sábado, 30 de maio de 2009

Tanatocracia – Propagação da Fobia


Fabricar o medo e vender insegurança revela as antípodas e os escombros do bem-estar. Da saturação dos nimbus às pulsões mais sórdidas, passando por surtos epidemiológicos que se espalham rapidamente, a trama da violência envolve populações através de objetivas e satélites. A serviço de uma estratégia liberal, a imprensa busca limitar o estatismo por meio da divulgação da violência (ecológica, sanitarista, maquínica, criminológica, semiotécnica), isto é, julgar as diversas técnicas de segurança do Welfare State[1]. Se a imprensa identifica o Estado como policial é porque ela usa os mesmos meios para trazer à tona a insegurança proveniente de ‘crimes sem razão’ e de ‘catástrofes’ que até parecem ser inovações jurídicas - as mais novas invenções criminológicas.

O ‘catastrofismo’ acontece como se desastres ecológicos ocorressem apenas em países pobres, africanos, latino-americanos e asiáticos. Assim, ou os tornados sazonais no oeste norte-americano não tiraram o sono da população como o furacão que deixou Nova Orleans submersa, ou os EUA se tornaram pobres. Trata-se de enchentes, tempestades, furacões, vulcões em erupções: a natureza se rebela onde ricos e pobres não faz diferença? Num país com latitudes equatoriais, as tempestades contradizem toda a lógica climática? O que se questiona é, entretanto, a superexposição midiática da violência climática[2]. Campanhas voluntárias, mobilizações locais, estados de calamidade pública, defesas civis surpreendidas padecem inevitavelmente, mesmo com ajudas financeiras do governo federal. A violência climática levou o medo para raias desmedidas e qualquer estratégia do Estado se torna difusa, afinal, envolvem-se técnicas de segurança indefinidas, pois no espaço ‘natural’ desenrolam-se séries de elementos aleatórios. Um grande ataque afeta uma população, destrói cidades e estradas, além de surpreender a polícia do Estado (defesa civil, IBAMA, bombeiros, militares, etc.). Acontecimentos desastrosos que ocorrem numa fração de minutos, mas demoram, às vezes, anos para serem reconstruídos, cujos culpados estão longe, escondidos em causas antrópicas, industriais. Dados naturais (pântanos, chuvas, rios, pântanos) e dados artificiais (aglomeração de indivíduos, aglomeração de casas) compõem as estatísticas de governo, que favorecem os seus cálculos para assegurar a vida dos alagados, ou de modo amplo, das vítimas da natureza.

Vítimas da circulação de vírus mutantes (gripe aviária e suína) têm chamado a atenção da mídia tanto quanto os deslocamentos de massas de ar. Cada vez mais cabe ao Estado policiar os fluxos, mas com o avanço tecnológico, torna-se necessário e, acima de tudo, possível calcular os movimentos dos hospedeiros de vírus (monitoramento) e das precipitações. Ao se tratar de uma pandemia ou epidemia, com veículos muito velozes, amplia a possibilidade, caso ocorram erros milimétricos no monitoramento dos possíveis casos de contaminação, de um contágio em escala global. Parece que monitorar um indivíduo, com sintomas de uma doença, e promover seu isolamento compõe uma técnica que remonta ao século XIV, os antigos leprosários europeus. A lepra foi extinta sem mesmo se ter a cura da doença, apenas com a vigilância da população, a identificação dos doentes e a sua exclusão em ambientes distantes da cidade, para minimizar o contágio[3]. Não se interroga, pois, se há ou não poder médico no Brasil capaz de lidar com pandemias, mas questiona-se o bombardeio de temas epidêmicos na imprensa, com o objetivo de informar a população. O Estado governa a circulação, mas desde o século XVII não se limita apenas os fluxos de mercadorias e pessoas, ele busca policiar os perigos que tendem a modificar o destino biológico da espécie humana.

Além das catástrofes e das epidemias, há ‘desastres maquínicos’. O ambiente da violência é cercado por distúrbios e desvios tecnológicos. As “arapucas da internet”, os “remédios falsos” e os “desastres aéreos” complementam a paisagem da violência focalizada pelos mass media, onde larápios da rede invadem contas bancárias, comercializam produtos inexistentes, com programas que furtam senhas e torna o Brasil o quarto país mais infectado do mundo[4]; remédios falsificados, contrabandeados, sem registro colocam a vida em risco e, pelo menos 20% dos medicamentos vendidos no Brasil são ilegais[5]; e, sem dúvida, o “caos aéreo” foi, em 2007, o auge do pânico mais bem arquitetado e centrado nos acidentes que envolvem aeronaves e aeroportos no país. Neste ambiente corrompido e virulento, passível de desastres e catástrofes, os grupos se organizam. De um lado, milicianos, traficantes e organizações terroristas, de outro, parricídios, infanticídios e pedófilos.

