quarta-feira, 27 de maio de 2009

Micropolítica da Paranóia


As câmeras captam tudo: “para onde vai a nossa carga tributária”? Realmente essa é uma pergunta muito perigosa. Em primeiro lugar, todos nós sabemos da relação inversa que existe entre impostos e manutenção dos preços, assim como entre juros e inflação, de modo amplo, como somar e subtrair ou dividir e multiplicar. Trata-se de operações econômicas outrora experimentadas no Brasil. Os preços tendem a subir exorbitantemente sem a premissa dos impostos, da mesma maneira que a moeda inflaciona o mercado com juros baixos. Quem dera se fosse simples assim, como a imprensa nos mostra: há 60% de impostos no preço de um pote de manteiga, então pagaríamos apenas 40% desse pote se não houvesse impostos. O primeiro impacto da redução dos impostos seria cair, lógico, os preços, muito além até da pura subtração dos impostos no preço das mercadorias. Alcança-se um valor suficiente para impactar na concorrência, ou seja, só os grandes proprietários poderiam sustentar preços tão baixos, o que quebra os pequenos produtores e, num segundo momento, livres dos impostos e da concorrência, os preços elevam-se para os empresários que resistiram ao mercado. Linha descendente, depois, curva vertiginosamente ascendente dos preços. Por isso as pessoas se perguntam: por que mesmo pagando mais impostos, os preços ainda assim são mais baixos que em governos precedentes? Já ouvimos o argumento de alguns cidadãos que dizem: “há pouco tempo atrás, o salário era cem reais, mas cinco quilos de arroz era quinze, e que hoje o salário é mais de quatrocentos reais, enquanto cinco quilos de arroz custam sete reais”. Em segundo lugar, pagar sessenta por cento de nossa renda com impostos tem outra contrapartida nos ‘serviços públicos’, que acabam concorrendo com a rede particular de ensino e os planos de saúde. Claro que a classe média trata os impostos com escárnio, eles podem pagar qualquer preço pelas melhores marcas, utilizam serviços médicos, educacionais e de segurança privados. Pobres e ricos pagam impostos, mas grande parcela da população pobre é a que utiliza os serviços públicos. Um cidadão se priva de pagar consultas, remédios e internações, com as políticas do SUS – certamente não é um resort hospitalar sírio-libanês, mas oferece cuidados elementares de saúde. A população vive dos serviços educacionais mantidos com impostos municipais, estaduais e federais - ultimamente universidades e escolas técnicas federais ampliaram sua rede. Certamente, há necessidade de transparência e ética nos gastos públicos, mas vêem-se financiamentos para casa própria, com sua origem no FGTS; a redução dos preços dos automóveis, eletrodomésticos através do IPI; sabe-se que o CPMF retorna como fundo de participação dos municípios. Para onde vai a carga tributária? Embora a imagem econômica midiática seja caótica, a obscura aparição dos impostos se esclarece porque contribui para regular os preços e oferecer serviços públicos de atendimento, que são as contrapartidas inquestionáveis do impacto dos impostos na economia.

Resta a fórmula mágica, solução politicamente correta, panacéia que sempre se formula: a educação. A educação é o elixir do desenvolvimento – caminho para a prosperidade. Nem se questiona o reducionismo pedagógico e a impressionante responsabilidade da instituição escolar, ou seja, os sujeitos se matam, seqüestram, estupram e, nós, professores é que temos a responsabilidade de conduzir a sociedade à prosperidade? A que preço? Trata-se de uma guerra intestina que corre nos interstícios da sociedade, onde pais matam filhos, filhos matam pais[1], alunos esmurram professores, professores espancam alunos, haja câmeras... Não há dúvida, o problema é educacional, mas não é somente nas escolas que esse processo deve se desenvolver. Família, policiais, médicos, repórteres, juristas, todos devem contribuir com sua parte: a escola está ilhada, entretanto, televisionada vinte e quatro horas por dia. Um líder autoritário na Coréia do Norte quer provocar uma intimidação nuclear global, evidente que se trata de um resíduo ativo dos longínquos cinquenta anos de guerra fria, período de corrida militar entre EUA e URSS, tendo como base armas como as nucleares. Em um diagnóstico simplista, o problema norte-coreano, entretanto, vai ser o seu pouco investimento em educação, afinal, segundo os mass media só há altos investimentos em instituições militares. Que sigam outro modelo, afinal, a Europa, berço clássico do saber, foi palco de aguerridos conflitos em todo século vinte. Educação sim, a diferença passa por aí, mas o que se questiona é por que não investir em setores de alta tecnologia, de modo que instituições de pesquisa, universidades, forças armadas, capital privado e público, nacional e internacional se desenvolvam em cadeia? Privilegiam-se e criam-se intelectuais e especialistas, com efeito, cada vez mais adequados ao mercado, à imagem liberal do capital humano? É certo que a educação é um fio-condutor capaz de perpassar, por exemplo, toda a produção de tecnologia de petróleo e aeroespacial, como se percebe no CENPES/UFRJ e no ITA, no Brasil. Diferentemente de um paranóico que desenvolve tecnologia restritamente para a guerra. Investimento em bomba é de uma natureza completamente diferente de investimento tecnológico.

