, denunciou Richard Sennett em seu livro “Carne e Pedra”. No Village, eles dormem nas ruas próximas da Washington Square. Por volta de 1970, Washington Square, muitos adolescentes dormiam ao relento, embalados por cantores folk que competiam entre si, despreocupados com a presença dos sem-teto. Washington Square tornou-se uma espécie de ‘supermercado da droga’: ao norte da faixa de areia dos balanços das crianças situa-se um ponto de vendas de heroína e os bancos, junto à estátua de Stanley, expõem-se diversas pílulas; nas quatro esquinas da praça a cocaína foi comercializada em grandes quantidades.

A história do multiculturalismo ganhou muito com esse tecido urbano camaleônico. Os imigrantes se amontoavam nas áreas de pobreza, principalmente em Lower East Side e atrás das docas, no West Side de Manhattan, e no extremo leste do Brooklin. Confluência de diversas misérias, as chamadas Law Tenements haviam sido projetadas com espaços interiores bem iluminados e ventilados, mas as melhores intenções dos arquitetos cairiam por terra diante de uma densidade populacional tão imprevisível. Quando pobreza e funções mal remuneradas, drogas e criminalidade reaparecem nos subúrbios, esmaecem-se as esperanças de uma vida familiar segura e estável, assim o desejo de fugir renasce.

Nova York voltou a crescer depois da Segunda Guerra Mundial, principalmente com os trabalhos de Robert Moses, que encarava a malha urbana de forma arbitrária, desconhecendo qualquer obrigação de manter ou melhorar o que seus antecessores haviam feito; assim, ele construiu pontes, parques, portos, praias e auto-estradas. Dotada de um dos sistemas de transporte mais complexos do mundo, Moses favoreceu tanto a locomoção individual nos automóveis que chegou a ameaçar a viabilidade de tudo que já existia em Nova York. Para ele, as auto-estradas eram meios facilitadores, e não projetos destrutivos. O propósito de Robert Moses era desfazer a diversidade. A massa impactante da população parecia-lhe uma pedra a ser esfacelada, ao ponto de a fragmentação da cidade ser a condição do ‘bem público’. Deste modo, Moses agiu de modo seletivo, apenas para os bem-sucedidos, que dispunham dos meios de escapar, fugir; as pontes e vias expressas tornaram-se uma salvação do barulho dos grevistas, mendigos e desempregados que enchiam as ruas de nova York, durante a Grande Depressão.

A geometria de Nova York é constituída por uma rede interminável de quarteirões idênticos, como um tabuleiro de xadrez em expansão; em 1811, as terras acima de Greenwich Village já estavam urbanizadas e em 1855 o complexo demográfico estendia-se além de Manhattan, em direção ao norte do Bronx e a leste do Queens. Um turista pode suspeitar que o centro de Nova York fique em torno do Central Park, mas Calvert Faux e Frederick Law Olmsted deram partida à sua construção em 1857. Teoricamente, a ausência de um ponto central e limites indefinidos possibilitam múltiplos locais de encontro. Mas o que a sua falta de direcionamento realmente prevê é ainda mais facilidade para se demolir todos os obstáculos de pedra, vidro ou ferro erigidos no passado. As grandes mansões da Quinta Avenida foram construídas, habitadas e destruídas, cedendo lugar a edificações mais altas. Hoje, apesar de já se cuidar do patrimônio histórico, os arranha-céus são projetados e financiados por uma duração estimada de cinquenta anos. De todas as cidades do mundo, Nova York foi a que mais cresceu à custa de demolições.

Rules of the Western Ranch


A Constituição norte-americana deve ser entendida como um regime material de interpretação e prática jurídica não só exercido por juristas e juízes, mas por elementos de toda a sociedade. De Thomas Jefferson e Andrew Jackson, numa primeira etapa da Constituição, o espaço aberto da fronteira torna-se o terreno conceitual de uma ‘democracia republicana’. Um terreno que estava livre nos EUA das formas de centralização e hierarquia típicas da Europa: um terreno ilimitado, aberto ao desejo da humanidade, onde o limite passa a ser uma fronteira de liberdade. Neste caso, liberdade e fronteira implicam-se reciprocamente, porque todo o obstáculo posto à independência era o mesmo que um limiar a se transpor. A soberania imperial, a democracia republicana, precisaria superar barreiras e limites, tanto dentro dos seus domínios como nas fronteiras. Essa superação contínua faria o espaço imperial manter-se aberto.