Trata-se de irregularidades que se manifestam em comunidades inteiras, vítimas das milícias e do tráfico (de armas e drogas), do terror que daí se emana[6], mas também de distúrbios psiquiátricos e criminológicos que se desencadeiam em indivíduos específicos como os pais (infanticidas) e de filhos (parricidas), também de casos questionáveis de padres pedófilos[7]. A pulverização da criminalidade no espaço comunitário e privado intercepta uma micrologia social dos atentados passionais ao fluxo de drogas, de pedágios e armas[8]. Mais próximo o perigo torna-se aleatório: como se a imprevisibilidade da violência ecológica emprestasse seu poder aos crimes domiciliares. Violência contra as mulheres, estupros e pedofilia são campanhas que denunciam torturas e maus-tratos, mas perdem eficácia na ótica midiática, porque não causam mortes, apesar de serem tão cruéis. Movimentos Negros, indígenas, homossexuais tornam-se tribos que se agregam singularmente em uma série de queixas coletivas e exprimem uma espécie de ‘semiologia da violência’.

Há pelo menos dois regimes de signos capazes de rostificar[9] processos de subjetivação distintos que ora considera o “trabalho” ora a “linhagem” como ponto de partida. O que isto quer dizer? Em torno da “classe” e da “raça” grupos se territorializam. No Brasil, os ‘sem-terra’, em torno da terra como meio de produção, e os ‘neonazistas’, com sua paranóia política e sua tara étnica, ilustram a relação desses regimes semiológicos que formalizam a organização das minorias. A violência no campo e a do nazismo parece ocupar as fissuras das contradições capitalistas e a pureza racial utópica do Estado-nação. Enquanto um grupo luta para tornar produtivas terras devolutas, o outro grupo aspira a uma sociedade imaginada com desejo separatista, da autonomia da região sul-sudeste[10].

Violência, pois, à medida que a economia mundial entra em nova fase de expansão, as flutuações tornam-se mais caóticas. Immanuel Wallerstein escreveu, no seu livro “O Declínio do Poder Americano”, que podemos esperar que decresça o grau de segurança coletiva e individual, ao mesmo tempo em que as estruturas estatais perdem legitimidade – o que aumenta a violência no dia-a-dia. Recrudescimento mundial do antiestatismo, tangenciado pelas propagandas dos mass media, que amplia o ceticismo sobre a capacidade do Estado manter a ordem social. Liberar, portanto, a ‘violência da natureza’ e os ‘desastres maquínicos’ como uma imagem ampliada do meio pelo qual os ‘medos sociais’ são elencados pelos meios de comunicação, assim as pessoas tendem a retirar o papel dos Estados como fornecedor de segurança. Violência como um impacto e efeito da informação, serve-se, para tanto, da bomba atômica norte-coreana, dos campos de refugiados, do terrorismo muçulmano, das favelas cariocas, do “war on drug”, da libertação nacional e da fome. Paixão dos liberais ou neoliberais, ao usar a violência para transformar a opinião pública e, simultaneamente, instaurar uma ‘tanatocracia’[11] em uma fobia generalizada capaz de desmantelar o Welfare State. Telespectadores da barbárie, com câmera em punho, na tanatocracia, melhor utiliza os seus quinze minutos de fama, aquele que filmar um ato de violência intenso, capaz de proliferar o medo onde, exatamente, o sangue se torna fantasia e ilusão.


Notas:

[1] Hardt e Negri definiram, em “Império”, a trindade do Estado de Bem-Estar Social: 1) Taylorismo na organização do trabalho; 2) Fordismo no regime salarial; 3) Keynesianismo na regulamentação macroeconômica.
[2] Recentemente enchentes assustaram a população, de outubro de 2008 a maio de 2009, mais ou menos, no Brasil foram identificadas enchentes calamitosas do sul-sudeste ao norte-nordeste.
[3] Michel Foucault em diversos livros como em “História da Loucura na Idade Clássica,” “Vigiar e Punir” e “Segurança, Território e População” analisou as técnicas médicas e sanitaristas contra a lepra, a peste e a inoculação da varíola na Europa.
[4] “A Tentação do Clique” foi manchete de capa da Revista Veja em 20 de maio de 2009.
[5] A Revista Istoé de 27 de maio de 2009 divulgou a reportagem “Remédios Falsos”.
[6] Ressalta-se a relação da produção de drogas nos Andes (FARC) e a sua comercialização nas metrópoles brasileiras, em geral, controlada pelos comandos CV e PCC. Identificar as FARC como grupo terrorista não foi tarefa difícil para os EUA, com o Plano Colômbia, a ajuda de Uribe e a instauração de uma guerra ao terror designada War on Drugs.
[7] Slavoj Zizek questionou, em seu livro “Bem-vindo ao Deserto do Real”, a Opus Dei (‘máfia branca’ da Igreja) que intervém, sob suprema obediência ao papa, para abafar os casos generalizados de abuso sexual de meninos por padres, cuja sexualidae explode de forma patológica, o que contribui para não permitir o casamento de párocos católicos.
[8] “Desafio Metropolitano”, “A Prisão e a Ágora” e “Fobópole” são livros de Marcelo Lopes de Souza com abrangente questionamento sobre as estratégias dos traficantes de drogas e milicianos, enfatizando a fragmentação do espaço metropolitano brasileiro.
[9] Deleuze e Guattari analisaram os regimes de signos na promoção da rostidade em “Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia”.
[10] O texto sobre “A Sociedade Secreta dos Novos Nazistas Brasileiros” foi publicado pela Istoé no dia 20 de maio de 2009.
[11] Tanatocracia é uma analogia de um regime de governo cunhada à imagem de Tanatos: figura demoníaca na mitologia grega e que denominou a pulsão de morte na psicanálise freudiana.


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