A guerra civil e global, portanto, passam pelos impostos e pelo investimento tributário em serviços de segurança para a população. Se a educação é a solução para rompantes nucleares, dos EUA, da antiga URRSS ao seu filho caçula, a Coréia do Norte, ela soluciona também os problemas cariocas e paulistas do crime generalizado. Mas a solução que os setores mais privilegiados da sociedade encontrou foi se monitorar através de câmeras[2]. À esteira de um espaço cibernético, telemático e informacional consolidado no país, uma ‘Paixão por Segurança’ ou uma ‘Micropolítica da Paranóia’ contagiam condomínios inteiros, invadem as metrópoles, onde todos se armam, mas há nas mãos câmeras fotográficas e filmadoras. Enquanto os crimes tornam-se acontecimentos ideais ou imagéticos, as prisões caem em ruínas – ‘política do caos’ que se serve de imagens erodidas impressas em um ambiente arruinado, erodido, corrompido, devastado. Os criminosos acabam sendo fabricados pela ótica da imprensa com atributos técnicos anatômicos, patológicos, jurídicos em uma massa indiferenciada onde se qualificam milicianos e traficantes misturados com pequenos Édipos e Brutus em miniaturas[3], cotidianos e passionais. No fundo, encontram-se cercas, muros, grades muito bem televisionadas e eletrocutáveis. Mas como os educadores se sentiriam se o boom da videografia se atenuasse? Câmeras, máquinas fotográficas, celulares estão em todas as mãos. Afinal esses instrumentos deveriam ser considerados armas[4], em suas devidas proporções, assim como uma bomba nuclear. Capturar imagens e publicar na web – policiar também, moralizar sempre numa reinvenção constante de crimes. De fato, a imprensa é cada vez mais policial e tem se esforçado com sucesso para estar no local do crime antes de sua ocorrência. Interrogatório com câmeras escondidas produz veredictos, verdades, micro-tribunais caóticos que se proliferam. A imagem torna-se inquestionável. Na expectativa de sua invenção ou geração, a imagem se torna o ápice grandioso da revelação da verdade, não da informação. Ninguém informa nada: dizem-se verdades. Império da racionalidade da imagem (a se construir ou já construída) assim os mass media educam na fronteira entre ricos e pobres.

Saint Laurent, Van Gogh, Dom Quixote, Escadinha, instituições democráticas, ética e transparência, juros e impostos, panacéia da educação, anões do orçamento, mensalões são imagens construídas e desconstruídas pelas ilhas de montagem dos estúdios de algumas emissoras brasileiras. Não precisa ser um analista de discurso treinado no Collège de France para identificar o eurocentrismo cultural[5] e o economicismo norte-americano[6] ovacionados por esses centros de comunicação localizados, geralmente, em São Paulo e Rio de Janeiro – o Brasil é tão mais amplo que essa ponte aérea, mas... Gritem, gritem incansavelmente... Que os juros e os impostos caiam! Com efeito, é o mesmo que berrar que os preços e a inflação subam! Portanto, observa-se um midiático mecanismo de desinformação, que organiza a arena econômica do caos e arma os cidadãos, com a popularidade das câmeras portáteis, contra a criminalidade. A guerra civil é televisionada. Em nome da natureza, cerquem as franjas das favelas cariocas! Onde uns muros caem, outros são erigidos. Fronteiras reais marcam nosso espaço urbano, privatizado e altamente policiado... em suas câmeras frias, televisiona-se tudo. Conferindo as cercas elétricas dos seus muros, o servo paranóico quer, pelo menos, filmar a sua própria pilhagem, alimentar seu medo[7] e reproduzir a tele-pedagogia do enclausuramento, que encerra o espaço público e se serve de generalizado apartheid!

Notas:

[1] Amplamente divulgados pela imprensa os casos, de Eloá, 15 anos, que foi morta com dois tiros, um deles na cabeça, disparados pelo ex-namorado Lindemberg Alves; o complexo enredo do crime realizado pelos irmãos Daniel e Cristian Cravinhos, assassinos confessos dos pais de Suzane Von Richthofen; o parricida, ex-seminarista Gil Rugai de 25 anos, acusado de matar o pai e a madrasta em 2004; o caso de Isabella Nardoni, no colo, o seu pai (Alexandre Nardoni) subiu na cama, deixando no lençol marcas dos chinelos que usava. Aproximou-se da janela, introduziu Isabella no orifício da tela e soltou-a de uma altura de 20 metros.
[2] Michel Foucault criou, em “Vigiar e Punir”, a partir de Jeremy Bentham, uma das imagens arquiteturais do poder de vigiar, próprio do século XVIII/XIX organizado para ser difundido nos meios institucionais disciplinares, enquanto, no século XXI, com o auxílio da televigilância, semelhante a imagem do Sinóptico de Zygmunt Bauman descrito no seu livro “Globalização: Consequências Humanas”.
[3] Brutus é o líder romano que, ao matar seus filhos, manifesta o gesto de adotar seus súditos, como em “Homo Sacer” de Giorgio Agamben, assim como Édipo-rei matou seu pai e se casou com sua mãe, mito trágico grego escrito por Sófocles.
[4] Paul Virilio analisou as relações entre a tecnologia de visão e as guerras mundiais em “Guerra e Cinema” bem como definiu as estratégias que se estabelecem entre os instrumentos de investigação policial e jurídica com os meios de comunicação em “Máquina de Visão”.
[5] Eurocentrismo é o cerne duro do debate antropológico presente entre teóricos pós-coloniais como Stuart Hall, Homi K. Bhabha, W. Mignolo.
[6] A respeito da decadência do modelo econômico norte-americano, destaca-se “O Declínio do Poder Americano” de Immanuel Wallerstein.
[7] “Fobópole”, escrito por Marcelo Lopes de Souza, analisa o medo generalizado em detrimento da militarização urbana no Rio de Janeiro.

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