Os Estados Unidos pôde se imaginar como vazio, mas ignorando deliberadamente da existência dos nativos. Deste modo, conceberam esses nativos sob uma ordem diferente de seres humanos, subumanos, parte do ambiente natural. Pois não é que serviu a metáfora da terra que se quer produzir para agricultura, deve-se despojá-la das árvores e das pedras, assim o terreno deve ser escoimado dos seus habitantes nativos. Os nativos não poderiam ser integrados no movimento da fronteira como parte da tendência constitucional, ele tinham de ser excluídos a fim de abrir espaço e tornar possível a expansão. Os nativos existiram fora da Constituição, sua exclusão e eliminação foram condições essenciais para o próprio funcionamento da Constituição norte-americana. Enquanto os nativos ficaram fora da Constituição, os afro-americanos foram, desde o começo, nela incluídos. Os norte-americanos nativos puderam ser excluídos porque a nova república não dependia do seu trabalho, mas a mão-de-obra negra era um esteio essencial dos novos Estados Unidos: afro-americanos foram incluídos na Constituição, mas não podiam ser incluídos em pé de igualdade. A escravidão negra, um prática herdada das potências coloniais, era uma barreira intransponível para a formação de um povo livre.

Desta forma, o republicano ianque não deixa de ser um povo recém-chegado, um povo em êxodo preenchendo os novos territórios vazios. Os escravos afro-americanos não puderam ser completamente incluídos nem completamente excluídos. A escravidão negra foi uma exceção à Constituição e um dos seus fundamentos. O debate sobre a escravidão estava inextricavelmente vinculado às discussões sobre os novos territórios. O que estava em jogo era uma redefinição do espaço da nação, segundo Michael Hardt e Antonio Negri em seu livro “Império”. Discutia-se se o êxodo livre da multidão, unificada, numa comunidade plural, poderia continuar a desenvolver-se, a aperfeiçoar-se, e a realizar uma real configuração do espaço público. De que modo compreender os efeitos desse êxodo e comunidade multicultural, se Greenwich Village tornou-se a quintessência do centro urbano, misturando grupos e estimulando indivíduos a diversidade. É possível compreender que, ao contrário do Harlem ou do South Bronx, o Greenwich Village foi marcado por um ‘quadro de etnias’ – italianos, judeus, gregos – que conviveram, numa espécie de ágora moderna, no centro de Nova York?

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

City of Quartz - L.A. [Edge city]


O destino de Los Angeles foi o de garantir a segurança da costa do Pacífico, o que define sua urbanização dispersa. Desde sua criação como El Pueblo de Nuestra Señora La Reina de Los Angeles de Porciuncula, em 1781, passando por sua acirrada concorrência com San Francisco pela hegemonia comercial e financeira, até a sequência desdobrada de guerras, não deixam de ser esforços para Los Angeles garantir o Pacífico. Destaca-se o Círculo de Sessenta Milhas que corta a costa sul na fronteira entre os condados de Orange e San Diego, perto de um dos principais postos de verificação para interceptar e regulamentar o fluxo de imigrantes que rumam para o norte. Os centros militares de resistência e segurança em Los Angeles distribuíam-se, em meado da década de 1980:

