domingo, 4 de outubro de 2009

Zelaya [1]: Lei e Vigência sem Significado


Sobre a Constituição de Honduras, aprovada em 1982, que amparou certa decisão da Suprema Corte de destituir o presidente Zelaya: a Lei, antes de ser uma fingida garantia contra o despotismo, ela é a invenção do próprio Déspota!

A Lei não começa por ser aquilo em que se tornará ou pretende se tornar mais tarde.

Nada, Nada! E, com efeito, há algo de comum ao regime da lei tal como aparece na formação imperial e ao modo como ele evoluirá mais tarde: a indiferença a designação. É isto que caracteriza a lei: significar não designando nada. A lei não designa nada nem ninguém, como assinalaram Gilles Deleuze e Félix Guattari em seu livro "o Anti-Édipo", com suas aporias semiológicas ao 'querer dizer', contra o ato hermenêutico ou a ‘interpretose paranóica’.

A Suprema Corte entendeu que a 'consulta popular' proposta por Zelaya para convocar uma Assembleia Constituinte destinava-se a alterar a cláusula pétrea (artigo 239), de que um presidente não poderá se recandidatar. Antecipação, suposição, antes do ato criminoso, a instauração de uma lei sobre algo que ainda vai acontecer ou que iria acontecer. Suponha-se que visito a cidade de São Paulo e ainda mantenho o hábito de fumar, por exemplo, em um bar qualquer, mexo em meus bolsos e encontro a minha carteira de cigarros: sou preso por que fumaria num ambiente proibido?

Trata-se, em outros termos, do modelo jurídico característico da Arte Neoliberal de Governar, quando o criminoso é julgado, mas não sob o crime que cometeu, mas sob um crime que poderia cometer, sob a possibilidade de se infringir a lei, conforme Michel Foucault em "Nascimento da Biopolítica"; trata-se de uma interpretação paranóica baseada no encadeamento de indícios que levariam um indivíduo posteriormente a um possível delito, assim que se atravessa a periculosa esteira do Estado de Direito.

Certamente, são cães que acham preferível ligar estreitamente o desejo e a lei na pura exaustão do instinto, ouvindo hipócritas doutores explicar o 'que é que isso quer dizer'? Essa é a característica da lei, segunda a qual ela governa as partes ainda não-totalizáveis nem totalizadas, compartimentando-as, organizando-as como tijolos, medindo sua distância e proibindo a sua comunicação, atuando assim como unidade formidável, embora formal e vazia: eminente, distributiva. Entretanto, a Lei possui outra característica, onde ela não faz conhecer o que quer que seja, nem tem objeto cognoscível, em que o veredito não preexiste à sanção e o enunciado da lei não preexiste ao veredito. Nessa lacuna entre essas duas características da Lei não se configura um caso de atuação diplomática? Talvez seja sempre nessa lacuna a única razão da diplomacia.

Nada impede, por isso, nenhum camponês muito menos Zelaya de entrar pela porta da lei, senão pelo simples fato de que esta porta já está sempre aberta e de que a lei não prescreve nada: nenhum hondurenho (artigo 102) poderá ser expatriado nem entregue pelas autoridades a um estado estrangeiro. Nessa paródia camponesa kafkiana, atribuída a esse código da constituição de Honduras, o poder da Lei está precisamente na impossibilidade de entrar no já aberto, de atingir o lugar em que já se está: Como esperar abrir se a porta está aberta? Giorgio Agamben em seu livro "Homo Sacer" expõe a forma pura da lei, em que ela se afirma com mais força justamente no ponto em que não prescreve nada: até que se prove o contrário, nada aconteceu em Honduras, a não ser um porvir de uma consulta (referendo, plebiscito) proposta pelo então presidente Zelaya, democraticamente eleito, que justificou uma atitude de antecipação na interpretação dos juristas hondurenhos, sobre um crime que poderia acontecer (reeleição, corrupção), acrescente-se a isso um 'presidente interino' de mãos dadas com as Forças Armadas, blindando Honduras em um Estado de Exceção que, paradoxalmente, promete ser apenas passagem para um Regime Democrático? Velho Golpe, Filme Datado.

Por isso, essa justificativa constitucional hondurenha de Roberto Micheletti define-se pelo relacionamento com a lei descrito como um 'nada da revelação', ou seja, significando com essa expressão um estágio em que a Lei afirma ainda a si mesma, pelo fato de que vigora, mas não significa. Honduras está onde a riqueza de significado falha e o que aparece, reduzido ao ponto zero do próprio conteúdo, todavia não desaparece, lá emerge o nada: uma Lei que se encontra em tal condição não é ausente, mas se apresenta na forma da inexequibilidade.

Vigência sem significado caracteriza o estado da lei que define o Golpe de Honduras, comandado por suas Forças Armadas e Micheletti, sob o qual Zelaya não consegue encontrar saída, respeitemos-lhe, realmente a Embaixada Brasileira tornou-se o único lugar, talvez a porta ou a Lei vazia? Todas as sociedades e todas as culturas, infelizmente, entraram em crises de legitimidade desta natureza, quando a Lei vigora, mas não significa.

Em Kant a forma pura da lei como ‘vigência sem significado’ aparece pela primeira vez na modernidade, demarcou Giorgio Agamben. Aquilo que na Crítica da Razão Prática ele chama de ‘simples forma da lei’, uma lei reduzida ao ponto zero de seu significado e que, todavia, vigora como tal. O limite, e ao mesmo tempo a riqueza da ética kantiana, está em ter deixado vigorar como princípio vazio a forma da lei: Kant chama de ‘respeito’ a esta condição de quem se encontra vivendo sob uma lei que vigora sem significar, sem prescrever nem vetar nenhum fim determinado. Respeito (Achtung, atenção reverencial); na ética kantiana, trata-se da motivação que um homem manifesta perante a própria lei (através do respeito que ela inspira), sem determinar quais objetivos se possa ter ou alcançar obedecendo a ela. Respeito, portanto, a todos os cidadãos comuns que por ventura tiveram seus direitos suspensos ou foram mortos nos muros de tantas ditaduras, até mesmos os judeus e os muçulmanos que foram banidos atrozmente nos Lager e na Guantanamo, em geral, ao sem-número de tipos e formas de bodes-expiatórios que sangraram pela terra, ao sabor do abandono e culpados pela virtualidade mórbida do Mal ou pela possibilidade paranóica do Perigo ou pela iminência ansiosa do Delito, isto é, não se trata de suspeita, mas do sentido cruel de uma Lei que se aplica se desaplicando. Manuel Zelaya? Mais um... dentre inúmeros, que se aplacaram na rede desta arcaica prática do bando, mais um que foi julgado por seus atos ilícitos e ficou à mercê da Exceção.

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