quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Desastre Ético na Honduras de Micheletti


Foi Lenin quem mostrou, de modo claro em “Estado e Revolução”, que a meta revolucionária não é a tomada do poder nem a substituição de um portador do poder (‘eles’) por outro (‘nós’), mas minar, desintegrar, os próprios aparelhos do poder estatal. De que forma então foi possível compreender a resistência ao poder como se preparasse um terreno para o salto a uma ‘democracia absoluta’, no qual a multidão se governa diretamente, as tensões se resolvem, a liberdade explode em autoproliferação eterna? Desvelam-se inconsistências estruturais do poder, por um lado, “o alvo é nada, o movimento é tudo”: o perigo real que se deve resistir é a própria noção de um corte por meio do qual o antagonismo social básico será dissolvido e a nova era de uma sociedade autotransparente e não alienada chegará, para Ernesto Laclau e Chantal Mouffe em seu livro “Hegemony and Socialist Strategy”, essa noção nega tanto o político (espaço de antagonismo e luta pela hegemonia) quanto a finitude ontológica da condição humana e, portanto, qualquer tentativa de realizar esse salta deve acabar em desastre totalitário. Por outro lado, Giorgio Agamben em seu livro “Estado de Exceção” demonstra que o círculo vicioso do vínculo entre poder legal (o Estado de Direito) e a violência é sustentado pela esperança messiânica utópica de que é possível romper esse círculo e sair dele num ato de ‘violência divina’, benjaminiana. A posição de Giorgio Agamben detecta que o espaço de luta política está fechado e nenhum movimento emancipatório democrático é desprovido de sentido, enfim, não podemos fazer nada além de esperar com complacência a explosão milagrosa da ‘violência divina’.

A libertação revolucionária autêntica é identificada muito mais diretamente com a violência; quando é a violência como tal –, o gesto violento de descartar, de estabelecer uma diferença, de traçar uma linha de separação – que liberta. Em sua perspectiva paraláctica dessa ‘violência divina’, no livro “A Visão em Paralaxe”, Slavoj Zizek distinguiu a legitimação da violência entre o ‘guerreiro zen’ e a antiga tradição ocidental, de Cristo a Che Guevara, que exaltam a violência como ‘trabalho de amor’. A ‘compaixão budista’ (aliás, hindu) deve perturbar e opor-se ao ‘Amor cristão, intolerante e violento’. A postura budista é de indiferença, de estancar todas as paixões que lutam para criar diferenças, ao passo que o ‘amor cristão’ é a paixão violenta de introduzir uma Diferença, uma lacuna na ordem do Ser, de privilegiar e elevar um objeto à custa dos outros. Sob a superfície hondurenha a imagem de Manuel Zelaya é desse guerreiro de tipo ‘cristão’ que se elevou em relação aos compatriotas democraticamente, mas ao mesmo tempo ocupa hoje a expiação, por ser deposto; enquanto a imagem de Roberto Micheletti é de indiferença, frieza em relação aos seus ‘inimigos zelaystas’ e se apresenta, mesmo provisoriamente, no mínimo, para estancar as paixões dos hondurenhos, tendo seu presidente cassado.

Destaca-se então, após a distinção entre os tipos de ‘guerreiros’ no campo de batalha hondurenho, as formas de expurgos ferozes acionados pelo ‘governo de facto’ [sic], ou melhor, estado de exceção ou regime autoritário instalado em Honduras, pela convicção de Roberto Micheletti, que é tanto désastre (Evento-verdade stalinista) quanto désêtre (Pseudo-evento fascista), conforme a diferenciação promovida por Alain Badiou em seu livro “Ética”. Trata-se sim de uma violência de tipo nazista: quem não se envolveu em nenhuma atividade política oposicionista (nem fosse de origem judaica) podia sobreviver e manter aparentemente uma vida cotidiana normal; mas também de uma violência estilo stalinista: ninguém estará em segurança – qualquer um pode ser inesperadamente denunciado, preso e fuzilado como traidor.

Não é a Roberto Micheletti que se refere o tom de um homem que se quer herói, como o mais estranho fazedor de força, em confronto violento? Não é este homem quem faz cumprir a ordem recorrendo a uma violência que impõe leis? Não é ele que só pode impor ou fundar uma nova lei excetuando-se do Estado de Direito? Senão ninguém seria martirizado por questionar a Constituição. Muitos de nós, no mundo todo, aguardamos que a ‘luta pseudo-heróica’ de Micheletti esteja fadada a fracassar, em Honduras hoje e sempre.

Martin Heidegger na “Introdução à Metafísica” definiu a essência do homem como quem trava uma batalha heroicamente perdida contra ‘o Todo esmagador do ser’ ao tentar impor-lhe violentamente uma ordem projetada, que essa essência penetre nos poros de Micheletti e o exploda de uma vez por todos, não podemos mais suportar pseudo-heróis totalitários, beligerantes. Desse modo, a tirania de Roberto Micheletti conseguiu promover a inversão de um agon (quando dois adversários competem de maneira amistosa) a um polemos (quando o adversário não é um parceiro, mas um inimigo). Martin Heidegger opôs a guerra propriamente dita (polemos) a agon (uma luta competitiva), a partir da sua leitura do 53 DK de Heráclito sobre ‘a guerra como pai e rei de tudo’: se não é Zelaya e os zelaystas os inimigos de quem emana uma ameaça essencial ao ser de um povo como o de Honduras, após o embuste do estado de exceção encenado por Micheletti. Se eles ainda não são os inimigos nem de longe os mais perigosos – o inimigo não tem de ser externo, como os brasileiros e sua embaixada, mesmo que não haja nenhum inimigo por aí: a necessidade fundamental é encontrar um inimigo, trazê-lo à luz, criá-lo, embora seja muito mais difícil rastrear o inimigo, manter-se pronto a atacá-lo, cultivar e aumentar a prontidão constante a propósito da sua aniquilação completa. Porque o ‘zelaysmo’, este sim, já foi criado, aparentemente atacado, entretanto a ‘monstruosidade política’ tem sido, para nós, um tal Micheletti, que tenta se instalar na raiz mais íntima de Honduras e parasitar o seu povo: uma vez quebrada a espada (Forças Armadas), ele estará desarmado; não se enganem com esse discurso com numerosas injunções militares acompanhado por declarações de paz. Povo hondurenho permaneça ativo e engajado no mundo, sem muito apego, mantendo-se intacto dentro dessa atitude, porque Roberto Micheletti não age mais como pessoa, fica completamente dessubjetivado, na verdade não é ele, mas a sua espada que mata.

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