[1] o bastião nº 1 era a Base Naval de Camp Pendleton, cujos membros ajudaram a construir um complexo de alta tecnologia no norte do Condado de San Diego; [2] depois de sobrevoar os urzedos de Camp Pendleton, da Floresta Nacional de Cleveland, e do vital Aqueduto do Rio Colorado, que capta as águas vindas do leste, aterrissa-se no bastião nº 2, a Base Aérea March, adjacente a cidade de Riverside. O interior de March constituía um acessível posto avançado para o itinerante Comando Aéreo Estratégico; [3] a partir de um salto sobre Sunnymead, as montanhas Box Spring e Redlands levariam ao bastião nº 3, a Base Aérea Norton, junto à cidade de San Bernardino e logo ao sul da Reserva Indígena de San Manuel, quase deserta; [4] perto de Victorville encontrar-se-ia o bastião nº 4, a Base Aérea George, especializada em defesa e interceptação aérea; [5] levados através do seco Lago de Miragem até a gigantesca Base Aérea Edwards, o bastião nº 5, sede da NASA e das atividades de pesquisa e desenvolvimento da Força Aérea Norte-Americana, além de campo de pouso para ônibus espaciais. Estendendo-se para o sul ficava um corredor aeroespacial de Lancaster ao Aeroporto de Palmdale e à Fábrica 42 da Força Aérea, que atendiam à função histórica da base Edwards, servindo de campo de testes para caças e bombardeiros avançados; [6] o trecho seguinte é o mais sereno, sobrevoa o Vale dos Antílopes e o Aqueduto de Los Angeles, a Interestadual 5, uma longa faixa da Floresta Nacional de Los Padres e a Reserva do Condor Selvagem, chegando à cidade de Ojai e novamente ao Pacífico, na missão de San Buenaventura, no Condado de Ventura. Algumas milhas dali fica o bastião nº 6, um complexo que consistia na Base Aérea de Oxnard, que foi desativada, mas no Centro do Batalhão de Construção Naval do Porto de Hueneme e, acima de tudo, no Centro Naval de Mísseis Aéreos da Ponta Mugu.

Trata-se, sobretudo de uma extraordinária descoberta da produção industrial de Los Angeles, a partir da década de 1980, o Círculo de Sessenta Milhas possuiu um pólo de crescimento industrial: petróleo, laranjas, filmes e voos. Desde 1930, Los Angeles liderou todas as outras áreas metropolitanas dos EUA. No último meio século nenhuma outra área recebeu tantas verbas federais quanto Los Angeles, por meio do Ministério da Defesa e de projetos federais de subsídio ao consumo suburbano, ao desenvolvimento de habitação, transportes, abastecimento de água. Desde 1929 Los Angeles tornou-se uma cidade-prototípica: a ‘cidade estatal keynesiana’, demonstrando sua capacidade de multiplicar as verbas públicas investidas em sua paisagem econômica de destaque, segundo Edward W. Soja em seu livro “Geografias Pós-Modernas”, a Los Angeles da década de 1990 passou a se assemelhar, contudo a uma aglomeração gigantesca de parques temáticos, um espaço vital composto por Disneyworlds.

Los Angeles em um campo dividido em vitrinas de culturas de aldeia global e paisagens miméticas norte-americanas, centros comerciais que ‘vendiam de um tudo’ nas engenhosas ruas principais, reinos mágicos patrocinados por empresas, protótipos experimentais de comunidades do futuro, baseadas na alta tecnologia e lugares de repouso, de recreação, todos ajudavam a esconder com habilidade as esferas de atividade e os processos de trabalho que ajudaram a mantê-los juntos. Acontece que a era da informação introduziu uma nova forma urbana, a cidade informacional, de acordo com Manuel Castells em seu livro “A Sociedade em Rede” que, do mesmo modo que a cidade industrial não foi uma réplica de Manchester, a cidade informacional não será uma cópia do Vale do Silício, muito menos de Los Angeles.

