terça-feira, 20 de outubro de 2009

Iustitium de Micheletti, Nomos de Zelaya


Através de uma pesquisa sobre o iustitium, baseada no trabalho de Giorgio Agamben em “Estado de Exceção”, enuncia-se, pois: [1] o estado de exceção não é uma ditadura, mas um espaço vazio de direito, uma zona de anomia em que todas as determinações jurídicas estão esvaziadas, desativadas, onde são falsas todas as doutrinas que tentavam vincular o estado de exceção ao direito, são falaciosas as doutrinas de Schmitt que tentam reinscrever o estado de exceção a um contexto jurídico; [2] acontece que esse vazio de direito é tão essencial à ordem jurídica que esta deve buscar assegurar, de todas as formas, uma relação com ele, como se, para se fundar, ela devesse manter uma relação com ele; [3] o problema crucial ligado à suspensão do direito é o dos atos cometidos durante o iustitium, à medida que não são transgressivos nem executivos tampouco legislativos, mas situam-se em um não-lugar absoluto ao que se refere ao direito.

Em 1877, Adolphe Nissen, professor na Universidade de Estrasburgo, publica a monografia Das Iustitium: Eine Studie aus der Römischen Rechtsgeschichte. Ao questionar como insuficiente a acepção usual do termo iustitium como ‘férias judiciárias’ (Gerichtsferien), para ele, tratava-se de uma situação de exceção – de por de lado as obrigações impostas pela lei à ação dos magistrados. Nissen definiu assim o iustitium como o que suspende o direito e põe de lado todas as prescrições jurídicas. Quando o direito não estava mais em condições de assumir sua tarefa suprema, a de garantir o bem comum, abandonava-se o direito por medidas adequadas à situação e em caso de necessidade, os magistrados eram liberados das obrigações da lei por meio de um senatus-consulto, em caso extremo o direito também era posto de lado. Quando se tornava incômodo, em vez de ser transgredido, era afastado, suspenso por meio de um iustitium. Já se viu na história das Repúblicas os magistrados, o jurídicos, abandonarem-se de sua obrigação legal, mas não se viu ainda o legislativo, que é o limite, o além do poder num estado de exceção. Não pensaria outra coisa senão no legislativo, entregar ao soberano o poder que lhe foi suspenso. O que significa então, em termos do poder executivo suspender a lei, o direito, num estado de exceção como em Honduras? O que significa suspender as leis para o jurídico senão colocá-lo de lado, talvez seja o infortúnio de Micheletti.

A identificação entre soberano e lei representa a primeira tentativa de afirmar a ‘anomia’ do soberano e, ao mesmo tempo, seu vínculo essencial com a ordem jurídica. O nomos empsychos é a forma originária do nexo entre que o estado de exceção estabelece entre um dentro e um fora da lei e, assim constitui o arquétipo da teoria moderna da soberania. Não foi assim que Manuel Zelaya foi identificado como anômico, irregular, culpado, excluído, em outras palavras, posto como fora da lei? O soberano como lei viva (nomos empsychos) que coincide com a anomia, então é intimamente anomos. Enunciada através da eleição democrática: [a] um presidente [rei, soberano] é o mais justo e o mais justo é o mais legal; [b] sem justiça ninguém pode ser presidente [rei, soberano], mas a justiça é sem lei; [c] o justo é legítimo e o soberano, que se tornou causa do justo, é uma lei. Parafraseado de Diotogenes, em seu tratado da soberania, parcialmente conservado por Stobeo.

Ainda cabe distinguir o soberano, que é a lei, e o magistrado, que se limita a respeitá-la; a identificação entre lei e soberano tem por consequência a cisão da lei em uma ‘lei viva’ (nomos empsychos), hierarquicamente superior, e uma lei escrita (gramma), a ele subordinada. Honduras é composta por seu magistrado (jurídico, archon), por um comandado e pelas leis. Destas leis, a viva é o soberano (por Zelaya, no limite do vazio de direito ou das suspensões das leis, Micheletti), a inanimada é a letra. Na imagem que fez A. Delatte em seu “Essai sur la politique pythagoricienne”, a lei sendo o elemento primeiro, o rei é legal, o magistrado é conforme (à lei), o comandado é livre e toda a cidade é feliz; mas quando ocorre um desvio, o soberano é um tirano, o magistrado não é conforme a lei e a comunidade é infeliz. Ocorre que elementos anômicos são, portanto, introduzidos na polis pela pessoa do soberano, sem, aparentemente, arranhar o primado do nomos (o soberano é, de fato, ‘lei viva’). Há ainda porque perguntar: por que o estado de exceção executa a suspensão da lei, característica de alguns institutos jurídicos arcaicos?

Soberano é verdadeiramente um nomos empsychos, uma lei vivente. Por isto, mesmo permanecendo formalmente em vigor, a distinção dos poderes que caracteriza o Estado democrático e liberal perde aqui o seu sentido. Daí a dificuldade de julgar, segundo os normais critérios jurídicos, aqueles que, como Roberto Micheletti, não haviam feito mais do que executar seus atos como lei, assim como Eichmann cometia suas atrocidades através da lei, mas em nome do Führer.

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