Joel Garreau captou o núcleo de um novo processo de urbanização, as Edge City, que seriam qualquer lugar que: [a] teria 465 mil metros quadrados ou mais de espaço com escritórios de aluguel; [b] teria 56 mil metros quadrados ou mais de espaço para ser alugado por lojas varejistas; [c] teria mais empregos que dormitórios; [d] fosse percebido pela população como um lugar; [e] não se parecesse com uma ‘cidade’ de pelos menos cinquenta anos atrás. Destaca-se a proliferação desses lugares, a partir da década de 1990, ao redor do sul da Califórnia, da área da Baía de São Francisco, de Boston, Nova York, Detroit, Atlanta, Phoenix, Texas e Washington D.C. – são áreas de trabalho e centros de serviços ao redor dos quais quilômetros de unidades residenciais cada vez mais densas e de uma só família se ordenam numa vida particular centrada na casa. Percebem-se verdadeiras constelações que são ligadas nas áreas metropolitanas, não por trens ou por metrôs, mas por auto-estradas, corredores de acesso a aviões e antenas parabólicas de 9 metros de diâmetro nos terraços dos prédios. Fluxos de intercâmbio ainda não deixam de ser os componentes essenciais dessa espécie de Edge City [Cidade às Margens] norte-americana.

O perfil da Cidade Informacional norte-americana não é totalmente representado pelo fenômeno da ‘Edge City’, mas pela relação entre o desenvolvimento rápido das áreas metropolitanas, decadência dos centros das cidades e obsolescência do ambiente construído nos subúrbios. O ‘centro empresarial’ tornou-se o motor econômico da cidade em rede acionado à economia global e se baseia numa infra-estrutura de telecomunicações, comunicações, serviços avançados e espaços para escritórios baseados em centros geradores de tecnologia e instituições educacionais. O centro empresarial conta com os processamentos de informação e com as funções de controle para prosperar, em geral, completam-se por instalações de turismo e viagens. O centro empresarial é um nó da rede intermetropolitana, megacidade que se atribui o papel superior de dirigir, produzir e administrar por todo o planeta; o controle da mídia; a verdadeira política do poder; e a capacidade simbólica de criar e difundir mensagens. Elas têm nomes: Los Angeles, Tóquio, São Paulo, Nova York, Cidade do México, Xangai, Bombaim, Buenos Aires, Seul, Pequim, Rio de Janeiro, Calcutá, Osaka.

Mar Territorial e Águas Interioranas [EUA]


Dando para quatro corpos aquáticos importantes [os oceanos Atlântico, Pacífico e Ártico, além do Golfo do México] os mares marginais são importantes para os Estados Unidos por causa de seus vários recursos, o uso que delas faz a navegação costeira e exterior e a sua função defensiva contra ataques de além-mar. O contorno litorâneo dos EUA estende-se por mais de 1.800 km, dos quais mais da metade se situa no Alaska, 40 por cento estão nos EUA e cinco por cento no Havaí. Ao longo da costa acidentada da Nova Inglaterra, por exemplo, o povo em época remota se voltou para o mar, desenvolvendo a pesca e as atividades de navegação e construindo fortes para fins de defesa.

Uma das mais importantes características físicas do litoral dos Estados Unidos não deixa de ser a sua ‘plataforma continental’ – a rasa plataforma submarina que se inclina gradativamente, avançando a partir da costa. A largura da plataforma continental varia consideravelmente fora dos EUA, girando de umas poucas milhas a dez, em partes do litoral californiano, e a até 250 milhas ao norte da Flórida, chegando a quase mil milhas na costa ocidental do Alasca. Vários litorais ofereciam particulares oportunidades para uso de recursos marinhos, sob a forma de praias arenosas, baías naturais, promontórios rochosos, proximidade de ricas zonas piscosas, conforme Lewis M. Alexander em seu artigo no livro “Geografia Humana nos Estados Unidos”. Os EUA reconheceram certas classificações de águas ao longo de suas costas. Enseadas, baías, embocaduras de rios eram classificadas como ‘águas interioranas’, sobre as quais a nação teria soberania absoluta. Além das águas interioranas estariam o ‘mar territorial’, sobre o qual a nação também possuía soberania.

A natureza do contorno litorâneo dos EUA é relevante por causa de sua relação com a ‘orientação marinha’ dos habitantes litorâneos e por causa de seu uso como base para medição de zonas de jurisdição nacional em águas territoriais. Essa ‘orientação marinha’ refere-se às atitudes das populações litorâneas em relação ao mar, o uso que fazem de seus recursos e seus investimentos marinhos em termos de capital, educação e controles legislativos. Entre os usos que se fizeram das áreas litorâneas e das águas territoriais norte-americanas, até a década de 1970, os dois mais importantes economicamente eram a pesca e a extração de petróleo:

[1] A pesca comercial nos EUA rendia em torno de 400 milhões de dólares anuais e mais de 100.000 pescadores foram empregados em regime de tempo integral pela indústria, há uns trinta anos atrás. Havia cinco principais áreas de pesca ao largo dos EUA, a área da Nova Inglaterra [eglefim, bacalhau, pescada], Grand e Sable Banks do Canadá [pesca oceânica], Georges Bank ao largo de Cape Cod, os mariscos foram muito importante nessa economia pesqueira, particularmente os mexilhões e lagostas. Embora o capital investido e a tecnologia, que transformaram a economia norte-americana durante tantas décadas até 1970, tiveram pouco efeito na indústria pesqueira.

[2] A situação no tocante à indústria de petróleo foi diferente. O índice de investimento de capital em perfurações ao longo da costa chegou à mais de um milhão de dólares por dia, e centenas de poços operavam na plataforma continental. Ao longo da costa de Louisiana situou-se a área produtora de petróleo mais importante. Uma área menor ficava ao sul da Califórnia, poços produtores surgiram ao longo da costa do Texas. Este foi o período em que se iniciaram as explorações ao largo da Flórida ocidental, de Oregon e de Washington, bem como em Cook Intel, Alasca. Estimava-se que um terço das reservas comprovadas dos EUA estava situado na ‘plataforma continental’.

Sobre as águas interioranas, destaca-se a Bacia do Rio Meramec no Meio-Oeste norte-americano: uma bacia fluvial de cerca de cem por cinquenta milhas, que se estende dos arrabaldes de St. Louis, no Missouri, às montanhas de Ozark. A zona é coberta por florestas, em sua maior parte de altiplano, e é uma das regiões mais desertas, em termos demográficos, na metade leste dos Estados Unidos, assemelhando-se aos Adirondacks ou à península superior de Michigan; no entanto, fica a oitenta quilômetros apenas de uma área metropolitana de dois milhões de pessoas, na década de 1970, de acordo com Edward L. Ullman em seu artigo “Predição e Teoria Geográficas: Avaliação dos Benefícios de Recreação na Bacia do Meramec”. Precedida por um longo período de agricultura. A destruição dessas florestas tornou-se um fenômeno muito antigo, a tal ponto que já não existe mais na Europa nenhum bosque caducifólio original, o mesmo ocorre nos EUA, bem como as florestas de coníferas que foram um dos biomas mais explorados em toda a Terra para a produção de energia, tal como José Bueno Conti e Sueli Angelo Furlan questionaram em seu texto “Geoecologia: O Clima, os Solos e a Biota”.

Historicamente, as cidades que constituíam o Cinturão Industrial Americano surgiram como um grupo particularmente grande durante o período da Predominância Ferroviária que, de algum modo, envolveu o Meio-Oeste norte-americano. Estas cidades se localizavam dentro de uma área limitada a oeste por uma linha que ia de Milwaukee e Chicago a St. Louis; a leste, do sul de Nova Inglaterra a Washington, segundo Edward J. Taafe em seu artigo “A Rede de Transporte e a Paisagem Americana em Mutação”. De todo modo, a partir da década de 1960, a área do Meio-Oeste agrícola abrangia o Ohio ocidental, a maior parte de Indiana e Illinois, as partes meridionais de Michigan, Wisconsin e Minesotta, todo o Iowa, o Missouri setentrional, o nordeste do Kansas e áreas de Nebraska orienta, Dakota do Sul e talvez a do Norte, delimitou Walter M. Kollmorgen em seu artigo “As Granjas e a Agricultura no Meio-Oeste Americano”. O centro do Meio-Oeste representa uma área dos EUA que fica ao sul e a oeste dos Grandes Lagos, achatada pelos gelos e que se encheu de água, enriqueceu-se nas eras glaciais.